Contos de Mochilão I - Trecho Maldito

Já se aproximavam das 18h, o sol logo ia se pôr e eu não ia conseguir enxergar mais nada naquele lugar.

- Ninguém para, que inferno! Maldita hora que escolhi vir por esse caminho. Malditos seres humanos, egoístas! - esbravejava aos céus, sem que ninguém me ouvisse.

Fosse menos burro, não estaria nessa situação. Só que eu queria aventura. Queria sentir a sensação de me jogar por aí e ter caminhos inesperados e inexplorados se abrindo à minha frente. Zero roteiro, só no feeling. Maldita burrice! Maldito lugar, essa Raul Soares. Enquanto caminhava, desferia ofensas tão rápidas quanto os socos do Belfort aos vinte de anos de idade. Eu até sabia que um estado mental negativo nessas horas não ajudava. Sempre fui uma pessoa taxada de "tranquilona", e sempre tive a habilidade de me manter calmo em momentos de tensão, mas o desespero já havia me tomado duas horas atrás, quando tinha andado sem parar por, pelo menos, outras duas horas, sob um sol infernal, à beira daquela estrada deserta de pouco movimento e nenhum acostamento. Ninguém parava nesse lugar! Eu levava uma mochila nas costas e uma mala lateral de uns 12kg, não projetada para ser carregada em grandes distâncias. Após os dez primeiros quilômetros eu já havia esgotado todas as configurações possíveis pra carregar as mochilas e os 12 quilos me pareciam 50.

Descobri que meu corpo era capaz de suportar muito mais do que eu imaginava. Eu caminhava no automático, tal como um bêbado volta pra casa de manhã. A cada carro que passava, um esforço em vão pra me virar, levantar o dedo, tentar sorrir e não expressar todo sofrimento que me afligia. Olhando no mapa, aquele trecho parecia tão pequeno: "Dá pra caminhar até esse trevo", "vai ser melhor", dizia a voz da inexperiência. Meu primeiro mochilão de verdade: 390km. De carro, são cerca de sete horas de viagem. Fazia 26 horas que eu estava na estrada. Na noite anterior, dormi num hostel em Ponte Nova. Horrível, porém barato, de onde parti por volta das dez da manhã.

Antes de decidir caminhar pela 329, na saída de Raul Soares, eu tinha estacionado umas três horas, até as duas da tarde, sem sucesso de carona. Nesse período, pouquíssimos carros passaram por ali, e somente um deles parou: Um fusca completamente lotado. Seus passageiros se misturavam às tralhas indecifráveis que entupiam seu interior, assim como a poeira daquela roça maldita se camuflava ao simpático laranja do exterior do carango. Um velho gordo de poucos cabelos que dirigia parou o carro à minha frente.

- Boa tarde - lancei, sem saber bem o que mais poderia dizer.

As cinco pessoas dentro do Fusca me fitaram por alguns segundos, como se observassem um animal exótico. Silêncio, nem uma palavra foi dita, e então partiram. As pessoas da cidade não foram muito diferentes. Vi muitos olhares oblíquos e nenhum sorriso naquele local. Talvez algumas risadas, mas não para mim, claro. Maldita Raul Soares! Só podia mesmo dar o pé dali. Pena eu ter me precipitado quanto à forma de fazer isso.

Agora já era. Tudo escuro e eu nem tinha chegado no trevo ainda; mas estava próximo, eu sabia. À noite, conseguir carona na estrada é quase impossível. Com sorte encontraria algum lugar onde pudesse conversar pessoalmente com alguém que me pudesse tirar dali. Com azar, teria que dormir ali mesmo. Uma pausa pra encontrar minha lanterna -- No escuro, nada melhor do que uma lanterna pra te dar a sensação de poder. Uma pessoa com uma lanterna é uma pessoa capaz de resolver as coisas. Já não me desesperava mais. Não pela lanterna, só havia esgotado minha cota de choro e maldições. Até consegui me deleitar com todas estrelas que aquela escuridão me permitia ver.

Logo avistei o trevo. Pena ser tarde demais. De noite ninguém iria parar. Ao me aproximar percebi que ali havia uma espécie de vilarejo, ou bairro de sabe-se lá onde. As ruas que adentravam ao local eram de terra e havia uma quantidade significante de casas, porém ninguém na rua. À beira da BR, em frente ao trevo e ao vilarejo, um convidativo banquinho de madeira, desses de tábua de 20cm, me aguardava, estático. Os carros jamais parariam no escuro para um sujeito com uma lanterna na mão. Se quem tem a lanterna se sente forte, por outro lado, quem vê uma lanterna flutuando no escuro quase sempre sente medo. Eu já não tinha opções. Aceitei o fato que passaria minha noite ali. O problema é que ainda eram 18h30, mas foda-se. Ajeitei meu moletom, deitei no estreito banquinho, encostei a cabeça na mochila, os pés em cima da mala - pra não ser roubado - e dormi mais rápido do que esperava.

