O Conto da Menina Pobre
Cidade Portuária de Aldena.
Aldena é uma cidade portuária de Panthea e possuidora de uma beleza deveras formosa. As construções se prolongam a partir da praia até os campos próximos da floresta Boca de Dragão, enormes coqueiros se estendem para o alto da cidade e o porto, um dos lugares mais movimentados da cidade, é o grande coração de Aldema.
Devido a beleza praiana da cidade, a população com maior poder aquisitivo reside próximo a praia e quanto mais distante dessas regiões, mais pobres são os cidadãos. E como ocorre em todas as cidades de Panthea, em Aldena existem os desabrigados e pedintes, os quais perambulam pelas ruelas a procura de sobrevivência.
Entre esses há uma garotinha, quem a via chegava a pensar que ela teria cerca de oito anos, mas não fosse a desnutrição pela falta de alimento, seria possível enxergar os dez anos de idade que ela tinha. Era quase meio dia e ela vagarosamente andava pelos becos estreitos da região mais pobre, era arriscado demais procurar algo nos comércios perto da praia, os soldados de preto poderiam chuta-la de lá.
Em determinado momento ela para em um cruzamento de ruelas, apenas uma velhinha não tão pobre quanto ela varre sua calçada, a garota olha para cima e põe a mão sobre os olhos castanhos para protegê-los da luz. Solta um suspiro e volta o olhar para o saco velho na outra mão. Estava vazio. Ela senta no chão alí mesmo, seus cabelos pretos recaem sobre seu rosto, parece fraca.
Súbito, ela volta a olhar de forma sisuda para frente, ergue-se sobre seus pés e volta a caminhar, agora com mais rapidez.
Ela toma coragem e, com todo cuidado e atenção que ainda tem, se aproxima das redondezas do porto da cidade. Mesmo a muitos metros de distância ela já consegue ouvir o burburinho das pessoas no pólo comercial. Em uma rua já bem movimentada ela segue se esgueirando entre as barracas de frutas, até que encontra uma repleta de maçãs. Estando embaixo da barraca, ela coloca a mão pela lateral e vai tateando até achar uma maçã, pega-a e põe no saco velho. Repete o movimento mais umas quatro ou cinco vezes, estava nervosa demais para contar, só decidiu parar quando ouviu vozes se aproximando.
- Olá Tom! Dia quente, não? Não sei como ainda não vendeu tudo com esse calor. - A voz era de uma mulher.
- Pois eu sei. - Disse uma voz masculina. - Não importa se a fruta é suculenta se essa gente tem que pagar tanto pra esse reino.
- Isso é verdade. - Retrucou, a mulher. - Mas quero levar algumas para os meninos.
- Tudo bem, deixa só eu - A frase foi interrompida e logo em seguida ele continuou com ira. - Mas que droga é essa?! Roubaram maçãs daqui!
Devido ao susto a menina saiu de debaixo da barraca, correndo em direção à rua mais próxima.
- Soldados! Lá se vai uma ladra! - Esbravejou, o homem.
Logo em seguida dois soldados, trajando roupas escuras, com um emblema e armados foram correndo atrás da garota. Ela tentou correr em zig-zag pelas ruelas, mas apesar de sua esperteza os soldados eram mais rápidos, além do mais, a garota não tinha mais forças para correr.
Durante a corrida um dos soldados, com a mão, consegue alcançar o saco velho que estava com ela, o segura e com um puxão arranca da mão da menina, esparramando as frutas pelo chão. Repentinamente, este soldado pisa em uma dessas maçãs e escorrega no chão, seu colega que vinha logo atrás esbarra nele e vai ao chão também. A garota que havia dado mais alguns passos para a frente vê a cena, e com receio volta rápido, pega uma das maçãs no chão e foge.
--//--
Já era noite e a garota perambulava pelas ruelas escuras, pouco iluminadas apenas por algumas lamparinas no lado de fora de algumas casas mais pobres da cidade. Virando numa esquina ela finalmente parou, naquele beco que se estendia a sua frente havia uma série de tendas rasgadas, onde desabrigados já haviam se estabelecido.
