Dupla criativa
- As Bodas de Fígaro? - Indagou confuso Lorenzo Da Ponte.
- Não me diga que ainda não ouviu falar na nova comédia do Beaumarchais - questionou Mozart, com ironia.
- Mas é claro que ouvi falar! - Replicou indignado o libretista. - Havia tanta gente na estreia em Paris, que três pessoas morreram esmagadas pela multidão que afluiu ao teatro!
- Desconhecia este detalhe, - admitiu o compositor, mão no queixo - embora não venha ao caso. Estamos em Viena, não em Paris, e é pouco provável que algo assim se repetisse aqui. Até porque, acabo de saber que o imperador proibiu a sua representação, por conta de certas passagens, digamos, antiaristocráticas.
- Isso encerra o assunto então - redarguiu aliviado Da Ponte.
- Não tão depressa - atalhou Mozart, erguendo um dedo. - A peça anterior de Beaumarchais, também foi um sucesso. A ópera, composta por Paisiello, nem ficou tão boa assim, e é aí que vejo a nossa oportunidade. Antes que alguém o faça, vamos produzir nossa versão musical das Bodas de Fígaro!
- A peça anterior… O Barbeiro de Sevilha, com libreto de Petrosellini - recordou Da Ponte. - Não duvido que eu e você possamos fazer um trabalho muito melhor, meu caro Mozart, mas como acha que vamos convencer o Censor da Áustria a liberar uma peça que ataca a nobreza?
- Esta é a sua seara - retrucou o compositor, impassível - A minha, é escrever as melhores composições possíveis. Que tal ir fazer uma visita ao Censor e convencê-lo de que merecemos uma oportunidade?
Da Ponte sabia que não iria fazer com que Mozart mudasse de ideia. Com um suspiro, apanhou seu chapéu e despediu-se do compositor.
***
Da vez seguinte em que se encontraram, desta feita na residência de Da Ponte, o libretista deu uma boa notícia à Mozart.
- Consegui persuadir o Censor à aprovar o libreto da ópera - declarou, triunfante.
- Nunca duvidei da sua competência para esta missão - retrucou Mozart.- E como o fez?
- Comprometi-me a realizar não uma transcrição literal do texto de Beaumarchais, tal qual fez Petrosellini, mas a criar uma nova versão… uma recriação… aproveitando as personagens e situações originais - explicou o libretista.
- Imagino que neste seu tour de force criativo, todas as menções políticas do texto serão expurgadas - antecipou Mozart.
- Naturalmente - admitiu Da Ponte. - Por exemplo, na diatribe de Fígaro sobre a nobreza herdada, substituirei por uma queixa contra esposas infiéis.
- Muito oportuno! - Aplaudiu Mozart. - Pois então, mãos à obra, que preciso de cada um dos 450 florins prometidos por esse trabalho, para pagar contas atrasadas.
- Não sabia que estavam pagando tão bem assim - admirou-se o libretista.
- Esta é a paga do compositor, meu caro - corrigiu-o Mozart. - Nós somos as estrelas da companhia; mas não se apoquente, que seus 200 florins estão garantidos…
[11-09-2019]