Poeta

No Leste Europeu, um pequeno país passa por uma série de convulsões sociais que acabam lançando-o à guerra civil. Não tardou para que as imagens dos conflitos rodassem o mundo, chocando a comunidade internacional, que logo tratou de mobilizar-se a fim de mediar as tensões e evitar uma tragédia semelhante à dos conflitos de desintegração da antiga Iugoslávia. Como a diplomacia e as vias políticas foram se esgotando, por fim, a via militar fora acionada, e uma coalizão de exércitos de potências estrangeiras foi formada para atacar alvos estratégicos dentro do pequeno país, visando forçar as partes beligerantes a um ponto de inflexão.

As forças armadas do pequeno país, fragmentadas pela guerra civil e fragilizadas por um embargo de armas, viam seus meios defensivos tremendamente desguarnecidos para fazer frente aos constantes ataques aéreos da coalizão. Mas, mesmo assim, buscavam fazer jus à missão e mantinham-se alertas às ameaças que vinham do ar na forma de bombas inteligentes, mísseis de cruzeiro e bombardeiros stealth, logrando, pelo menos, o êxito de manter o avanço dos atacantes lento e acautelado.

E é aqui que a nossa história começa.

Ao sul deste pequeno país, região eminentemente rural, um batalhão conduzia sua bateria antiaérea por entre as montanhas, vales e florestas, buscando bravamente cumprir a função de manter os céus da região livres da ameaça da coalizão, ao mesmo tempo que ocultava-se da superioridade tecnológica do inimigo, através de uma tática de guerrilha do tipo “bater e correr”. Isso dava relativamente certo no que toca à sobrevivência da bateria, mas suas limitações operacionais não impediam o trânsito relativamente seguro do inimigo pelos céus da região, próxima à fronteira. Isso frustrava o comandante da bateria, que pensava constantemente em como cumprir bem com seu papel, mas sem expor seu batalhão ao perigo de ser fatalmente alvejado.

Certa tarde, chuvosa, sentado no para-lama do veículo-radar, que estava estacionado sob frondosos pinheiros, o comandante fumava e refletia sobre como enfrentar a ameaça que deveria combater. Não tinha muita ideia, principalmente no que tocava aos aviões stealth, cujos radares da bateria não tinham como rastrear. Digo, tinham como rastrear, porque esses aviões “invisíveis” não são propriamente invisíveis às telas do radar: eles aparecem nelas, mas do tamanho de um pequeno pássaro, como um beija-flor ou coisa do tipo. A questão é que a tecnologia empregada nesse tipo de aeroplano “reduz” seu tamanho ao radar, o que torna praticamente inviável sua detecção. Afinal, para detectar um avião stealth, o radar também deveria detectar todos os beija-flores e outros pequenos pássaros que voassem pela região.

- Ora, qual operador de radar conseguiria distinguir um pardal de um F-35? - Questionava-se, desolado, o comandante. Dava seus tragos, lançando a fumaça aos ares gelados da floresta, fitando curiosamente a movimentação das aves nos galhos da árvore sob a qual se abrigava.

Foi aí que ele teve uma ideia.

Jogando o cigarro apressadamente para o lado, correu até a estação de comando e tratou de chamar, via rádio, a central da cidade mais próxima. Requisitou que seu primo, um poeta residente dali, fosse convocado imediatamente para o serviço no batalhão.

Rindo-se sozinho, o comandante desligou a ligação e esfregou as mãos, esperançoso de ter encontrado alguma solução para seus problemas.

- Senhores! Esquentem os motores! Estamos de partida para a cidade. - Gritou aos subordinados, despindo a japona e saltando na cabine de seu veículo. Sem demora, partiram dali, antes que a espionagem eletrônica inimiga capturasse sua última transmissão e rastreasse sua localização.

***

Na manhã seguinte, o primo poeta do comandante apresentava-se ao serviço, trêmulo, em trajes civis. O militar abraçou-o, agradecendo seu pronto comparecimento.

