Histórias para dormir

[Continuação de "A política por outros meios"]

No fim da tarde, um automóvel oficial do Exército da Valáquia deixou a major Carla Voiculescu em sua residência, uma confortável casa de dois andares num subúrbio aprazível de Târgoviste. Ela retribuiu a continência que o soldado de guarda no portão lhe prestou, e entrou. A filha, Isabela, veio correndo ao seu encontro, acompanhada pela empregada, Afina.

- Mamãe! Mamãe! Você veio mais cedo! - Exclamou a menina, pulando nos braços dela.

Carla pôs a menina no colo. Isabela estava com 7 anos de idade, mas compensava as ausências a trabalho da mãe fazendo com que a tratasse quase como um bebê.

- Sim, não precisei ficar na Torre Chindia até tarde hoje - redarguiu ela. E voltando-se para a babá:

- O que fez para o jantar, Afina?

- Temos tocanita e sarmale, doamnâ.

- Ótimo! - Exclamou Carla. - Eu vou tomar um banho e depois lhe ajudo a pôr a mesa...

Carla viera do interior da Valáquia e jamais se acostumara com uma empregada cuidando dela, mas isso era uma exigência da sua função, não uma regalia; todavia, quando ficara grávida de Isabela, ter alguém para ficar com a menina enquanto ela viajava, viera a calhar.

- Está bem, doamnâ. Já coloquei a sua muda de roupa no banheiro - replicou a empregada.

Afina já estava há praticamente dez anos com Carla Voiculescu, e acostumara-se com os modos despojados desta. No início, tentara afastar a major da execução de tarefas domésticas, já que as entendia como sua atribuição, mas Carla insistia em ajudar, e ela acabara conformando-se e até apreciando os pequenos atos de gentileza da patroa.

- Você é a pessoa mais próxima de mim, Afina - dissera-lhe Carla certa feita. - Minha mãe tem que cuidar das minhas irmãs, e nem sempre pode se deslocar para Târgoviste... não há muitas outras mulheres oficiais no exército, e nenhuma delas têm a minha responsabilidade. Portanto, você e Isabela são toda a minha família, para todos os efeitos práticos.

Afina era dois anos mais nova do que Carla, e a respeitava como se fosse uma irmã mais velha. Além disso, tinha uma vaga ideia da importância da patroa, não só para as Forças Armadas da Valáquia, mas para o principado, como um todo. A major Carla Voiculescu era peça importante no esquema de defesa da Valáquia contra agressores externos, desempenhando o seu papel com a mesma seriedade e eficiência que outras detentoras do cargo, ao longo de séculos e séculos de história valaquiana. Carla Voiculescu, Afina não tinha a menor dúvida, era uma heroína.

Depois do banho, Carla arrumou a mesa de jantar. Sempre sentava-se com Isabela num dos lados, e Afina de frente para elas. As cabeceiras usualmente ficavam vazias, exceto nas raras ocasiões em que alguma alta patente era convidada para jantar.

- E como foi seu dia, Afina? - Indagou Carla, após servir-se de rolinhos de repolho recheados - o sarmale.

- O de sempre, doamnâ. A preceptora de Isabela veio pela manhã, e almoçou conosco. Depois que saiu, fui com Isabela fazer compras no mercado...

- Afina comprou um papanasi pra mim, mamãe! - Exclamou Isabela.

Carla abanou a cabeça, ar de riso.

- E isso depois do almoço? Que fome, hein pequena?

- Foi só um, doamnâ. E ela me deu um pedaço...

- É bom saber que minha filha é generosa - aprovou Carla.

Depois do jantar, a major ainda tinha trabalho a fazer no escritório do andar superior. Quando terminou, já eram quase nove da noite e ela tinha uma última tarefa a cumprir, no quarto da filha. Afina já a colocara na cama, e ela aguardava a chegada da mãe, muito circunspecta sob o cobertor.

- Muito bem, mocinha. Já escovou os dentes?

- Já mamãe!

- E fez suas orações?

- Sim, mamãe!

- Muito bem - disse Carla sentando-se na beirada da cama. - E qual história quer que eu conte hoje?

- A da princesa que não ria, mamãe.

Carla fez cócegas no pescoço da menina, que riu.

- Você não poderia nunca ser a princesa Constanta... ri de qualquer coisa! - Troçou.

- Vamos, mamãe, conte! - Protestou Isabela.

- Está bem, vamos lá... - replicou Carla, segurando a mão que a filha deixara fora do cobertor. - Era uma vez, uma princesa, que vivia num castelo muito grande, e ela não achava nada engraçado...

Carla já contara aquela história dezenas de vezes, mas agora, pela primeira vez, apercebeu-se de que a princesa do conto tinha uma forte razão para não achar graça no mundo. Ao redor da Valáquia, tudo o que restara parecia ser uma corrente infindável de ódio.

Cabia a ela manter esse mal bem longe dali. Inclusive, pelo bem de Isabela.

[Continua em "Missão de Misericórdia"]

- [16-06-2019]