Ela andou até se aproximar de uma das tendas que ficava no meio do beco. A maioria dos pobres alí eram velhos ou doentes, existiam poucas crianças e entre elas havia esta garota e um pequeno garotinho deitado na tenda, o qual ela encarava, coberto por um cobertor rasgado, mas que passava uma estranha impressão de conforto.
Ela se abaixou e assentou-se sobre o amontoado de trapos onde o garoto, que aparentava ter cerca de sete ou oito anos de idade, estava deitado. Tocando-o na cabeça, ela o fez acordar, ao levantar-se era possível ver que, apesar de tão pobre, ele era bem mais nutrido do que a menina. Ela mostrou-lhe a maçã em sua mão, oferecendo, e ele pegou, porém antes de morder a fruta ele a ofereceu de volta. Apenas com um movimento ela levou a maçã de volta ao rosto do garoto. Ele, então, a comeu. E quando se deitou recebeu o abraço aconchegante da garota, não estava tão frio e ele não demorou a pegar no sono de novo. Ela não, a fome não lhe dava trégua.
Dessa mesma forma os dias iam se passando, ás vezes sobrava comida e a menina se alimentava, ás vezes não. Em nenhum momento ela deixava o garoto sair daquele beco, e por alí mesmo ele convivia com os outros desabrigados.
Certo dia a garota estava se levantando para sair e catando um saco velho, logo uma senhora apareceu por trás.
- Pequena. - Disse, a senhora. - Você deveria parar de ir ao porto. Ontem antes de você voltar, dois soldados passaram por aqui vistoriando as tendas. - Falou, apontando para o beco. - Estavam procurando por alguém...
- É verdade! - Exclamou um homem de meia idade na tenda ao lado, seu rosto estava enfaixado. - Bagunçaram todas as minhas coisas.
- O garotinho só tem você. - Continuou a velha de cabelos grisalhos, rosto enrugado e olhos repuxados. - Não seria bom perder a irmã também. - Disse e foi saindo.
- A senhora soube dos boatos sobre uma invasão dos rebeldes? - Falou o homem para a velha.
- Detesto boatos, Gario! - Concluiu ela, enfezada.
- Ah, mas com quem vou conversar se essa menina aqui é muda? - Disse ele.
A conversa dos dois se distanciava, enquanto a garota observava o irmão dormir. Agora, visto à luz do dia, ficava evidente as semelhanças com a menina, o cabelo, o nariz e a boca eram idênticos. Ela se levantou e se retirou do beco.
--//--
A manhã estava ensolarada quando a garota margeava a cidade. Ombros caídos, passos curtos e pescoço curvado. Era impossível esconder seu desgaste. Ela caminhava rumo ao início da floresta Boca de Dragão, ás vezes voltava os olhos para o sentido contrário, em direção ao porto. Seus pensamentos deviam estar lá. Não era comum ver desabrigados fora da cidade, afinal na floresta não havia certeza de recursos para sobreviver, as árvores não davam muitos frutos comestíveis, Talvez um ou outro, mas bastante raro. E pra acrescentar haviam os boatos sobre estranhos na floresta.
Apesar de tudo isso ela continuou prosseguindo. Por algumas horas vagou pela parte menos densa da floresta, balançava todos os arbustos, observava todas as árvores, não tinha idéia de quais árvores poderia ter comida, então era melhor ver em todas. Passado esse tempo sua sacola velha só tinha uma dúzia de frutas pequeninas, mas a dor da fome persistia, pois ela não guardava aquela comida para ela.
Em determinado momento ela parou atrás de alguns arbustos perto da estrada principal que saia de Aldena. Se ajoelhou sobre o chão, sua respiração estava ofegante, não parecia bem. Nesse instante ela pôde ouvir vozes alí perto, uma família passava andando pela estrada rumo a cidade. Ela os observou dalí.
- Mãe, eu tô com fome! - Disse uma menina aparentando uns sete anos de idade, estava de mãos dadas com a mãe, falava enquanto mexia num saco com comida que sua mãe trazia na outra mão. Se pareciam bastante.
