Rei Frio - Parte 1

Os ventos uivantes do Oeste haviam dado uma trégua junto com a forte neve que caía há dois dias. Por isso que naquele fim de tarde podia se ouvir pequenos passos rumo ao lago congelado. Eram passos pequenos e rápidos vindos de uma silhueta que se perdia na imensidão branca. Aquele garoto, envolto com a roupa quente e pesada dos extintos caçadores, se aproximava com cuidado até o centro do lago, ajoelhando-se sob a água congelada. Colocou um cesto de palha torcida ao seu lado e tirou algumas ferramentas de dentro. Sabia bem o que estava fazendo, havia aprendido com o melhor.

Fazia esse caminho sempre que precisava de mantimentos e comida. Do vilarejo de Éstiormh ao lago, do lago até a casa abandonada da família Defelth, passando as ruelas de mármore e assim de lá para sua casa. De dois em dois dias. Claro que tudo dependia do clima e da movimentação da guarda do rei. Aquilo era contra lei, seria punido se o vessem pescando. Mas nunca acontecera, então de certa forma não temia tanto. Pegou o serrote.

“O corte deve ser bem delicado. Se não souber forçar na intensidade certa, o gelo se quebra e a água te engole.” Disse o garoto aquelas palavras que aprendera com o melhor. Cortou o gelo em forma de círculo pegando a pinça em seguida. “Finque bem ao meio e puxe em seguida.” E assim fez.

Aproximadamente 10cm de gelo fora puxado para a superfície. Era apenas aquilo que o separava da fria água. “Cinzentos são bem resistentes ao rigoroso frio da água. São os peixes mais fáceis de se pescarem no inverno.” Aquelas palavras saiam de sua boca, como se estivesse acontecendo aquilo de novo naquele dia. Palavras que gravara em sua mente ainda com o som forte e rouco da voz do melhor caçador que conhecera. Seu pai. “Cinzentos são os peixes mais abundantes aqui no Oeste. Às vezes nem precisamos de iscas para pega-los.”

O garoto sorriu.

Pegou o arpão. Era só agitar um pouco a água para que aqueles peixes começassem a imergir à superfície. “Gelo abundante, época de reprodução.” Dizia seu pai há mais ou menos um ano atrás.

E ele tinha razão. Três cinzentos já haviam pulado para fora como tiros de um canhão. Quando mal havia pego o terceiro peixe, mais dois saltaram da gélida água. Já era o bastante. A luz do dia se esvaía e antes de ver as estrelas do céu, tinha que estar de volta ao vilarejo. “Ele” saberia que havia saído sem permissão e usado as práticas proibidas. Pegou os peixes, conferiu a quantidade e guardou os no cesto, junto com as ferramentas. Tapou o buraco no gelo e pôs-se a correr. Ao chegar perto da estrada de Éstiormh, observou se algum guarda se encontrava ali. Notando que não, se agilizou sob as escadas e entrou na casa abandonada dos Defelth. Eles eram uma família muito próspera que se rebelaram contra “Ele” e pagaram seu preço. Assim como seu pai. Desde então ninguém mudara para lá, dando esconderijo a algumas aves e roedores fedorentos. Ele passou entre os entulhos que ficavam ao lado dela caminhando em seguida pelas ruelas como se nada tivesse acontecido. Ainda haviam pessoas caminhando por elas então só teve que prosseguir seu caminho. O fogo das tochas que cercavam as casas estava sendo acesas pelos sacerdotes da crença do gelo, e os guardas noturnos já começavam a ocupar seus postos. “Bando de idiotas ignorantes.” Mais uma vez ouvia a voz de seu pai em seus pensamentos. Haviam sido eles o começo da extinção dos caçadores do Oeste. Eles seguiam “Ele” e faziam de suas palavras leis. Tudo isso graças as escrituras do livro de Barbato, o grande líder das aldeias brancas. “Bando de idiotas ignorantes!”

Ao longo que se aproximava de sua casa, muitos dos que ainda andavam nas ruelas colocavam a atenção no garoto. Toda a sua família era vista como hereges. Isso foi bem chocante e cruel no início, mas depois descobriu as vantagens. Na maioria das vezes era ignorado por todos, mesmo se carregasse aquele cesto para lá e para cá. Assim podia alimentar sua família sem se ajoelhar para “Ele”.

Cruzou o pátio em frente a capela, precisando apenas seguir a rua de mármore para chegar enfim à sua casa. Missão cumprida. A noite ainda não havia consumido todo o céu e o jantar estava garantido.

Assim que entrou, sentiu de imediato um alívio. O calor do interior da casa o alcançou deixando um sorriso sobre o seu rosto. Pôde tirar a roupa mais grossa e o pesado cesto e coloca-los sob a mesa da cozinha. A casa era antiga, mas ainda servia para morar. Os povos do oeste em sua maioria, faziam sus casas com a madeira da árvore-de-ferro, pois conseguia segurar a temperatura quente em seu interior sem ter que usar muitos artifícios. Um modo mais econômico para não morrer de frio.

O garoto ainda sorria.

“Um dia você será o melhor caçador que o Oeste já viu!” Acreditava que aquelas palavras começavam a fazer sentido.

Agora, sem as grossas roupas cobrindo seu corpo, dava pra ver suas características físicas com mais nitidez. Era sem dúvida alguma descendente dos Krekopânes. Rosto magro, gelo nos olhos e a noite nos cabelos que caíam abundantes pela testa. Não tinha mais que 13 anos.

