Madame Kakadou
Ao ouvir soar a campainha da porta da frente soar, Laura ergueu-se da cadeira de balanço, as mãos magras entrelaçadas à frente do corpo. Estava ao mesmo tempo, feliz, pela perspectiva de rever a irmã caçula, recém-chegada da Europa, e receosa: da última vez em que ela estivera em Nova Iorque, três anos atrás, Jennifer, sua única filha, ainda era uma mulher casada; e agora, estava viúva. Laura tinha receio de que a influência que a tia sempre exercera sobre a sobrinha agora se manifestasse em toda a sua força; e ela talvez não tivesse forças para impedir o que parecia ser inevitável. Alheia aos pensamentos da mãe, Jennifer passou por ela vinda do quarto, em direção à entrada do apartamento; era dia de folga da criada, o que significava também que estariam apenas as três no jantar daquela noite. Verdadeiramente, um jantar em família.
- Tia Tussy! - Exclamou com alegria Jennifer, ao abrir a porta.
Laura lançou um olhar sobre Tussy, parada no corredor, vestido escuro e casaco longo de tweed cinza sobreposto, um chapéu largo decorado com plumas de faisão sobre a cabeça. Atrás dela, um carregador, com algumas malas.
- Jennifer! - Replicou Tussy efusivamente, abrindo os braços.
Trocaram um abraço apertado, e depois Jennifer praticamente arrastou a tia para dentro.
- Peça ao motorista para trazer as malas - solicitou Tussy à sobrinha, antes de ir até Laura e estreitá-la nos braços.
- Que saudades, Kakadou! - Sussurrou ao ouvido de Laura.
- Que bom que você veio - sorriu Laura ao ouvir o apelido de infância, esquecendo momentaneamente seus temores.
- Como você está? - Indagou Tussy, separando-se e segurando a irmã pelos braços, para olhá-la melhor.
- Não muito bem de saúde, se quer mesmo saber - suspirou. - Gostaria que meu genro ainda estivesse vivo...
- Você me parece estar muito bem para precisar de um médico em tempo integral ao pé da cama - redarguiu Tussy erguendo um sobrolho.
- Certamente que não sou o burguês hipocondríaco daquela peça de Molière... como se chamava?
- Argon, "O Doente Imaginário" - respondeu Tussy, voltando-se para orientar ao carregador em que parte da sala deveria colocar as malas.
- Não, eu não sou uma doente imaginária - arguiu Laura, solenemente. - O meu mal é legítimo e diagnosticado...
- Mamãe, não vamos falar em doenças esta noite, está bem? - Solicitou Jennifer dando-lhe um beijo na bochecha, enquanto Tussy dispensava o carregador dando-lhe uma moeda de 25 centavos de dólar.
- Cá estamos - disse Tussy após fechar a porta e entregar o chapéu empenachado à sobrinha, que prontamente o pendurou num cabideiro de parede.
- E onde está o seu cão? - Indagou Jennifer.
- Deixei o Duc com meu agente, Hemsworth. Sei da alergia a pelos da sua mãe... - explicou Tussy, arqueando uma sobrancelha. - Por conta da produção da nova peça, tenho lugares para ir e pessoas a visitar, nestes dias em que estarei em Nova Iorque. Duc só iria me atrasar...
- Trouxe poucas malas, tia - observou Jennifer. - Quanto tempo pretende ficar?
- Com vocês? Só até o final de semana - declarou Tussy, juntando as mãos como que em prece. - Depois, eu tenho um quarto reservado no Marie Antoinette, na Broadway. O restante das minhas malas já foi para lá...
- Mas por que vai ficar tão pouco tempo conosco? - Indagou Jennifer decepcionada, braços cruzados.
Tussy olhou para a irmã, que ouvia a conversa em silêncio, e então disse algo que fez Laura sentir um aperto no coração:
- Eu não vim à América apenas para montar um espetáculo teatral. Estou aqui em missão. Oficial.
Percebendo a tensão no rosto da irmã, acrescentou com um sorriso:
- Sossegue, Kakadou. Eu vou precisar da Jennifer apenas como atriz...
- [02-05-2019]