1090-LOUCO POR JABUTICABAS

— Sinhana, prepara a Candinha que depois de amanhã vou sair para um serviço e aproveito prá levár a fia pro convento.

Autoritário e decidido, assim é que era o Capitão Manoel Domingos Fagundes. Proprietário da Fazenda Corgo Seco, extensa fazenda lá pelos rincões de Mato Grosso.

Contudo, não gostava das lides agrícolas ou pecuárias. Vivia quase todo o tempo em viagens pelo interior bravo do estado.

— Meu capitãozinho vai viajar logo indagora que as jabuticababera tão carregadinha e madurando depressa. Semana qui vem os tronco tá tudo roxinho de jabuticaba. — Era o fiel Zequinha que tomava conta das trinta e tantas jabuticabeiras, só para o prazer do capitão, que era louco por jabuticabas chupadas no pé.

— Ainda volto a tempo, Zéquinha, de chupar essas delicias que você cuida tão bem. Mais tem muita jabuticabeira por esse sertão bravo, não vou passar vontade, não.

A fazenda de gado e de plantações de milho, arroz e feijão, era bem administrada pela esposa, Dona Sinhana, mulher enérgica e de boa visão, que obtinha excelentes resultados e era a mais bem cuidada da região. Ocupada demais com os serviços de fazendeira, pouco se lhe dava saber das atividades do marido, que viajava sempre “a serviços”.

Capitão Gunde, como era conhecido, dizia-se ser homem de ação.

— Não gosto de ficar parado, esperando o gado parir ou engordar. Não tenho paciência para ver planta crescer e produzir as safras. Meu lugar é em cima da sela de um bom cavalo.

E arrematava, como que fazendo anuncio de suas atividades:

— Meu negócio é ajudar os fazendeiros. Resolvo para os amigos qualquer pendência que tiverem.

A patente de Capitão foi-lhe concedida por sua bravura na guerra do Paraguai, da qual participou levando quinze negros para o exército brasileiro. Ele próprio dizia ter matado mais de uma centena de inimigos. Participara da batalha de Acosta-nhu e se vangloriava de ter acabado com a raça dos índios paraguaios.

Guardava como relíquia escopetas, punhais, garruchas e espingarda. Quando partia para suas “missões”, carregava quantas armas fosse possível levar, amarradas ao próprio corpo ou em lombo da fiel mula Tocaia.

E voltava trazendo a guaiaca cheia de notas e até mesmo algumas pedras que seriam diamantes, em paga de seu duro trabalho de ajudar os amigos fazendeiros.

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Em uma missão especial, que duraria algumas semanas, levou a filha Maria Cândida de Jesus até a vila de Candeia Quebrada, onde os deixou. Entregou a filha aos cuidados da tia, a cunhada Clarimunda.

— Na volta, pelo ela e levo pro convento das freiras, em São Francisco das Candeias, A mãe prometeu que Candinha vai ser freira.

Foi, fez o que tinha que fazer, acompanhado de seu filho que o auxiliava no cumprimento das missões — geralmente, a morte encomendada de um desafeto de amigo seu, que fazia por bom dinheiro.

Ao chegar em Candeia Quebrada, debaixo das jabuticabeiras do quintal, onde o coronel se deliciava com as doces frutinhas de um roxo quase preto, a irmã lhe deu notícias da sobrinha.

— Alguém viu a Candinha na beira do Rio dos Diamantes, com um tal de Ludovico.

Parou de chofre, uma jabuticaba na mão, a meio caminho entre o galho e a boca.

Com ele, coronel Gunde, não tinha tom nem meio tom. A viola toca afinada ou não toca. Irado, foi logo esbravejando:

— Quem foi que inventou isso? Candinha é a mais pura das meninas de toda essa região. Calunia!

— É melhor cê se interá dos fatos, Gunde. — Aconselhou a cunhada,

— Quem é esse Ludovico?

— Pelo que ouvi dizê, ele é bem atrevido. Gosta das meninas de fora, porque as daqui ele já namorou todas.

— Purque se for verdade, vai ser a última que ele brinca.

