O Espírito Guardião

[Continuação de "O Coração da Valáquia"]

Carregando uma pasta de couro, o general Tugurlan desembarcou de um Opel Olympia verde-oliva do Exército da Valáquia, em frente ao portão de entrada da Torre Chindia, em Târgoviste, antiga capital do país, situada cerca de 80 km de distância de Bucareste. O coronel Adrian Marcovici, comandante da instalação, estava à espera dele. Os dois oficiais trocaram continências.

- Está tudo pronto para sua visita, general - informou o coronel, quando entraram no elevador que os conduziria às profundezas do complexo militar ultrassecreto sob a torre.

- A major Voiculescu está a postos na Sala de Consulta?

- Exatamente como o senhor solicitou - confirmou Marcovici.

Carla Voiculescu era a oficial de mais alta patente nas forças armadas da Valáquia, e sua designação para o posto envolvera uma criteriosa investigação que começara logo que ela atingira a adolescência. Até o século XIX, o cargo que a major ocupava não era militarizado, mas isso mudara logo no início do século XX, antes da Grande Guerra. A função desempenhada, contudo, continuava a mesma, assim como sua designação formal: Consilierul Domnitorului, a Conselheira do Governante. A Conselheira, sempre uma mulher, possuía uma responsabilidade muito maior do que seu título poderia indicar, e era justamente por isso que ela dava expediente naquele complexo subterrâneo, construído como um bunker para suportar bombardeios pesados.

As predecessoras de Voiculescu muitas vezes haviam sido reputadas como bruxas, e, como algumas delas, Carla possuía cabelos num tom de castanho-avermelhado, que mantinha presos em coque na nuca, sob o casquete do uniforme cáqui. Quando Tugurlan e Marcovici entraram na Sala de Consulta, houve a troca protocolar de continências. Em seguida, todos sentaram-se ao redor de uma mesa de carvalho circular, sobre a qual, num suporte de bronze, repousava o Inima Valahiei, o Coração da Valáquia: um diamante de cor vermelha, do tamanho de uma noz graúda. A pedra preciosa estava em poder do principado há séculos, e seu uso estava restrito a mulheres.

- Major, está ciente da razão de minha vinda aqui, hoje? - Indagou Tugurlan.

- Sim, general - acedeu Carla Voiculescu. - O coronel Marcovici colocou-me a par da invasão da Polônia pelos nazistas.

- Acredita que o Inima Valahiei irá considerar a nossa preocupação pertinente? - Inquiriu o general.

- Pessoalmente, creio que a preocupação é fundamentada - declarou Voiculescu. - Mas teremos que fazer o questionamento para ver se há concordância... e o que poderemos fazer. Esta, provavelmente, é a maior ameaça que a Valáquia jamais enfrentou.

- Então, estamos todos de acordo - atalhou Marcovici. - Queira invocar o Inima Valahiei, por favor.

Carla Voiculescu girou um botão sob a mesa, reduzindo a luminosidade da única lâmpada incandescente pendente do teto. Na penumbra que se fez, o diamante vermelho emitia uma luminosidade baça, como a de uma brasa adormecida. A Conselheira estendeu as mãos para as laterais do suporte de metal, e de olhos fechados, recitou:

- Guardian spirit mâ auzi

Dâ-mi un semn al prezentei dvs.

Si ajudâ-mâ; în timpul primejdiei.

O brilho do Inima Valahiei aumentou suavemente, refletindo-se nos rostos dos presentes. Ainda de olhos fechados, expressão relaxada, a major Voiculescu indagou, com uma voz de menina:

- Parece-me que os problemas atingiram um novo patamar, correto general Tugurlan?

Tugurlan encarou fascinado a major Voiculescu, que agora incorporava o Coração da Valáquia.

- Estamos sendo ameaçados por um inimigo poderoso, Inima Valahiei. Ele está a caminho das nossas fronteiras e tem aliados que nos são vizinhos, como a Hungria.

Carla Voiculescu suspirou.

- Tudo seria mais fácil se vocês houvessem acatado a minha recomendação de aliarem-se à União Soviética ao fim da Grande Guerra - declarou em tom acerbo. - Não se trata mais de barrar a entrada de tropas de infantaria e cavalaria... os invasores agora dispõe de máquinas de guerra, tanques e aviões. Vai ser difícil controlar esse tipo de coisa.

- Mas... pode fazê-lo, Inima Valahiei? - Perguntou ansioso o general.

- O que eu posso fazer talvez não seja suficiente, mas pode funcionar como um elemento surpresa, permitindo que tenham tempo de costurar uma aliança estratégica com quem vocês acharem melhor... vou me resguardar de lhes dar conselhos no que tange às suas predileções políticas e ideológicas - ponderou a voz infantil.

- O que exatamente poderá fazer? - Insistiu Tugurlan.

- Vou criar uma zona de exclusão eletromagnética tendo como epicentro esta torre - declarou a voz de menina. - Ela envolverá todo o território da Valáquia e vai afetar os territórios limítrofes dos países vizinhos... em termos leigos, rádio, eletricidade e motores de combustão deixarão de funcionar para quem cruzar o perímetro, num sentido ou noutro. Caso os invasores prossigam, de qualquer forma, rebocando seus veículos com animais de tração, por exemplo, posso recuar progressivamente o perímetro. Mas isso parte do pressuposto de que vocês poderão enfrentar os atacantes com tropas regulares.

Tugurlan e Marcovici entreolharam-se.

- Pelo menos evita que sejamos vítimas de bombardeios pela Luftwaffe - comentou o coronel.

- Melhor do que nada - admitiu o general. E para a Conselheira:

- Pode aguardar até que tenhamos a definição do ataque dos nazistas, e nos fornecer as coordenadas exatas do perímetro da zona de exclusão?

- É para isso que estou aqui - retrucou a Conselheira, sorrindo de olhos fechados. - E faça com que a sua força expedicionária leve pombos-correio. A partir do momento em que a zona de exclusão estiver operacional, ficaremos sob silêncio de rádio.

Tugurlan balançou lentamente a cabeça. Instantes depois, Carla Voiculescu abriu os olhos, piscando confusa.

- Acabou? - Indagou.

- Acabou - confirmou o general.

[Continua em "Nossa modesta contribuição"]

- [10-03-2019]