UMA HISTÓRIA NA CHINA - O SEGREDO DE MIE SHU
De todas as viagens que fiz até hoje, a China nunca perdeu para nenhum outro país no quesito Lugar Estranho.
São muitos os povos que vivem ao redor do mundo e a minha profissão de escritor viajante me proporciona vivenciar fatos tidos como inacreditáveis para as pessoas que porventura tiveram o privilégio de ler as minhas histórias.
Já presenciei rituais religiosos, danças regionais inusitadas, comidas extravagantes (algumas intragáveis e outras simplesmente divinas), casamentos inusitados, etc.
Mas a China tirou o meu sono.
Sabia que os chineses eram cheios de tradições, metodologias, senso de justiça incomparável e eu até conhecia a aura de mistério e magia que existia em torno da cultura chinesa, mas, nada se compara a você viver uma dessas experiências.
O nome dele era Mie Shu. Quando mencionei aos guias turísticos que queria conhecer o lado místico da China, a maioria apontava para ele.
Histórias giravam à sua volta: diziam que ninguém sabia quantos anos realmente tinha, alguns juravam que era imortal, que tinha tido dezenas de esposas, mas, nenhum filho, que a sua fortuna era incalculável e o mais extraordinário: que ele nunca atendia ninguém durante o dia.
Mas, quem era Mie Shu? Por que as pessoas o admiravam e o temiam?
Questionei algumas pessoas e a simples menção do nome dele causava reações diversas. Uns faziam cara de que nunca ouviu falar, outros tinham o orgulho de dizer que o conhecia pessoalmente e alguns faziam expressões de medo e repulsa.
Fiquei curioso.
No geral, contaram-me que a lenda de Mie Shu vinha de há muitos anos. Ninguém conseguia me dizer com certeza o que ele realmente fazia, qual a sua profissão, mas eu reuni informações que me levaram a crer que ele era um empresário rico e que a maioria do montante da sua fortuna vinha se heranças.
Cheguei a pensar que Mie Shu era um traficante de drogas ou um grande ladrão, disfarçado de empresário.
Tentei conseguir uma entrevista com ele. Apresentei meu cartão de visitas na recepção de um luxuoso escritório no centro de Pequim. De cara já comecei a achar estranho. A recepcionista, (que geralmente é uma mocinha bonita na maioria das recepções desses escritórios), era uma senhora idosa. Tentei calcular sua idade e finalmente me convenci que ela passava dos 70 anos.
Observei o seu trabalho enquanto aguardava na recepção. Ela era uma velhinha, porém seus gestos eram ágeis e precisos. Uma desenvoltura fora do comum para alguém da idade que imaginei. Mentalmente reduzi sua idade para 60 anos, mas ao mesmo tempo meu cérebro enxergava uma velhinha mais idosa.
A confusão mental estava nesse nível quando ela veio em minha direção e, num inglês fluente, me informou que o Sr Mie Shu teria o prazer em me receber na sexta-feira à noite em outro endereço.
Ela me estendeu um cartão e o horário escrito no verso em vermelho, vinha acompanhado de uma frase em letras de fôrma: SEM ATRASOS.
Saí de lá me parabenizando pela minha sorte em ser recebido por tal celebridade local tão rapidamente e atribuí essa sorte à minha reputação de escritor renomado e reconhecido por minhas histórias de viagens. Afinal, o meu nome, Lorenzo Rezin, estava impresso em muitos best sellers espalhados em vários idiomas. Um dia conto a vocês a minha história particular, mas hoje, vamos falar de Mie Shu.
Saí do hotel quatro horas antes do horário para não correr o risco de me atrasar.
Não acreditei quando me deparei com o endereço contido no cartão. Reli, incrédulo, mas o motorista garantiu que estava correto. Não era um escritório ou uma residência. Parecia mais uma loja de cacarecos.
Novamente uma senhora me atendeu. Era uma loja de antiguidades e eu, me dirigi a ela, estendendo-lhe o cartão e certo que ela diria que o endereço estava incorreto, porém ela meneou a cabeça positivamente após lê-lo e me conduziu para os fundos da loja.
O medo começou a trazer novamente a ideia de estar lidando com um líder do crime, temido e poderoso e por alguns minutos me questionei se sairia vivo dali. Fiz uns exercícios de respiração a fim de acalmar a ansiedade e segui em frente.
Um homem me aguardava em pé, de costas para a porta, contemplando a rua pela janela da sala. A senhora falou-lhe algo em chinês e eu só entendi “Sr Mie Shu”.
Quando entrei ele me mandou sentar, sem se virar imediatamente.
Ao vê-lo minha incredulidade cresceu. Meu primeiro pensamento foi achar que alguém me ludibriou. Na minha frente encontrava-se um homem na casa dos seus 36 a 40 anos no máximo. Vestia um terno azul marinho que lhe caía muito bem no corpo esguio e atlético. Eu tinha certeza que veria um velhinho de cabelos brancos e barba longa vestindo uma túnica chinesa! Que palhaçada era aquela?
Ele se virou lentamente e apertou minha mão. Uma mão fina e delicada.