— Mais é mio vosmecê cunversá com a Candinha, ela não vai mentir pra vosmecê.

O Capitão mandou chamar Candinha, que no seu quarto ouvia tudo, principalmente o vozeirão do pai. Quando chegou, já estava preparada para a raiva dele. Chegou de cabeça baixa, muda.

Capitão, assentado com porte ereto, pose de quem já estava pronto prá tudo, foi perguntando, sem mais nem menos:

— Me responde a verdade. Se mentir, de deito o chicote sem dó.

— Sim, paim. — Respondeu a mocinha com a voz contrita.

— É verdade o que sua tia me contou? Cê tava na beira do rio com um homem?

— Sim, paim. Mais nois não fizemo nada de...

— Cala a boca, maldita! Que é esse safado?

E como Candinha começasse a chorar, o pai insistiu:

— Quem é o homem? Vou encontrá e capá ele.

— NÃO, PAI! Pelo Amor de Deus, Nois não fizemo nada dimais.

— Deixa de lero e fala logo quem é o besta que se atreveu?

— Chama Ludovico. Disse que é filho do dono da venda.

Num salto, o coronel se põe de pé e dá um passo em direção à porta, na intenção de sair em busca de Ludovico. Cândida, entretanto, lança-se do banco onde estava e ajoelha-se aos pés do pai, segurando-o pelas pernas.

— Não, painho, não, pelo amor que o senhor tem pela mamãe, pelo amor de Deus. Não faz nada com ele. A gente se gosta sim. Nois não fizemo nenhum pecado, não. ... É verdade... É verdade.

O coronel estacou. O gesto e as palavras da filha o comoveram, e um pouco da ira se dissipou.

— PAIM! Num quero ir pro convento. Quero casar com Ludovico, Ele disse que ia pedir sua permissão prá...

— Não vou matá ele não, vou só dar um susto. Quero ver qual e a descurpa que ele tem prá me dá.

E dirigindo-se à cunhada:

— Tranca a Candinha no quarto. Ela só sai quando eu autorizar.

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O Coronel sentou-se de novo e levou a mão ao queixo. Pensativo.

Pensando bem, num convém eu aparecer nessa história. Melhor mandar o meu filho buscar esse tal de Ludovico.

Chegou à porta do quintal e gritou:

— Zeca! Zeca!

O rapaz, seu sobrinho, filho de Clarimunda, que cuidava das montarias, atendeu pronto.

— Que foi, tio.

— Procura um tal de Ludovico que se engraçou com a Candinha. Diz que é filho do dono da venda. Deve andar por aí. Traz ele aqui.

— Sim,tio. .

Montando seu cavalo, Zeca saiu a procura de Ludovico.

Uns quinze minutos depois, Zeca voltou, montado, trazendo Ludovico, que, a pé, acompanhava a montaria.

— Intão esse rapazinho aí andou de treta com minha Candinha! Agora quero tudo expricadinho. Vai falando, seu merdinha. —e deu um safanão no rapaz, que quase caiu.

— Discurpe, capitão, nois só cunversamo, num fizemo nada de mais.

— E precisava ir prá beira do rio pra cunversá? Fala logo a verdade, seu fio duma égua.

— Juro por Deus, capitão. Quando ela falou que ia pro convento, eu respeitei ela por demais. Mas Nois gosta um do outro e ela agora diz que num quer ir mais pro convento. Nos queremo se casá.

Quanto mais Ludovico se mostra dócil, mais o capitão fica doido de raiva.

Outro safanão, desta vez Ludovico perdeu o equilibro e foi ao chão.

— Fica de pé, fióte de jumenta. Já que oceis fizeram besteira, caíram na língua do povo, num tem mais conserto. Vou levá oceis dois prá minha fazenda, lá a Sinhana resolve que fim a gente dá pro cê e mais minha Candinha.

A conversa deixou o capitão ainda mais raivoso. Falou com a cunhada:

— Vou sair, tomá umas providência. Clarimunda, tranca ele no puxadinho ai do quintal, Ele fica lá até a gente ir embora. E tranca a Candidnha no quarto dela. Sem água e sem comida. Pros dois.

