Raízes

Feriado na área e Urbano, juntamente com sua família, arruma as malas rumo ao litoral. Hora de renovação diante dos excessos da cidade - informação, pessoas, poluição, coisas - é o que dizem seus familiares. Urbano, porém, discorda. Filho da metrópole, acha o estilo de vida praiano monótono e pacato, desprovido de toda a agitação e fervor próprios dos grandes centros. Seu apego à cidade é tamanho que faz questão de viajar vestindo terno e gravata, ao invés de chinelo e regata, postos no fundo da mala para utilização somente em último caso. Enfim, tudo pronto, Urbano e sua família pegam a rota de saída do ventre materno.

Não sem hesitação. Isso porque Urbano dirige encafifado com os erros cometidos no trabalho durante a última semana, os quais podem trazer-lhe cifras a menos e contas a mais no final do mês, comprometendo o seu já apertado orçamento. Sinal disso é que, nos últimos tempos, teve de doar uma dúzia de calças e camisas que não lhe serviam mais, mesmo a contragosto. Por isso faz planos e cálculos a fim de manter o peso equilibrado, imaginando cenários distópicos em que suas falhas custar-lhe-ão caro. E é deste modo, tenso e culpado, que Urbano inicia seu feriado.

À primeira vista das ondulações marítimas, Urbano age com indiferença, pegando a estrada que leva à casa locada sem ao menos notar o anis celeste, porquanto se encontre muito ocupado examinando seu GPS, do qual não tira os olhos. Ao estacionar o automóvel na garagem, começa a queixar-se do efeito depreciativo da maresia sob o patrimônio, virando os olhos ao avistar os cômodos antiquados e rudimentares do imóvel. Fica tão descontente que, apesar dos apelos infantis para ir à praia, tranca-se no quarto, saca o celular e volta seu foco às sucessivas e milionárias transações que precisa gerenciar.

Quando sai, encontra a família chorando copiosamente; não entende o porquê. Assiste à catarse coletiva sem compreender o choro. Fria e secamente, coloca-se na frente da televisão, cruza os braços e indaga:

- O que raios está acontecendo aqui?

Só agora, de frente à janela, percebe que o calor de outrora se convertera numa chuva torrencial, tomando consciência do vasto tempo despendido no quarto. Quanto aos familiares, nenhum som inteligível é pronunciado, ouvindo apenas espasmos e lamentos incompreensíveis.

Depois de algum tempo, seus familiares recuperam o fôlego e então Urbano descobre que acabaram de assistir a um filme onde o protagonista se suicida após um processo de falência, caindo em imensa depressão pelo vazio e inutilidade de sua existência, dirigida totalmente a um trabalho malsucedido. Segundo eles, o personagem principal era a sua cara.

Desconcertado, Urbano encara incrédulo cada um de seus familiares, todos com os olhos vermelhos, expressivos do sentimento trágico que tomou de assalto o recinto. Era como se um oráculo acabasse de ter se instalado entre eles, profetizando-lhes o desfecho da vida de seu pai e marido. Assim, superado o breve e inquietante silêncio, marcado por respirações sonoras, profundas e espaçadas, além de olhares fixos e piedosos em Urbano, como se todos os holofotes subitamente iluminassem e escancarassem a nudez de sua alma, um de seus filhos sai do sofá, puxa-o pelo cinto e diz:

- Papai, você não vai terminar como ele, vai?

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Quatro longos e proveitosos dias se passaram e Urbano já se sente revigorado. Desligou o celular, colocou os pés na terra, contemplou e entrou no mar, desbravou a serra, estreitando laços com sua natureza perdida. Sentiu a plenitude de pedalar nas ruas planas da estância balneária, sorvendo detida e silenciosamente o vento que cai como cachoeira em seu corpo, aquietando sua mente e banhando seu dorso com doses de presença. Despiu-se das preocupações cotidianas, tirando o peso das responsabilidades cada vez maiores de suas costas, ao que se surpreendeu com tamanha leveza e facilidade em ergue-las. Em suma, a vida nunca lhe pareceu tão satisfatória; é como se nem tivesse vivido antes.

O contentamento litorâneo toma Urbano de tal forma que, no momento do regresso à cidade, percebe não querer mais voltar. Nada daquilo faz mais sentido para ele. Todavia, é hora de partir, e por mais que o faça a contragosto, devolve as chaves ao proprietário e pega o caminho de casa, fazendo questão de dirigir pela orla praiana até ser devolvido às prisões domésticas e precipícios artificiais de sempre.

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Mas nem tudo voltou ao normal, pois algum tempo depois, Urbano foi visto na fila do cartório, onde se demorou um bocado. Segundo consta nos registros, fez um singelo e emblemático pedido: retificação de assento, de modo a ter seu nome modificado para Caiçara.