Uma História Que, ao Ser Lida, Alegra a Vida

É muito bom estarmos em um lugar, rodeado pela estonteante beleza da natureza; é algo mágico. Não sei como fui parar ali. O que me lembro é que havia desmaiado em função de, talvez, uma súbita queda da pressão sanguínea por haver me esforçado além do meu próprio limite naquela competição. O calor anormal e o sol forte contribuíram para aquele mal estar; disso eu não tenho dúvida. Eu estava de frente para uma plataforma ajardinada. A água da chuva escorria por entre os beirais do jardim e vinha, numa espécie de córrego, acumular-se a minha volta. Ali não era uma praça, mas quase isto. Havia bancos onde, em um deles, eu descansava. Eram três pequenos lagos, de um verde claro ameno e refrescante que, ao receber o impacto da água em sua superfície, inundava o ambiente com pequenos jatos. A área verde era a se perder de vista. Pus-me sentado e a imagem de Marcela me veio de um relance à memória. Como pude tê-la perdido, e de uma forma que até agora não conseguia compreender?

Coloquei no colo minha mochila e puxei com força o fecho éclair, tal era a minha ira e minha ansiedade. Tinha agora em mãos o endereço do suposto assassino de minha noiva querida. Lancei meu olhar pensativo sobre o interminável chão, cuja verdura me inebriava a consciência. Como pode, o Criador, sem poupar tempo, espaço ou amor pela humanidade, brindar-nos com inigualável arte e um ser mortal como o homem, recebedor de Suas graças imparciais ter a coragem ou mesmo o direito de silenciar o próprio irmão, já que somos, todos, sem exceção, membros da família universal? Não seria essa arte de Deus prova suficiente de que é tudo pelo amor? Que é por amar-nos e desejar nossa felicidade eterna que Ele se empenha em nos prover do melhor? Ao tirarem a vida de minha inesquecível Marcela lançaram em mim a fúria incontrolável e o desejo de ver cada um dos envolvidos atrás das grades ou debaixo de um chão de terra. Sei que isto não é bom para o meu equilíbrio espiritual, Mas é o que sinto por hora.

Levantei-me e comecei a andar, certo de que encontraria o caminho de volta para minha cidade. Eu não tinha ideia de onde estava, se em uma cidade estranha ou algum vilarejo desconhecido por mim dentro da minha própria terra. O certo é que teria que caminhar um bocado até deparar com algo que me fosse familiar. No entanto, e para compensar a solidão e a tristeza, me via rodeado de um cenário, no mínimo, deslumbrante. A brisa fresca deslizava suave para dentro de mim, restaurando-me a energia e o vigor. O som de pássaros era nítido; vez por outra um deles rasava próximo a minha cabeça e desaparecia antes que me fosse possível reconhecê-lo. Quando não, um bando harmonioso fazia desfile ao longe, enfeitando o céu com sua dança e melodia. Por trás dessa linha viva, o horizonte se mostrava já muito claro e afogueado. O lugar devia ser rodeado de cachoeiras.

Á medida que meus pés pressionavam o solo esverdeado subiam-me às narinas aromas de ervas que eu identificava de imediato, como de outras que me eram estranhas, mas que muito me agradavam também. Como eu suspeitava, o som de águas que corriam entre pedras ia-se aproximando pouco a pouco até que avistei uma fonte que escorria de uma inclinação logo à frente. Os paredões das encostas cobertas de musgos, feito mosaicos esculpidos através dos tempos por mãos invisíveis, com suas pedras brilhantes, enfileiradas simetricamente abriram-se ante meus olhos encantados por tanta beleza. Lá embaixo, dificultado pela escassa iluminação que me fazia apertar os olhos para acostumar as retinas, eu via os pequenos arbustos meio que inclinados, agarrados pelas raízes expostas, aos barrancos. Pareciam bonecos de marionete, cujos movimentos dependem da vontade alheia.

Em toda a orla desse conjunto de lagos naturais, bananeiras carregadas fechavam os círculos. Por sua quantidade não permitiam a visão perfeita dos lagos, mas entremostravam aqui um amontoado de apetrechos religiosos, ali um cacho apodrecido, caído no solo e esquecido ou o movimento saltitante de algum peixe, como que brincando na água esverdeada. As sombras das bananeiras, ao projetarem-se nessa quietude aquática assemelhavam-se a soldados em posição de descanso, fazendo das copas e de alguns cachos carregados e das frutas pontiagudas, seus fardos incômodos, tudo tremulando ao sabor de uma brisa refrescante, comandante e coreógrafa.