- Primo, cá entre nós… Só não entendo o porquê de ter me chamado! Sou velho, fraco, e não tenho experiência em armas… Ainda mais em armas sofisticadas, como radares e mísseis antiaéreos! - Questionou, o poeta. O comandante, sorrindo, lhe respondeu:

- Fique tranquilo, primo. Você estará seguro conosco. Tenho uma tarefa para você que, acredito, servirá bem à pátria. Venha comigo. - E, envolvendo firmemente seu braço direito ao redor do ombro do parente poeta, o comandante encaminhou-o até o veículo onde serviam os operadores de radar.

Chegando ali, os jovens operadores logo postaram-se de pé, em continência ao comandante. Este, dispensando-os da formalidade, logo tratou de puxar uma cadeira e sentar o primo perante a grande tela:

- Primo, veja isto. Cada ponto desses no radar, é um avião em trânsito. Os nossos, são esses marcados em verde. Os do inimigo, aparecerão em vermelho, quando surgirem.

- Mas… Não há nenhum vermelho aqui… - Respondeu o poeta, perscrutando as informações da tela. O comandante respondeu:

- Exatamente. É aí que você entra. O inimigo possui aviões e mísseis “invisíveis” ao nosso radar. Isso é um problema, pois para que eu possa enxergá-los, preciso ajustar o radar a um ponto em que até um pequeno rouxinol apareça na tela. É óbvio que isso é um empecilho grave, meus operadores não saberiam distinguir um pássaro de um caça. Porém, você saberá.

- Mas… Como assim? - Redarguiu, atônito, o poeta, voltando-se para o primo, tentando entender onde este queria chegar com aquela breve explanação. O comandante, confiante, respondeu-lhe:

- Já li suas poesias. E sei do seu amor pela natureza. Para poder escrever como você escreve sobre pássaros, animais e flores da floresta, você deve ter um olhar muito sensível a essas coisas. Por isso, vou ajustar nosso radar ao limite, e você verá, entre os pontos vermelhos que despontarão na tela, qual é ave e qual é avião.

Boquiaberto, o poeta não disse mais nada. Pensava em quão insano o plano de seu primo parecia ser. Os operadores, presentes à cena, entreolharam-se ironicamente, pensando na missão impossível que seu comandante relegava ao inusitado recruta.

- Ei! Vocês! Ensinem a ele como operar o equipamento, e ajustem-no para a varrição mais fina possível. Nós finalmente pegaremos alguma coisa dessa vez. - Ordenou o comandante aos operadores do radar, que responderam positivamente com nova continência. Apertando os ombros encolhidos do primo poeta, o comandante despediu-se da equipe, pondo-se em marcha para o veículo de comando, donde ordenaria o deslocamento da bateria aos vales nevados, onde se colocariam em estado de prontidão naquela noite.

***

Após uma tarde exaustiva de instruções, o poeta ficou a par de tudo o que era necessário saber sobre o radar, e aceitou, resignado, sua missão. Assim que o aparelho foi ajustado para a varrição mais fina, uma centena de pontos vermelhos pipocou na tela, movimentando-se aleatoriamente, arrancando-lhe suores da testa. Como ele, um pobre poeta, professor desempregado, conseguiria localizar um bombardeiro de milhões de dólares, pilotado por uma equipe extremamente profissional e treinada? Seu primo só poderia estar louco.

E, dessa forma, passou as quatro noites seguintes em claro, vendo aquela multidão de pontos vermelhos dançar diante de seus olhos, sem conseguir distinguir qual seria um possível alvo.

Porém, na quinta jornada, com a equipe já desacreditada do plano maluco do comandante, o poeta viu um “pássaro” comportar-se de forma estranha na tela. Seus movimentos não pareciam naturais, e uma suspeita despertou no seu coração acelerado. Tenso, chamou pelo oficial presente, para que ele emitisse uma ordem de detecção de alvo. A equipe, incrédula, mesmo assim se colocou totalmente à disposição do comandante, que ordenou o abate assim que recebeu a informação.

A bateria lançou cinco mísseis contra o provável alvo, e o batalhão aguardou, tenso, o desenrolar da ação. Finalmente, após poucos segundos, cinco estampidos repentinos pipocaram sobre as nuvens que encobriam o céu gelado da região. Aplaudindo a equipe, que agiu pronta e profissionalmente, o comandante ordenou a retirada imediata da bateria, fugindo para o meio das matas, a fim de disfarçar sua posição de um iminente contra-ataque.