- Precisa esperar, Sofia. Estamos chegando. - Disse rindo e escondendo a sacola da menina.
- Hoje vamos comer algo melhor, com certeza. - Disse o pai, que ia mais a frente, carregava um garotinho pequeno de uns cinco anos no colo.
- É! - Exclamou o menino e todos riram em seguida.
Enquanto as vozes se distanciavam a garota por trás dos arbustos chorava abraçada aos joelhos.
Ela chorou por algum tempo e depois voltou a procurar frutas na floresta. Mas enquanto observava uma árvore, ouviu vozes novamente. Dessa vez vinham de uma parte mais densa da floresta, ela já havia andado um bocado, a curiosidade infantil a atraiu até lá. Mas ao ouvir a palavra "ataque" ela hesitou, com mais cautela ela se agachou e continuou o caminho.
Após transpassar alguns arbustos ela parou, conseguia observar entre as folhas. Um pequeno grupo de homens conversavam ajoelhados em circulo, observavam algo no chão.
- [...] sim, é claro que ele fez. - Disse um deles sussurrando. - Precisa ser rápido, entramos e saímos.
- Precisamos lembrar de evitar os civis. Não quero sangue inocente nas minhas mãos. - Disse um outro, parecia ser o mais jovem alí, não tinha barba, seus cabelos eram curtos e negros, os olhos tão escuros quanto.
- Mas é óbvio, Baruc. Então preparem seus homens, quando o Sol estiver no pico nós entramos por onde planejamos e ao sinal da equipe de Danter atacamos na base portuária. - Concluiu o primeiro homem.
A menina já havia até esquecido da dor em seu estômago, parecia bastante interessada até o momento em que notou que o homem que estava bem em sua frente, chamado Baruc, a fitava diretamente nos olhos.
Em desespero ela recuou ainda agachada rapidamente, se ergueu e partiu em disparada para a cidade, desviando de árvores e pedras. Poucos minutos depois já corria pelas ruelas novamente até que, cansada, resolveu para atrás de um caixote. Enquanto recuperava o fôlego percebeu que o saco velho não estava em suas mãos. Ela foi ao chão novamente, pôs as mãos sobre o rosto enquanto gemia.
Ela se apoia no caixote e levanta-se, volta o olhar em direção a floresta, não havia ninguém vindo, seria arriscado voltar lá? A luz Sol já a incomodava os olhos naquele momento. Então subitamente ela olha para cima, o Sol estava quase no pico. Ela parece ponderar sobre algo, olhando novamente para a floresta. Em seguida franze as sobrancelhas e dispara em direção ao porto.
--//--
O Sol está no pico. A garota se esconde no meio do lixo e observa, extremamente ansiosa, uma banca a poucos metros de distância repleta de caixas cheias de frutas bonitas. Um pouco mais distante dalí ela vê a base dos soldados no porto. Até agora nada. Nenhuma correria, nenhum disparo, nenhuma explosão. Ela põe a mão na barriga, a dor parece insuportável.
É então que, num ato desesperado, ela avança repentinamente, saindo do monte de lixo e indo em direção a banca. O dono está falando com um cliente, ela não vê soldados alí perto. Quando alcança a banca, com rapidez, ela puxa um dos caixotes com força, derrubando frutas no chão e chamando a atenção de todos em volta. O dono das frutas e o cliente correm atrás dela.
A menina segue avançando pelas ruelas segurando o caixote sobre sua cabeça. As vezes ao virar nas esquinas, uma ou duas frutas caem do caixote, mas ela com certeza não parece se importar. Após mais algum tempo correndo ela não escuta mais os passos do vendedor e do cliente, então reduz sua velocidade até parar num beco escuro.
Ela se abaixa e observa as frutas no caixote, todas com cores bem vivas. Ela põe a mão em uma maçã bem vermelha e quando a leva a boca, hesita. A garota observa a fruta por mais um momento, enquanto mantém a mão na barriga, e coloca de volta no caixote. Ergue-se e continua seu caminho.
Quando finalmente chegou na frente do beco ela foi surpreendida por uma mão forte que agarrou-lhe pelo pescoço e prendeu-a contra a parede, no movimento brusco ela acabou largando o caixote e as frutas caíram pelo chão. Ao olhar novamente ela vê o soldado.