Terrivelmente sem jeito e me sentindo um completo idiota, retribui seu cumprimento tentando inserir nele, o mínimo de dignidade que ainda me restava.
Mie Shu me olhou com uma expressão divertida e como eu não tomava a iniciativa, ele se sentou e começou a falar. Foi aí que eu notei que, além da sua aparência não ter nada a ver com o que eu imaginava, havia ali, mais detalhes que me deixou ainda mais incrédulo: Sua voz era arrastada e ele parecia fazer um esforço sobre-humano para falar, ou melhor, para disfarçar a voz. Seus gestos eram lentos e parecia que ele pensava bastante antes de fazê-los. Parecia ensaiar cada movimento. Me perdi um pouco no que ele falava, se apresentando e me dizendo que era uma honra conhecer-me, que gostava das minhas histórias e que se sentia honrado em ser entrevistado por mim. Ouvi esses comentários, tentando interagir, mas meu cérebro estava em confusão. Finalmente consegui entender o que estava me deixando tão desnorteado, além da sua aparência: Seus movimentos, sua voz, sua maneira austera e polida de falar, me lembravam uma pessoa muito idosa! Era como se fosse o oposto da velhinha que observei no escritório. Apesar dele ter uma aparência muito jovem e um corpo de dar inveja a um atleta, ele falava e agia como um ancião!
Em meio a essa constatação, disfarcei ao máximo e comentei o mais sutilmente possível que o imaginei um pouco diferente do que ele era, devido a sua fama e lugar de destaque na sociedade e no mundo empresarial. Ele apenas sorriu, sacudiu a cabeça e falou sempre naquela voz rouquenha, que “muitos achavam a mesma coisa”. Cheguei a perguntar sorrindo, em tom de brincadeira, se eu estava de fato falando com o verdadeiro Mie Shu.
Seu rosto se fechou e um lampejo de raiva e impaciência passou pelos seus olhos, misturando-se à sua voz. Ele me convenceu de que era de fato ele, quando respondeu perfeitamente a todas as perguntas profissionais que eu havia preparado, porém sempre desviava o assunto quando este seguia para o lado pessoal.
Finda a conversa, lhe pedi que fizéssemos uma foto para ser publicada junto à entrevista e ele aquiesceu. Levantou-se vagarosamente e fez uma pose, sorrindo ao meu lado.
Momentos depois eu me despedi da sua funcionária e me dirigi ao hotel a fim de digitar a entrevista e raciocinar sobre aquilo que vi.
No carro de volta, perguntei ao motorista do Didi Chuxing se ele conhecia um homem chamado Mie Shu e ele me respondeu com escárnio na voz:
- Quem não conhece aquele velho?
Contei a ele que havia acabado de entrevistá-lo e que ela não era um homem velho. O motorista me olhou pelo espelho retrovisor e sua expressão foi de quem estava falando com um louco. Não consegui tirar mais nada dele. Sua cara amarrada deu a entender que a conversa tinha acabado.
No hotel juntei minhas anotações e comecei a digitar o esboço da minha história. Em dado momento, lembrei-me da fotografia e fui até o celular verificar mais de perto a fisionomia daquele sujeito enigmático.
Quase desmaiei de suto quando vi a foto!
Minha reação foi jogar o celular na cama para em seguida, voltar a pegá-lo a fim de conferir o que os meus olhos não queriam crer. A foto estava lá, comigo sorrindo do jeito que eu me lembrava, porém AO LADO DE UM VELHO ENRRUGADO E ENCOLHIDO COMO UMA MÚMIA!
Minhas mãos tremiam, meu coração estava aos pulos, minha respiração ofegante. Me recusava a acreditar no que via e comecei a andar no quarto de um lado para o outro, suando frio e torcendo as mãos.
O que significava aquilo tudo? O que vi era real? A foto era real? Quem de fato era Mie Shu? Nada mais fazia sentido!
Liguei o gravador e ouvi novamente a sua voz arrastada de velho. Qualquer pessoa que ouvisse aquilo diria se tratar da fala de um homem muito idoso.
É óbvio que tentei no dia seguinte voltar ao escritório para obter maiores esclarecimentos. Ninguém mais me atendia. A velhinha da recepção não me deu muita atenção, dando desculpas esfarrapadas.
Tentei os guias turísticos, os jornais, a internet e descobri que o pouco que se falava dele, mencionava-o como um homem enigmático, rico e idoso.
Nunca entendi o que de fato aconteceu naquela loja de bugigangas. Se não fosse a foto, eu diria que alguém se passou por ele e resolveu me pregar uma peça, mas a selfie foi feita por mim. Prometi a mim mesmo, pelo bem da minha sanidade, que um dia voltaria à China e me empenharia em buscar respostas. Hei de descobrir quem de fato é Mie Shu e porque essa aura de mistério e magia em torno do seu nome. Hei de descobrir uma explicação para a foto. Mas todos os dias quando olho aquela imagem em meu celular, Mie Shu parece sorrir sarcasticamente para mim e dizer: “Mais um trouxa para minha coleção...”
Licínia Ramizete
18/05/2019