Lançando-se ao rádio, o comandante pôs-se a perscrutar as comunicações da região, buscando saber se algo fora derrubado naquele ataque. Ao amanhecer, recebeu a notícia de que os destroços de um F-22 foram avistados fumegando na planície, a cinco quilômetros da posição do disparo dos mísseis. As equipes de reconhecimento informaram que os restos do avião mostravam que a causa provável de sua queda fora por míssil antiaéreo. O piloto também fora capturado, ferido, envolto em seu paraquedas, não muito longe dos destroços, e confirmou aos captores que fora abatido.

O comandante correu, exultante, para o meio dos veículos de sua bateria e, lançando um estridente assobio ao ar, convocou todos os subordinados a comemorarem com ele o sucesso da missão. O batalhão urrou, uníssono e triunfante, e o moral da tropa elevou-se como nunca. Haviam derrubado um avião “inderrubável”! Era uma façanha inédita! Uma aeronave de ponta, anos-luz tecnologicamente à frente dos velhos mísseis da bateria, fora derrubada por aquela equipe!

O comandante concedeu à tropa uma tarde de folga, em recompensa pelo feito. O poeta, incrédulo de si, fora elevado a herói imediatamente. Sua sensibilidade poética lhe permitira distinguir o voo técnico de um avião de guerra do bailar das aves na tela do radar. Ele não fazia ideia do êxito de seu feito, que injetara confiança nas veias das forças de defesa do pequeno país, fustigado pelos bombardeios da coalizão de potências militares.

Esta história logo extrapolou os limites daquela guerra, e correu pelos meios noticiosos, assombrando o meio militar internacional. Ninguém imaginava que um F-22 Raptor pudesse ser abatido por uma velha bateria antiaérea dos tempos da Guerra Fria.

Mas, isso não parou por aí. Aquele batalhão ainda interceptou mais três aeronaves e cinco mísseis de cruzeiro, tudo graças ao olhar apurado do poeta na tela do radar, bem como da destreza do comandante e sua equipe, que conseguiram se manter safos em sua estratégia de guerrilha até o findar da guerra. E a guerra, que durou poucas semanas, resultou numa mais que esperada derrota das forças de defesa daquele país perante a grande coalizão, o que forçou a trégua entre as partes beligerantes da guerra civil, para alívio das populações flageladas pelos bombardeios e combates.

***

Depois de anos, as vitórias daquele batalhão antiaéreo permanecem como uma façanha escrita nos anais da arte da guerra, e expuseram as brechas da aviação militar de ponta, forçando o redesenhar dos mísseis e aeronaves stealth, bem como da doutrina que os acompanha.

O batalhão foi desmobilizado com o fim da guerra, e os veículos que constituíam sua bateria antiaérea estão expostos no museu militar na capital daquele pequeno país. Os combatentes que o compuseram são tidos como heróis nacionais, com o poeta em especial destaque. As histórias daquela tropa são um bálsamo às feridas abertas pela guerra civil e pela derrota frente aos interventores estrangeiros, o que contribui para um certo alívio aos traumas recém adquiridos por aquele povo.

Inesperadamente, um dos resultados positivos dos impressionantes feitos do batalhão foi um aumento no interesse por poesias pela população, com as composições do poeta-combatente sendo alçadas ao posto de best-sellers.

Hoje, o poeta vive numa casa simples, na zona rural do sul do país, naquelas mesmas paisagens de montanhas e vales que foram o cenário de sua participação inusitada na brava defesa dos céus de seu país. Para além de discussões sobre qual lado beligerante estava certo ou errado naquele triste conflito, o feito do poeta é tido, inclusive pelos seus antigos inimigos, como incrível. E, por isso mesmo, as tripulações dos aviões que ele ajudou a derrubar (nenhum morreu - todos ejetaram-se antes da queda) organizaram uma viagem até a casa do poeta, anos após o fim da guerra, para conhecê-lo e conversar sobre suas experiências.

Depois disso, desenvolveram uma incrível amizade e, sempre que podem, se encontram na sua casa, entre cervejas e risadas, compartilhando histórias e poesias, celebrando a paz.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 20/08/2019
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