- Achou que ia fugir pra sempre, pirralha!? - Era o mesmo homem que havia a perseguido antes. Apesar de não poder ver seu rosto, coberto pelo elmo, ela o reconheceu.
Nesse exato instante um estrondo pôde ser ouvido vindo do porto.
- Temos que ir, Gadril! - Disse o soldado atrás dele. - Esse estouro não é coisa boa! - Disse e saiu correndo rumo ao porto.
O soldado Gadril empurrava a menina contra uma parede adjacente ao beco, então nenhum dos desabrigados conseguiam ver o que estava acontecendo.
- Sua cretinazinha, me transformou em piada na frente dos meu colegas! - Disse e deu um tapa no rosto dela. - "Lá vem o trouxa que não alcança pirralhos!", dizem eles! - Disse e deu outro tapa.
A menina nada dizia, apenas apanhava calada.
- Você não fala nada?! Tá brincando com minha cara?! Quer se fazer de fortona?! - Deu outro tapa. - Fala alguma coisa! - Disse enquanto forçou a boca dela até abrir.
- Não tem língua?! Hahahahaha! - Soltou uma gargalhada e ouviu-se mais uma explosão ao fundo. - Nesse caso... O que você tem aí embaixo? - Disse enquanto descia a mão no vestido surrado da garota e o levantava. As mãos dela estavam ocupadas demais tentando evitar o sufocamento pela mão do soldado.
Subitamente, o soldado leva uma cotovelada no rosto que o faz largar a menina e ser jogado pro lado. A menina cai sobre os joelhos tentando recuperar o fôlego e vê um homem chutar o soldado caído, arrancando-lhe sangue.
Quando ela fixou os olhos no homem, notou que era o mesmo que a viu na floresta.
- Baruc! Vamos embora, antes que eles peguem todos nós! - Gritou um homem que vinha na direção deles e passou correndo pelo beco.
Baruc observou a menina ainda no chão e com o dedo indicador fez sinal de silêncio. Indo embora pelo beco em seguida.
Após se levantar a garota catou rapidamente todas as frutas ainda no chão e pôs no caixote, olhou para o corpo estirado e ensanguentado do soldado e correu para o beco. Chegando lá viu os desabrigados correndo confusos com as explosões, então foi se aproximando do menino ainda sentado na tenda. Ele foi se levantando e correndo em direção a ela, mas de repente uma explosão ocorre acima deles, fazendo a parede logo atrás rachar e começar a tombar.
Em desespero ela solta o caixote e parte em direção ao menino, grunhindo. Pouco antes da parede cair sobre os dois, ela consegue empurrar o garoto com força para outro lado e em seguida a poeira do impacto da parede sobre o chão se levanta.
Após alguns minutos o silêncio imperou naquele beco, apesar de gritos poderem ser ouvidos ao longe nas ruelas. A poeira já abaixava, revelando apenas alguns poucos desabrigados que ainda saiam dali. Então, vindo correndo desajeitado, o garotinho se aproximou dos destroços e encontrou a irmã presa sobre entulho, caída sobre uma poça de sangue.
- Sofia! Sofia! - Exclamava ele, tentando tirar as pedras de cima dela. Mas êxito.
Ela apenas gemia de dor e olhava para o menino. De repente, ao longe, o som de muitos passos puderam ser ouvidos e ao olhar ela viu soldados correndo em direção ao beco.
- Sofia! - Gritava o menino, voltando a puxa-la. Mas sem forças.
Foi nesse instante, que repentinamente, um homem agarrou o menino e o ergueu no colo. Era Baruc. Ele olhou rapidamente para Sofia e para os soldados vindo. Com um olhar triste ele deu-lhe as costas e saiu correndo.
- Sofia! Sofia! Sofia! - Gritava o menino, preso ao ombro de Baruc, enquanto se distanciava.
A visão de Sofia estava turva, mas com o braço em direção ao irmão, a ultima visão que teve foi dele indo embora. Sua visão escureceu e mais nada.
FIM