Aqui, quase à beira, entre o asfalto e o terreno arenso, eu redobrava o cuidado ao caminhar para não correr o risco de escorregar no barranco. A visão do outro lado, encoberta pela mataria, descobria, à medida que eu avançava, canaviais minúsculos que margeavam parte da orla e milharais que se estendiam para bem longe denunciando, talvez, pequenas propriedades de agricultores. Cercados inexistiam pelo simples motivo da impossibilidade; de onde eu estava não havia acesso para o outro lado. Aos poucos, a visão se ampliava para as montanhas distantes; o horizonte se abria, eu via abutres voluteando ao redor de picos esverdeados, subindo e descendo sem perder a harmonia do voo, na certa já atraídos pelo banquete lá em baixo. O som calmoso das águas tornou-se mais intenso. Havia opções para as ladeiras que, dali, ofereciam acessos levando, talvez a outros povoados. Definitivamente, eu não reconhecia o lugar e nem dele ouvira falar.

As casas eram muito parecidas umas com as outras, como se pertencentes a algum consórcio. Não perdiam, contudo, sua beleza e originalidade. Havia gosto na decoração e elas se distinguiam por esse particular. Portões baixos, de madeira em sua maioria, permitindo a visão por meio de brechas entre as ripas ou, a depender da inclinação do terreno, por cima mesmo do muro viam-se as varandas com os vasos em flores; ou uma pequena fonte rodeada de tijolos argamassados, improvisando jardins, o que denotava a criatividade dos moradores menos privilegiados que seus vizinhos. Estes não poupavam no estilo, nas pedras decorativas, rústicas que variavam em textura e nas formas geométricas. As cortinas de seda, esvoaçantes forneciam ao passante um toque oriental dentro daquela paisagem bucólica.

Havia, entre uma casa ou outra, terrenos inóspitos a espera de construtores. O mato ali era alto, abundante, roçagando nos paredões das casas vizinhas. Nos que mantinham árvores estas eram altas, centenárias e galhudas ao extremo. Alguns galhos inclinavam-se para a calçada, desprendiam folhas secas, amareladas que cobriam os bueiros das ruas, acumulavam-se nos cantos do meio fio e faziam a brincadeira de cães que ali se estiravam, urinavam e de galinhas soltas, carregando com elas a ninhada para a diversão do dia: disparar para esses monturos, picando aqui e acolá, na caça de algum petisco ou correr dos meninos e de suas travessuras; descalços, nos pés a lama dos charcos ou a terra das ruas ainda sem a modernidade do asfalto.

Peguei uma das descidas, de cujo fim não fazia ideia, mas foi a intuição que me fez enfiar por ela. Tive uma impressão de familiaridade com aquele trecho e só fui descobrir isto ao alcançar o outro extremo. Tencionava parar em algum comércio para saciar minha fome, mas era maior a curiosidade de completar aquele percurso.

- O senhor sabe onde vai dar essa rua? - quis saber de um senhor que comigo cruzava. Era idoso; subia lentamente, dando sinais de cansaço. Parece ter ficado satisfeito com essa interrupção do seu caminhar; era a chance para mais um descanso. Sorrindo, tirou o chapéu de palha que o protegia do sol que já era forte àquela hora do dia e, cofiando a barba longa e grisalha e depois apontando com sua bengala, respondeu:

- É na taberna do Raposo, meu amigo. De onde acabo de vir. Não existe melhor vinho; tem a chance de experimentar um gole, se quiser. Garanto que não vai se arrepender.

- Quem sabe? Muito obrigado! - agradeci e continuei.

Tive a certeza de onde me encontrava ao divisar a taberna do lado oposto da avenida principal. Tendo apressado a caminhada, afoitado pela ansiedade, ali cheguei. Não parei para o vinho, entretanto. Estava próximo do endereço de que tinha posse. A menos de quinhentos metro dali jogávamos o futebol semanal e agora, o que mais me importava era alcançar o clube onde, segundo minhas recordações, tudo aconteceu.

- Calma! Marcela não está morta. Você não sabe o que aconteceu.

Queriam me impedir, assim, de me vingar do meu adversário. Parti para cima dele, já com a faca em punho ao vê-lo, tranquilamente sentado com outros em um jogo de carteado. Tê-lo-ia, certamente assassinado se alguns amigos não me houvessem impedido.

Fui acalmado e, à custo de muita explicação, senti-me um pouco mais convencido e menos desconfiado. Mas, ao ver e falar com Marcela através de um aplicativo de rede social, acalmei-me de vez. O tiro fora de raspão em sua cabeça e a perda de sentidos deveu-se mais ao susto do que ao ferimento. Saí dali, bebi até o amanhecer e, caminhando ao léu, deparei com o cenário descrito. Apesar de tudo e do que fizeram comigo, se estou relatando os fatos da forma que o faço, leve, de alma purificada e sem mágoas e sem ressentimentos tudo devo à experiência inesquecível por que passei ao contatar com este espetáculo inesquecível, com este banho de natureza. É daqui que escrevo em um recanto que mandei construir, aproveitando um dos terrenos que satisfizeram meu gosto e meu estilo. Já não tenho a vida tão agitada.

Professor Edgard Santos

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 21/10/2019
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