“Tadim deles. Bem que eu pudia dá comida e água prá eles, mais quem sou eu prá desobedecer as ordens desse doido do Gunde?” – Pensa Clarimunda.

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O coronel era um homem do sertão. Rude, sem sentimentos Violento. E o Coronel Gundes era, além de tudo, cruel. Eram condições necessárias para o seu “trabalho de ajudar os amigos” em pendências de terras, de vinganças pessoais, de traições políticas.

No barracão do carapina Timóteo comprou uma gaiola que o carapina recebeu em troca de serviços que havia prestado a um circo cujo leão morrera e ela ficou sem serventia. Tinha rodas e varais, onde podiam ser atrelados dois cavalos.

— De uma arrumada nela, ponha um cadeado novo, encera os arreios, me compre aí dois cavalos e quero tudo pronto prá amanhã cedo.

Abrindo a guaiaca recheada de notas de cem mil réis, deu duas de duzentos ao Timóteo.

—É de sinal. Amanhã pago o resto.

No dia, bem cedo, Timóteo chegou à casa de dona Clarimunda, ele mesmo na boleia da jaula, manobrando os cavalos, Apeou, amarrou as rédeas a uma arvore ao lado da casa, bateu palmas. No que foi atendido, pediu para falar com o Capitão.

— Taí, capitão, como o senhor me encomendou. Limpa e com dois bons cavalos de puxar carroça.

Sem falar, o capitão abriu a guaiaca e de novo tirou notas de cem mil réis. Três notas que entregou ao Teófilo, sem perguntar quanto era o serviço. Timóteo, conhecedor da fama do coronel, dobrou as notas, colocou no bolso e se considerou bem pago. Despediu-se e saiu, rumo á sua oficina.

— Zéca! — gritou o coronel prá dentro da casa. — Trais os dois, a Cândida e o moleque, coloca os dois aí dentro da jaula.

Zeca chegou com o casal, os dois fracos de fome e de sede. Empurrou-os sem dó nem piedade, para dentro da jaula.

Sem consultar a cunhada nem o filho, deus as ordens:

— Zéca, cé vai ai na boleia da gaiola. Amarra um cavalo de seu, prá vortá atrás dela.

Dito e feito, o coronel montou no seu Preto. Na manhã já quente, lá se foi a estranha caravana: o coronel à frente, seguido pela jaula manobrada por Zeca, com os dois prisioneiros, e atrás, amarrado à grade, o cavalo de Zéca.

Clarimunda, impotente, olhava da janela a partida. Lágrimas rolaram pelas faces. Pensativa: “Pobres crianças. O capitão vai fazer eles sofrer muito, antes de sumir com eles.”

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— Zeca, vamo passá pela mata das araras — gritou.

— Vorta demais, pai.

— Tem o capão das jabuticabeira, cê esqueceu? Elas deve tá no ponto.

O capão das jabuticabeiras era onde a mata de arvores retorcidas e cascas grossas cedia lugar para os pés das frutas que o capitão gostava a mais não poder. Multiplicavam-se em tal profusão que não deixavam lugar para as arvores do cerrado.

Depois de umas cinco horas de viagem, chegaram ao loca. Os pés de jabuticabas estavam no dia exato, não se viam galhos, todos cobertos pelas redondas e lustrosas frutinhas, prontas para serem chupadas.

Apeando, o capitão amarrou seu cavalo em um tronco e atacou as jabuticabas.

— Zeca, cê pode aproveitá par comer. Eu vou só chupar essas pretinhas, tão um mel.

— Dou cumida pros dois, tio?

— Não. Nem cumida, nem água, nem nada. Deixa eles morrê de fome.

— Mas, pai...

— Antes, tira as sela dos cavalos e solta eles prá pastá.

Tão entretidos estavam, o capitão trepado numa jabuticabeira, e o filho sentado manducando a paçoca seca com pedaços de linguiça e banana, que não se deram conta da aproximação de um grupo de cavaleiros que vinham pela mesma trilha, rumo a Candeia Quebrada.

