A viagem que nunca esqueceu

Amanheceu muito ansioso. Prometeram-lhe que o traficante iria ligar naquele dia. A regra era muito clara: tinha apenas que esperar a ligação, nunca tomar a iniciativa de tentar se encontrar com a quadrilha que transportava pessoas para os EUA. Era gente perigosa e todo o cuidado era pouco no trato com eles.

Já era fim da tarde e nem sinal da tal ligação prometida. Provavelmente dera tudo errado. Pode ser que os traficantes não tenham tido interesse. Sonhara com essa viagem à muito tempo. Seria uma oportunidade única. Ganharia dinheiro, muito dinheiro, e depois voltaria, quem sabe, para montar um negócio aqui no Brasil. Estava disposto a tudo, tinha saúde e juventude para qualquer tipo de trabalho. Pegar peso, lavar banheiros, entregar encomendas, cortar grama, o que viesse ele toparia. Nem o fato de não saber inglês seria empecilho na conquista de sua independência. Já soubera de muitos casos de pessoas que não sabiam falar inglês e após alguma dificuldade tinha conseguido se firmar no mercado de trabalho de lá.

À noitinha, finalmente, o traficante liga. Após algumas palavras, diz seu preço: US$ 10.000, que teria que ser pago por seus parentes no Brasil em depósito bancário tão logo chegasse em solo americano em segurança. E se não pagar?. Bem, há duas opções: ou trabalha de graça durante dois anos nos EUA para pagar a dívida, recebendo apenas comida ou simplesmente morre. Tinha também de arcar com as despesas de passagens e acomodações em Ciudad Juarez, que fica na fronteira com os Estados Unidos, nas vizinhanças do deserto de El Paso . Teria que pagar ao grupo na cidade mexicana US$ 100,00 a diária, custo a que estava incluídos a acomodação, comida e transporte para a fronteira.

O prazo seria dois dias para pensar e confirmar se estava interessado. Caso aceitasse receberia as instruções de como proceder.

Eufórico, no outro dia vende seu carro, que já tinha deixado apalavrado. A venda daria para completar o que estaria precisando para o embarque à terra que sempre sonhara morar. Com o dinheiro na mão, confirma que quer ir. O traficante informa que ele deve adquirir a passagem aérea. Especifica que o voo escolhido é o que parte de Guarulhos pela Companhia Aeromexico no dia 25 de dezembro às 9:40h com chegada prevista às 17:40h. Ao desembarcar no Aeroporto Internacional Benito Juarez na cidade do México, deve esperar um veículo do tipo Van na Calle Sonora, em frente a porta 2 do terminal doméstico. Do terminal internacional para o doméstico existe um transporte gratuito, não havia com que se preocupar. A partir daí tudo seguiria segundo determinação do pessoal de lá.

O pacto com seu destino finalmente estava selado. A alegria era imensa. Tudo daria certo na sua vida, finalmente.

Após 8 horas de voo, estava no México. Entra na Van com mais 4 brasileiros e após 30 horas viajando chega à Ciudad Juarez, distante aproximadamente 1800 km da cidade do México. Dentro da cidade, a Van se dirige veloz ao bairro de Vista de Zaragoza, onde estava situada a casa que passaria a ser sua morado nos próximos dias. Dois traficante se revezaram na direção da Van todo esse trajeto. Um era brasileiro, que falava o tempo inteiro, contando vários casos de sucesso na condução de imigrantes ilegais e o outro era um mexicano extremamente calado e mau humorado. A casa possuía três quartos. Já estavam lá 20 pessoas, segundo o traficante brasileiro. Seria um único banheiro para todos. Quanto as mochilas, cada um teria que tomar muito cuidado. Importante não esquecer de deixá-las sempre fechadas com cadeado. Não eram poucos os casos de brigas por roubos na casa.

A casa tinha um forte mau cheiro. A cozinha era imunda. Notou logo algumas baratas na pia. Não havia fogão nem geladeira. Os traficantes trariam as três refeições diárias. Sair da casa era terminantemente proibido. À noite dois grupos de traficantes viriam apanhá-los por volta das 22:00h rumo à fronteira americana. Ninguém podia se atrasar. Mochilas deveriam estar previamente preparadas na hora certa. Se alguém adoecesse seria expulso da casa devendo retornar imediatamente para o Brasil. Todos sabiam que atravessar o deserto requer saúde e muita disposição. Os traficantes informaram que na proximidade da fronteira, no lado do Texas, atuava o grupo Guardian Patriots, a milícia americana formada por gente fortemente armada que patrulhava a fronteira em busca de imigrantes ilegais. Se alguém levasse um tiro ou ficasse ferido no trajeto teria que se virar sozinho. Não haveria ninguém para socorrê-los. Cada um deveria tomar conta de sua própria provisão de água, elemento essencial durante a travessia do deserto de El Paso.

No dia seguinte, a excitação do grupo era muito grande. Infelizmente, na hora combinada, o telefone na casa toca e o traficante informa que não seria possível irem para a fronteira americana. Os Patriots estavam na proximidade do ponto de travessia, segundo informantes do outro lado da fronteira. Teriam todos que aguardar. Isso se repetiu durante os quinze dias seguintes. Todas as noites a frustração dominava os ânimos do grupo de brasileiros na casa. Nada podia ser feito, apenas esperar a oportunidade tão aguardada. A impaciência era visível. Pequenas brigas e discussões começaram a ocorrer. Ninguém tinha paciência para mais nada. Criou-se um clima insuportável, agravado pelo fato de não se poder ao menos dar uma volta na calçada da casa para não levantar suspeitas da polícia mexicana.

No décimo sexto dia finalmente as Vans chegaram para transportá-los para a fronteira. Todos se a apressaram em um alvoroço frenético. Chegara o grande dia. Tudo terminaria bem.

Todas as Vans se dirigiram para o mesmo local. Lá foram recepcionados por três coiotes, como eram conhecidos os traficantes que os guiariam pelo deserto. Um deles portava um rádio comunicador. Com esse equipamento era possível a comunicação com os comparsas do outro lado , que informariam continuamente qualquer movimentação da polícia americana ou mesmo dos Patriots. Após algumas instruções a travessia teve inicio. Atravessaram o Rio Grande em barcos pequenos e chegaram do outro lado da fronteira. O deserto na frente seria então o seu maior desafio.

Após 3 horas de caminhada por entre os arbustos do deserto, enfrentando um enorme cansaço e as bolhas nos pés, ouvem barulhos de helicópteros. Como por mágica são surpreendidos pelos faróis das caminhonetas da polícia americana. Todos tentam se dispersar. Tarde demais. Apenas os três coiotes e mais 4 brasileiros conseguiram se evadir. Todo o restante do grupo foi preso. Sua viagem terminara com a volta para casa, deportado após uma espera de 4 meses sob custódia da justiça americana.

Cabedelo, 25 de maio de 2019