- Apollo!!! – disse uma voz infantil à sua frente. Era seu irmão mais novo. Uma cópia sua mais jovem e pequena. Ele estava chorando. – Mamãe teve dores mais fortes hoje. Tive que mexer nas ervas e preparar um chá. Ela adormeceu a pouco. Estou preocupado.

Friedden era seu nome.

“Você sempre cuidará dele, me promete?” Fora uma promessa. Apollo abraçou seu irmão. Limpou as lágrimas do canto dos seus olhos e o olhou com certa afeição.

- Fique calmo Fried, as coisas vão se resolver, mamãe ficará bem. Consegui pescar alguns cinzentos, faça um favor, limpe as escamas. Já volto pra te ajudar, tudo bem?

O pequeno Friedden assentiu engolindo a mágoa que fervia em sua garganta.

“Você cuidará dela também, me promete?” Era a promessa que mais doía em ser lembrada.

A pequena sala da lareira ficava ao lado da cozinha e Apollo percebeu que o fogo estava tímido. “Mais madeira para criar calor.” Pensou ele. E assim fez. Ouviu um leve gemido vindo do quarto. “Mamãe!!!”

Correu para lá e se deparou com ela agonizando de dor.

“As dores serão mais fortes com o tempo. Ervas de gelo podem ajudar como anestésico, mas é bem difícil garantir que dure por muito tempo.” Foram as últimas coisas que ouviu do patriarca da família Defelth antes dele morrer na fogueira anual. Ele ajudara os tanto no começo.

As dores ficavam mais fortes com o início da noite. Mas nunca foi tão forte. Ela estava mal. Muito mal.

Apollo se aproximou e terminou de dar a dose de chá que Friedden preparara. Ela bebeu nervosamente. Houve mais alguns gemidos, mas a erva fez logo seu efeito.

- Descansa um pouco mais. – Disse ele delicadamente.

Ela o olhou. Olhos gélidos. Era a doença. Sorriu um sorriso fraco, mas cheio de afeto. “Mamãe?” Era difícil pensar que ela estava mesmo debilitada daquela forma. “Ele” fez isso com ela. Nunca o perdoaria, nunca.

Todos os rebeldes eram contagiados pela peste de gelo. Era a máxima punição, sem cura ou tratamento. As dores vêm no início, depois a paralisia, por fim a fria morte. Tão fria quanto o Oeste.

Apollo esperou que ela dormisse e voltou para a cozinha onde Friedden se encontrava descamando os cinzentos. Eles adoravam cozinhar juntos. Fariam aquele ensopado com raízes de verão e algumas ervas aromáticas. O caldo ficava picante com uma consistência rala, mas com bastante sabor. Comeram em seguida com pão velho. Estava muito bom. Em seguida os garotos foram até o quarto para dar de comer à mãe. Apollo tocou a pele pálida e gelada do braço desnutrido de sua mãe fazendo a despertar do cochilo. Foram três colheradas apenas, melhor que no dia anterior. Ela sorriu. Eles sorriram de volta. Já era tarde, o momento pedia um descanso. Friedden deitou em sua cama e não demorou para cair no sono. Apollo ficara mais um pouco ao lado dela. Ainda gelada, ainda imóvel. Era triste o que estava acontecendo. Antes de vê-la fechar os olhos novamente, ouviu sua voz, fraca e desgasta dizendo “Eu amo vocês.”.

A noite se estendeu com um sono turbulento. Lembrava de ter dormido apenas duas horas. A madrugada estava em prantos. Era Friedden. O que havia acontecido?

Ele lembrou da última conversa que teve com sua mãe sã. “Eu estou doente, logo, logo vou morrer. Só restarão vocês dois. Honre o nome dos nossos ancestrais. Cuide do Friedden, cuide de você. E assim que você me ver morta, sairá dessa casa. Ateará fogo aqui com o meu corpo dentro. Você saberá o que fazer depois.”

Estavam com roupas pesadas e quentes, mas o frio era perverso lá fora. O contraste da neve que caía sem pressa de acabar com as altas chamas que emanavam da casa era muito bonito. Friedden apertava a mão do irmão com força, deixando suas lagrimas caírem abundante sobre o rosto jovem. Olhou para Apollo. Ele estava firme, sem demonstrar nenhuma emoção. Lembrava seu pai. Tinha que ser assim.

O barulho do incêndio chamou a atenção de alguns guardas que já faziam presença ali para saber o que estava acontecendo. Moradores também demonstravam curiosidade e jogavam pragas enquanto outros rezavam com estátuas de barro na mão. Por último pôde se ver dois sacerdotes se aproximando, também rezando com seus rostos perplexos iluminados pelo fogo.

“... Você saberá o que fazer depois.” Não mesmo. Apollo não tinha a mínima ideia do que fazer. Seriam punidos assim como os Defelth, assim como o pai, como sua mãe cujo corpo ardia nas chamas.

A neve começou a cair violentamente naquele momento aumentando ainda mais o clima amedrontador daquela madrugada. Ouviram algo. Era como o pio de uma ave de rapina das montanhas. Era assustador. Intimidador. Houve um barulho, alguém estava ali na frente deles. Um homem vestido com a roupa dos extintos caçadores e montado em um Grifo de penas brancas e olhos vermelhos como o fogo que queimava à suas costas. Friedden apertava cada vez mais a mão do irmão, que agora, também demonstrava medo. O caçador estendeu a mão para Apollo e disse para confiar nele e montar no monstro. Era isso ou ficar e morrer. “... Você saberá o que fazer.”

Sim. Agora ele sabia o que fazer. “Obrigado mamãe!”

Pedro A Franco
Enviado por Pedro A Franco em 21/08/2019
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