Acordei com um puta frio no meio da noite. Julguei ser de madrugada, pois lembrava de alguém ter dito que antes de amanhecer é a hora mais fria do dia. Tudo estava no lugar, ok, não fui roubado. Liguei o celular pra conferir as horas: 21h30. "Puta merda!" Seria impossível dormir ali. Meu corpo doía em quase todos os pontos e mesmo me mover era incômodo. Decidi entrar no vilarejo e contar com a sorte. Na pior das hipóteses acharia um lugar menos frio pra me deitar.

Ao caminhar vilarejo adentro, algumas luzes acesas nas casas, mas era fora de cogitação tocar alguma campainha. Pouco tempo de caminhada e avisto o que parecia ser um boteco: era minha salvação. Já havia aprendido há um bom tempo a potencialidade da cachaça pra aliviar a dor e o frio. Ouvi risadas e conversas altas vindo do lado de dentro, que ficavam mais altas a medida que eu me aproximava. Quando apareci na porta todos se calaram imediatamente e fez-se ali um silêncio sepulcral. Imagino que todos naquele lugar se conheciam, e eu, novamente, era um animal exótico e estranho àquele ambiente. Além do dono do bar, dois homens bebiam cerveja no balcão. Um senhor de uns 50 e poucos, e um na faixa dos 30. Os três olhavam incessantemente pra mim à espera das palavras que sairiam da minha boca e explicariam que diabos eu fazia ali.

- Boa noite.

- Boa noite - responderam os três e voltaram a fechar suas bocas.

Conto o pouco dinheiro que tinha na carteira.

- Me dá um biscoito desse?

O dono pega em silêncio e me entrega.

- Me dá uma dose de cachaça também, por favor - peço.

Um sorriso se abriu na face do homem mais velho:

- Nesse frio só mesmo uma cachaça pra dar conta - me disse com o tom de voz amistoso de alguém levemente alcoolizado.

Os três sorriram novamente. Senti alívio. Um sorriso sincero é uma porta que se abre para a interação social. E, de fato, após esse momento passamos a conversar amigavelmente eu e os homens do balcão. Nada como o álcool pra tornar amigos pessoas desconhecidas. Pude contar minha história e se condoeram pelo meu azar.

- Vamo beber com a gente. Esquenta a cabeça não que a gente paga - disse o velho.

Até me emocionei. Fazia muito tempo, nessa viagem, que alguém tinha sido legal comigo. Pude ouvir suas histórias também. Seu Geraldo, o homem mais velho, era sogro de Roberto, o outro rapaz, que era marido da sua filha mais nova. Ambos trabalhavam na roça e moravam perto dali. Jogamos sinuca, bebemos algumas cervejas e algumas doses de cachaça. Conversamos sobre nossas vidas, nossas famílias, até me esqueci de minha situação por algum tempo. Bolei para eles algumas palhas que fumamos juntos. O bar fechava às 22h30, mas o dono estendeu até as 23h. Foi o suficiente para ficarmos consideravelmente bêbados. Após a saideira recolhi minhas tralhas e fomos os três andando na mesma direção. Roberto se despediu e continuei com Seu Geraldo, que depois de mais alguns passos pergunta:

- Agora ce vai pra onde ein? Vai voltar pra estrada?

- O jeito é voltar pro meu banquinho né - confirmo, com um sorriso resignado. - Pelo menos agora a cachaça tá agindo.

Seu Geraldo franze a testa e fica pensativo. O senti hesitante, como uma criança fica quando precisa contar pra mãe que fez alguma merda.

- Olha - ele diz e para de andar. - Eu to com a chave dum caminhão. Acho que dá pra você dormir lá, mas de manhã cedinho você precisa ir embora.

Enquanto ele falava uma chama se acendia dentro de mim. Sem que eu pudesse dizer nada ele continuou:

- Humm... Mas o problema é que se meu patrão descobre... Ele acorda cedo também - franze novamente a testa e dá uma coçada na nuca enquanto decide o que seria feito:

- Oh, eu acho que ce pode dormir no meu terraço. Só tem que tomar cuidado pra minha muié não acordar - fala decidido. - Eu vo acordar cinco horas porque eu tenho que tirar leite lá na fazenda, aí eu acordo o cê e cê vai também.

Eu quase não acreditei que tinha acontecido. Minhas perspectivas haviam mudado. Tá bom que era no terraço, mas pelo menos era coberto e com certeza menos frio que a estrada, e eu poderia conseguir algo pra me cobrir.

