O Coração da Valáquia
[Continuação de "A águia sobre o junípero"]
Os dois guardas em uniformes históricos postados à entrada do gabinete do hospodar no Palácio Golescu em Bucareste, apresentaram armas quando o general Petre Tugurlan aproximou-se, precedido por um funcionário do Cerimonial. Este bateu duas vezes com a aldrava de latão polido na folha direita da porta de carvalho, e uma voz de barítono gritou lá de dentro:
- Entre!
O funcionário abriu uma das folhas, dando passagem ao general. Depois, fechou-a atrás dele. Agora, dentro do gabinete decorado com tapeçarias nas paredes, retratando cenas de batalhas contra os turcos otomanos, Tugurlan curvou-se diante do homem em traje de gala sentado atrás de uma vasta escrivaninha estilo Luís XV: o hospodar Radu Bucsa Nicolescu.
- General Tugurlan... se veio me trazer más notícias, o embaixador alemão já as forneceu em primeira mão - alertou Radu Nicolescu com ar cansado, indicando uma cadeira estofada à frente da escrivaninha.
- Com sua licença, alteza - replicou Tugurlan, tomando assento.
E com as mãos cruzadas sobre o colo, indagou:
- Então, Lorenz Klugmann esteve aqui antes de mim, alteza?
O príncipe ajeitou o monóculo no olho direito, como que para examinar melhor o chefe do seu Estado-Maior.
- Não há nenhum demérito nisto, general - ponderou. - O embaixador veio me dar a notícia de que as tropas alemãs estariam entrando em território polonês... segundo ele, para revidar "provocações" recebidas... antes mesmo que Varsóvia nos ligasse pedindo socorro.
- Então foi um teste, alteza - arguiu serenamente Tugurlan.
- Por que acha que estou em uniforme de gala, general? - Indagou sardonicamente Radu Nicolescu. - Há meses que vínhamos farejando a carniça dos nazistas aproximando-se; quando Klugmann solicitou uma audiência de emergência, desconfiei do que se tratava. Se ele tinha a intenção de dar um ultimato ao hospodar da Valáquia, já me encontrou pronto para a batalha.
- Muito justo, alteza - acedeu Tugurlan. - Mas Klugmann fez algum tipo de... ultimato?
O príncipe fez um gesto vago com a mão.
- Depois de aludir ao fato de que iriam entrar na Polônia - por bem ou por mal - o embaixador fez uma observação sutil de que as boas relações entre o Reich e o Principado da Valáquia dependiam da nossa não-interferência com o processo de "pacificação" da Polônia.
- "Pacificação"? - Repetiu incrédulo Tugurlan.
- Provavelmente uma referência à paz dos cemitérios - retrucou o príncipe, recostando-se em sua cadeira. - Mas diga-me, general, o que me sugere fazer frente à possibilidade muito real de que sejamos a sobremesa, após o banquete da tomada da Polônia?
- Temos um tratado assinado com Varsóvia... em caso de invasão, teríamos que retaliar - avaliou o general entrelaçando os dedos. - É um tratado assinado em outra época, mas que continua plenamente em vigor e, como sua alteza sabe, foi invocado pelos poloneses. Os nazistas, claro, sabem disso e estão esperando por nossa deixa para mandarem suas tropas nos "pacificarem" na sequência.
- Para isso, terão que passar por cima do cadáver da Polônia primeiro - replicou o príncipe, cruzando os braços. - E esperamos que a Polônia venda sua morte bem caro, pois imagino que ainda tenhamos ajustes a fazer nas forças de defesa...
- Estávamos nos preparando para o inevitável há pelo menos um ano, alteza - detalhou o general. - Desde a Crise dos Sudetos, para ser mais exato. Todavia, se pudermos conseguir uma ou duas semanas para os últimos ajustes, isto seria muito bem-vindo; o que, aliás, também nos daria alguma margem de manobra junto à Varsóvia e a Berlim...
- Como espera cobrir um santo sem descobrir o outro, general? - Questionou o príncipe, testa franzida.
- O major Sanda Morariu do castelo Mondragon me ligou mais cedo, alteza - relatou o general. - Ele sugeriu enviar duas companhias - com cerca de 60 soldados cada - e meia dúzia de aeronaves de reconhecimento, para o território polonês. À Varsóvia, diríamos que são um destacamento avançado, para cumprir o tratado de defesa mútua, enquanto organizamos uma força maior... e aos nazistas, informamos a real intenção: dar cobertura à retirada dos nossos funcionários civis e cidadãos valaquianos residentes em Varsóvia e cidades próximas. Se trabalharmos rápido, não seremos incomodados por nenhum dos dois lados.
O príncipe apoiou os cotovelos na mesa, pensativo. Finalmente, declarou:
- Muito bem, general. Está autorizado o envio de uma força expedicionária de 120 homens e seis aeronaves até Varsóvia; deverão partir em no máximo 48 h. Vou agilizar a papelada e avisar à embaixada em Varsóvia que empacote o que for estritamente necessário para a viagem de volta.
E ajeitando o monóculo no olho:
- Vamos precisar usar todas as armas possíveis, quando as tropas de Hitler estiverem frente às nossas fronteiras. Inclusive aquela que nos ajudou a expulsar os turcos otomanos destas terras...
O general Tugurlan aprumou-se, animado.
- Eu ia justamente falar nisso, alteza. Chegou a hora do Inima Valahiei livrar-nos novamente dos nossos inimigos!
- Amin! - Exclamou o príncipe, recostando-se na cadeira.
[Continua em "O Espírito Guardião"]
- [03-03-2019]