1121-ÓRFÃOS DA GUERRA-2- UM PASSAPORTE PARA DOIS VIAJANTES

UM PASSAPORTE PARA DOIS VIAJANTES.

OS ÓRFÃOS DA GUERRA - 2ª. PARTE

Tudo estava muito tranquilo no posto policial e aduaneiro da fronteira da Alemanha Ocidental. A impressão foi de que ninguém a não ser eu e meu marido desejava, naquela manhã, sair da Alemanha para ir à Tchecoslováquia. Funcionários atenciosos nos atenderam no escritório sem movimento, preenchemos os formulários e respondemos aos questionários de praxe; os passaportes foram carimbados e devolvidos. A documentação de Rodolfo, o funcionário do Consulado que estava nos acompanhando também foi examinada e liberada.

Na linha da fronteira estavam guardas que nos cumprimentaram e nos levaram até onde se encontravam os guardas da Tchecoslováquia.

Não sei dizer se foi por medo ou preconceito, mas senti um arrepio estranho ao pisar no solo do país dos meus antepassados e de meu marido. Acho que foi medo, sim.

O aspecto dos guardas não era animador: vestiam uniformes largos, mal ajustados nos corpos; capacetes e botas que me pareceram remanescentes dos campos de batalhas: arranhões nos capacetes, botas desgastadas. Nas cinturas, coldres dependurados em cintos frouxos, com revólveres dispensáveis naquela repartição civil.

Meu marido, eu e Rodolfo nos entreolhamos, com olhares de decepção ou reprovação. |Nada dissemos.

Fomos direcionados para uma rústica construção que parecia ser provisória, mas que já mostrava bem as precárias condições de vida e de funcionamento das instituições no país agora dominado por comunistas.

Entramos. Um oficial militar, sentado numa ampla escrivaninha que ocupava quase todo o espaço da saleta, dirigiu-nos algumas palavras em alemão. Rodolfo adiantou-se e disse que não falávamos alemão e que poderíamos responder em inglês.

Ignorando Rodolfo, passou a nos questionar em inglês. Apresentou formulários, que preenchemos com vagar e procurando ser o mais sucinto possível. Adolfo também teve de preencher alguns formulários, embora devesse retornar assim que nos visse devidamente livres no solo da Tchecoslováquia.

Nossos passaportes foram examinados e examinados pelo oficial. Acho que ele não entendia a maior parte do que estava ali, mas se fez de muito cuidadoso, folheando-os da frente para trás e de trás para frente, detendo-se em cada anotação e carimbo. Achei tudo uma encenação.

Nós três não trocamos uma palavra entre nós, até que o oficial devolveu o passaporte de Tomaz e ficou com o meu sob sua mão direita. Abriu uma gaveta, tirou um cartão que preencheu com sua letra descuidada, e me entregou, dizendo em inglês deficiente e com arrastado sotaque:

— Você viaja com este documento. Seu passaporte fica aqui.

Rodolfo protestou, mas o oficial o ignorou. Meu marido quis falar algo, mas se refreou ante um olhar significativo de Rodolfo. Eu fiquei apavorada.

Peguei Rodolfo pelo braço e o afastei um pouco da mesa, e cochichei em seu ouvido:

— Como é que vou viajar num pais estranho sem meu passaporte? Além de tudo, comunista!!!

O oficial escutou meu cochicho ou notou o medo estampado em meus olhos, e disse em tom peremptório e autoritário:

— É assim que funciona. Um passaporte serve para os dois. Seu marido é o responsável por você, enquanto estiverem neste país.

Rodolfo tentou me acalmar e espantar meu medo.

— Senhora Zelma, aqui é tudo diferente. Como vocês só irão a uma cidade que fica aqui perto, e voltarão pelo mesmo caminho de ida, não há perigo algum.

Não me acalmei. Não pude conter meu tremor e lágrimas rolaram de meus olhos.

— Acho melhor voltarmos daqui. — disse Tomaz com voz tensa. — Não vamos correr riscos desnecessários.

Rodolfo falou com calma e ponderação:

— Calma, senhor Tomaz. Não vão perder a sua viagem só por essa condição que nos países do leste da Europa é normal: o marido é responsável pela esposa, e ela não tem autonomia alguma. É totalmente dependente do marido.

— Parece coisa de país árabe! — Disse meu marido em português, que só foi entendido por mim e talvez por Rodolfo.

Abracei Tomaz e chorei em seus ombros. Disse-lhe baixinho, em português, para não ser entendido por ninguém mais:

— Vamos, Tomaz, já que estamos aqui.

— Ficaremos de sobreaviso e vocês poderão se comunicar diretamente conosco. — disse Rodolfo. — Qualquer coisa que não der certo, prometo que iremos ajudar vocês.

O oficial mostrava sinais de impaciência. Colocou meu passaporte numa gaveta, levantou-se e saiu da sala, deixando-nos sem opção.

— Vamos então, querida. — Disse Tomaz, tomando-me pelo braço.

Despedimo-nos de Rodolfo e saímos da pequena construção.

Entramos na Tchecoslováquia, enfim. Estávamos por nossa conta e risco; de braços dados, bem apertados: Tomaz com seu passaporte na mão e eu com meu “documento”, um salvo-conduto que não me inspirava a mínima confiança.

Confesso que me senti nua caminhando numa estrada de pesadelo.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 8 de agosto de 2019.

Conto # 1121 da Série Infinitas Histórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/12/2019
Reeditado em 10/12/2019
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