Seu Geraldo, sorrateiramente, abre o cadeado e retira a corrente do portão da sua casa. Era uma casinha simples, pintura antiga, sem varanda nem piso do lado de fora. Cochichando, ele me direciona e me manda subir as escadas com cuidado enquanto ele entra na casa. Eu subo com o máximo de silêncio que podia fazer, salvo os deslizes da bebida no sangue. Ao pisar no terraço uma nova emoção toma conta de mim: Ali no meio do terraço, perto do tanque de lavar roupa, uma inacreditável, milagrosa... cama de casal! Meus olhos não acreditavam no que viam. Encostei a mala e a mochila e me sentei na cama. Não tinha certeza se era um colchão ou não que havia por debaixo da colcha, poderia ser madeira, de tão duro. Mas isso não abalou em nada minha felicidade naquele momento, principalmente porque alguns instantes depois Seu Geraldo subiu as escadas e me entregou uma coberta. Ele parecia preocupado demais, embora tentasse não transparecer. Talvez estivesse na dúvida de ter feito a coisa certa ou não ao me levar até ali. Ouvi ruídos de dentro da casa e concluí que talvez a mulher dele poderia ter acordado e descoberto minha presença. De todo modo, eu estava salvo. Ninguém ia me tirar dali mais. Depois de verificar que eu não precisava de mais nada Seu Geraldo desceu pra dormir. Eu só precisava de uma coisa: dar uma mijada - mas Seu Geraldo não poderia me ajudar nisso. Pensei que era melhor continuar na furtividade. Caminhei pé por pé até o tanque. Seu Geraldo que me perdoasse mas seria ali mesmo. Minha bexiga doía mais a cada passo que eu dava até o meu objetivo. Cheguei já abafado, terminando de abrir o zíper, quando percebi que a porra do tanque tava cheio d'água.

- Que inferno! - grito baixinho.

Assim já não me atreveria - seria muita sacanagem com Seu Geraldo. Sem pensar desço as escadas na ponta dos pés e vou até a cerca na lateral da casa. Mijo litros, ouvindo o barulho peculiar da urina batendo na terra fofa. Retornei um ser renovado, porém falhei na missão zero ruídos. Depois de subir, tomei água na torneira do tanque. Assim que retorno pra cama, Seu Geraldo reaparece com a cabecinha no alto da escada:

- Opa, tá tudo bem aí? - disse com voz hesitante e aparentemente medo de olhar o que eu poderia estar fazendo.

Não acreditei na preocupação de Seu Geraldo comigo. Me parecia mais é que algum movimento meu havia sido percebido e a esposa mandara Seu Geraldo averiguar.

- Tá tudo certo. Foi por causa do barulho? Foi só a torneira do tanque que eu abri, porque me deu uma sede - disse, dando a ele o que dizer à mulher, o dispensando dali.

Antes que o sol brotasse vi a cara de Seu Geraldo novamente: Tava na hora do leite. Mas ainda dava tempo pra um café, que eu, logicamente, aceitei feliz. Desci as escadas e lá embaixo, sentada à mesa, do lado de fora da casa, estava ela, a mulher de Seu Geraldo. Ele me apresentou e me serviu um gole de café enquanto eu tentava ser simpático. Eu havia acabado de acordar, estava iniciando o terceiro dia de viagem, havia dormido pouco e bebido na noite anterior. Isso tudo aliado à minha aparência, já estranha àquele meio, me fizeram parecer nem um pouco simpático aos olhos dela. E ela não fez nenhuma questão de esconder que não gostava do que via. Eu, por outro lado, que tinha muito a agradecer, fiz toda questão de esconder o quão horroroso estava aquele café que havia provado. Estava gelado. Pouco mais de cinco horas da manhã, um frio do caralho, e Seu Geraldo me deu café gelado pra tomar. E o pior é que eu tomei. Ele estava tomando também, eu fiquei sem graça de falar que não queria depois de já ter aceitado. Mas na minha terra isso não é coisa que se faça com visita. Entre um gole sofrido e outro falamos sobre meu destino depois dali, e tirei as últimas dúvidas sobre a região. Quando não tinha ninguém olhando joguei o resto do café fora.

Não me lembro exatamente quais foram as nossas últimas palavras. Lembro de ter rolado algo do tipo "depois ce volta aqui", "volto sim", e outros desses clichês que a gente fala nessas horas - mesmo sabendo que muito provavelmente eu jamais passaria naquela estrada de novo. Do que eu não me esqueço foi da expressão que vi no rosto de Seu Geraldo após nos abraçarmos, já no portão de sua casa. Após as palavras perderem sentido, pude olhar em seus olhos, cintilantes como os meus, e perceber que ele estava ciente de toda gratidão que eu tinha pelo o que ele me fizera. De alguma forma, ele também parecia grato por ter me ajudado. Na época, eu ainda não entendia exatamente como era possível ele parecer tão grato e feliz quanto eu, mas, naquela manhã, Seu Geraldo me fez recuperar a fé nas pessoas novamente. Passei a acreditar que não importava a situação, por mais complicada que fosse, por mais vulnerável que eu estivesse, sempre haveria alguém pra estender uma mão amiga. Não posso afirmar que isso é verdade, mas creio que o pensamento tem poder.

Após deixar o vilarejo, com outro estado mental, não tive mais problemas até meu destino final.

Dougg Ribeiro
Enviado por Dougg Ribeiro em 30/04/2019
Reeditado em 16/08/2023
Código do texto: T6635564
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