O escravo do capitão
Na noite de 2 de julho de 1863, o capitão Derrick Elliott, de Winchester, Virgínia, foi gravemente ferido ao dirigir uma carga de cavalaria contra uma posição dos ianques em Gettysburg. Seus comandados tiveram que bater em retirada, sob fogo de artilharia, e mal conseguiram se reagrupar atrás das linhas confederadas, onde seus escravos os aguardavam. Atendido por um cirurgião de campanha, este logo mandou chamar o capelão.
- Não havia muito o que eu pudesse fazer, só ministrei algo para diminuir a dor - declarou o esculápio ao sair da barraca usada para cirurgias, limpando as mãos no avental manchado de sangue. - O capitão não estará mais conosco em poucas horas.
O capelão chegou pouco depois e sentou-se ao lado do moribundo, para tomar sua confissão. Em seguida, Moses, escravo pessoal de Elliott, foi chamado para receber as últimas instruções do seu amo. O pobre negro saiu da barraca com o rosto contraído de pesar; eu o vira muitas vezes acompanhando Elliott em seus deslocamentos com o 26º Regimento da Carolina do Norte, e registrara várias manifestações da sua lealdade. Todavia, ao entrar sob a lona que cheirava à éter e sangue, e sentar-me à cabeceira do capitão para despedir-me dele, não pude disfarçar minhas dúvidas.
- Capitão, como seu subordinado, devo lhe perguntar quais foram suas ordens finais para o negro Moses... imagino que mandou-o retornar à sua fazenda, na Virgínia, levar seus pertences?
Elliott, face lívida, encarou-me com os olhos azuis bem abertos, como se estivesse surpreso.
- O que esperava que eu fizesse, Lloyd? - Sussurrou entredentes. - Moses é meu criado de confiança, me acompanhava antes mesmo de eu entrar para o exército... não posso destacar um único soldado confederado para esta missão, e creio que deposito mais confiança em Moses, que conhece minha família, do que num desconhecido...
- Mas capitão... o momento atual é delicado - ponderei. - A União declarou libertos os escravos nos estados confederados... confiamos nos negros enquanto podemos manter um olho neles, mas o que dizer de um que viaja por sua conta, e carregando os bens do seu amo? Quem poderá dizer que ele não irá fugir para o Norte, juntar-se ao exército ianque?
Elliott respirou fundo, e sua respiração agora tinha um nítido chiado. Precisei inclinar-me para ouvir melhor o que ele me respondeu.
- Lloyd... não ponha em dúvida a lealdade do meu escravo. Se ele não for capturado ou morto no caminho até Winchester, vai entregar tudo o que pus nas mãos dele aos meus pais... cada centavo dos 47 dólares que tenho na carteira. E quer saber como tenho certeza do que digo?
- Como, capitão?
Elliott me deu um sorriso pálido, que se transformou num esgar de dor.
- Por que a família dele também está lá, Lloyd... toda ela.
Meia hora depois, Derrick Elliott veio a óbito. Pela manhã, Moses e outro escravo o enterraram sob uma árvore seca, numa fazenda abandonada. Em seguida, Moses partiu para o sul, montado na égua reserva do capitão.
Um ano depois de terminada a guerra, Moses e o irmão mais velho do capitão localizaram a sepultura do mesmo, desenterraram seus restos mortais, e os levaram para sepultamento na terra natal.
Efetivamente, o capitão Elliott estava certo, sobre as razões da lealdade do escravo para consigo.
- [02-07-2019]