Só perceberam quando o que parecia ser o chefe gritou a ordem para os uniformizados:

— ALTO!

Zeca levantou-se de um supetão e o coronel escorregou pelo galho abaixo, amassando muitas frutas e lambuzando sua roupa.

O chefe, cujo uniforme mostrava a patente de tenente, era um homem forte, alto, e mais alto parecia devido ao seu chapéu de pala alta. Os outros quatro estacaram logo após o chefe.

O tenente adiantou-se, rodeou a jaula sem uma palavra; com um sinal, determinou aos seus homens que cercassem os dois homens e a jaula pelos quatro lados. Sem voltar para o capitão e o filho, falou em voz alta e clara, própria de homens que sabem comandar uma tropa:

— O senhor está levando dois presos para onde?

— Moço (respondeu o capitão) se eu fosse o senhor não queria saber não. É coisa minha, de meu interesse e não interessa a ninguém mais, não!.

— O senhor não pode...

O capitão interrompeu a fala do tenente.

— Posso e faço o que me der na telha. Não entre nos meus negócios.

— Sou o Tenente Jeremias de Almeida e prendo o senhor e todos os que estão com o senhor.

O capitão sacou da garrucha que estava dentro do gibão, mas um dos acompanhantes do alferes foi mais rápido e atingiu o capitão com um tiro de escopeta. No ombro direito, tirando o equilíbrio do capitão, que perdeu seu tiro e girou o corpo, caindo ao chão. Tentou ainda sacar de outra garrucha, mas o próprio sobrinho pisou no seu braço.

— Não adianta tio. O senhor quer morrer por causa daqueles dois ali na gaiola?

O tenente e seus camaradas desceram dos cavalos e imobilizaram o capitão.

— Moço, amara um pano bem forte no ombro dele, Não tem perigo de morrer.

Foi até á jaula onde estava o casal, e quebrou grade liberando Candinha e Ludovico. Os dois estavam tão fracos que não conseguiram sair sozinhos da gaiola.

— Dê água e comida prá eles. Vocês tem comida ai nos alforjes?

— Sim — respondeu Zeca. — Dá pra eles comê um pouco;

Após o casal comer um pouco e tomar água, o alferes colocou o capitão, amarrado, no fundo da jaula, e os dois namorados na boleia, junto com Zeca.

A caravana, agora aumentada, voltou para Candeia Quebrada.

O capitão, preso, Zeca sob vigilância, guiando a jaula, voltaram para Candeia Quebrada.

No caminho, um dos alferes, que tinha ouvido falar dos “serviços” do capitão, passou a informação para o tenente.

Orgulhoso demais o capitão confessou

— É verdade, faço uns acertos de contas para meus amigos. Ninguém tem nada a ver com isso...

Levado para a cidade de Vento Leve, a comarca da região, foi julgado e nunca mais saiu da cadeia.

Zeca não sofreu repressão pois nenhum crime lhe foi imputado; ficou de posse da malfadada jaula e do cavalo que a puxava.

Candinha e Ludovico, casaram-se sem a presença do pai nem da mãe da noiva, mas com a benção de da tia Clarimunda e dos pais de Ludovico. Foram morar bem longe dali e ninguém mais ouviu falar deles.

A morte misteriosa de dona Sinhana deu o que falar na fazenda e em toda região: sumiu certa tarde de domingo e só foi encontrada no dia seguinte, na Cachoeira das Pedras. Aparentemente havia caído do alto do penhasco.

Afogara-se ao atravessar o rio a vau e fora arrastada pelas águas até a cachoeira, de onde despencou?

Teria sido vítima de vingança em consequência de algum dos “acertos” feitos pelo marido?

Ou enlouquecera ao saber da prisão do marido e do casamento da filha?

A solidão é má companhia e pior conselheira.

A fazenda mostra hoje os resultados do abandono. Só dão sinais de viço e produção as dezenas de jabuticabeiras esperando que um dia o coronel volte lá para saborear os doces frutos.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 13 de outubro de 2018.

Conto # 1090- da série INFINITAS HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 14/12/2018
Reeditado em 14/12/2018
Código do texto: T6526793
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