A classe armada
O estratego convocou o arquiteto Hipódamo ao seu palácio, para lhe dar uma importante incumbência.
- Planejar uma nova cidade?
- Na verdade, uma nova colônia - explicou o estratego. - Recebemos um pedido de ajuda dos exilados de Síbaris, na Magna Grécia... eles tentaram refundar a velha cidade, mas foram novamente expulsos da região pelos crotoneses, os mesmos que destruíram a Síbaris original. Desta forma, mesmo com o patrocínio de Atenas, considero que recomeçar do zero talvez seja uma tática mais apropriada; e você, Hipódamo, é conhecido por dar nova vida a lugares arrasados.
- Fico grato pelo reconhecimento, estratego - disse Hipódamo, cofiando a barba grisalha. - Mas gostaria que também, além do planejamento urbano, me permitisse implantar nesta nova colônia meu sistema administrativo modelo.
O estratego titubeou.
- O seu sistema... refere-se aos seus escritos do "Melhor Estado"?
- Este mesmo. Três classes de cidadãos: soldados, artesãos e agricultores. Apenas os soldados podem usar armas. A terra é dividida em sacra, pública e privada.
- Sem querer polemizar, Hipódamo... - ponderou o estratego. - Mas esse seu conceito do "Melhor Estado" soa um pouco como tirania, considerando a realidade aqui de Atenas... quem garante que artesãos e agricultores não serão explorados e privados dos seus direitos pelos militares?
- Há anos que faço estudos sobre sistemas administrativos de várias cidades, por toda a Grécia - insistiu o arquiteto. - Pode ter certeza, estratego, de que a minha proposta é a mais lógica e racional. Se vamos começar do zero, porque não redesenhar o sistema de classes? Ter um grupo de soldados em caráter permanente, significa dizer que eles poderão dedicar-se exclusivamente à defesa da cidade, sendo remunerados por ela para isso.
- Continuo achando que a sua ideia submete duas classes de cidadãos aos portadores de armas - avaliou o estratego. - Mas, já que estamos falando de uma colônia na Magna Grécia, se der errado, estará longe demais para ter qualquer influência sobre nós.
E Péricles deu carta branca à Hipódamo, para que levasse adiante seu conceito de cidade ideal na Itália.
* * *
- Os sibaritas estão reclamando, Hipódamo - informou o comandante da colônia, Xenócrito, ao entrar no escritório de Hipódamo, localizado numa casa reformada na velha Síbaris.
- Grande novidade - resmungou o arquiteto, curvado sobre vários papiros com o plano urbanístico da colônia, até então denominada simplesmente de Nova Síbaris. E, erguendo a cabeça:
- O que foi desta vez?
- Não concordam com a divisão da sociedade entre três classes de homens livres, conforme sua proposta. Querem que todos os cidadãos tenham os mesmos direitos, inclusive de portar armas.
- E eu queria ter asas para ver as coisas de cima - replicou Hipódamo. - Xenócrito, pela última vez: se os sibaritas não estão satisfeitos, podem pegar suas coisas e ir embora. Eles só puderam voltar à esta cidade-fantasma graças à intervenção de tropas atenienses!
- Eles estão cônscios disso. Mas seria bom que você os reunisse e desse um ultimato.
- Eu? Sou apenas um arquiteto! - Protestou Hipódamo.
- Arquiteto e autor do "Melhor Estado". Parece que chegou a hora de defender sua obra para quem não a leu - ironizou Xenócrito.
* * *
E na ágora em ruínas de Síbaris, reuniram-se os novos colonos recém-chegados da Grécia e os sibaritas exilados, para debater com Hipódamo a implantação da divisão dos homens livres em classes. O arquiteto tomou a palavra:
- Desde que aqui chegamos, nós, que viemos da Mãe Grécia, temos ouvido seguidas reclamações por parte dos sibaritas. Sibaritas, lembrem-se: o simples fato de hoje poderem reclamar, no sítio da sua antiga cidade, deve-se única e exclusivamente à presença militar ateniense nesta região. Se os atenienses forem embora, os crotoneses voltarão... e os expulsarão como se fossem cães sarnentos.
Os sibaritas ficaram indignados com a analogia, mas a observação do arquiteto fora certeira.
- Portanto, parem de reclamar postos e honrarias que não mais existem - prosseguiu Hipódamo. - A nova colônia sequer será construída sobre a velha Síbaris, como todos já foram informados. Quem lá habitar, terá que se submeter às leis do Melhor Estado!
- E quem irá escolher os que serão da classe dos soldados? - Questionou um sibarita.
- Faremos a escolha pelo sistema mais democrático existente, o sorteio - retrucou Hipódamo. - O cidadão adulto que se sentir capaz de usar corretamente uma arma, deverá escrever seu nome num óstraco, o qual será depositado numa urna. Em seguida, será retirado da urna o equivalente a um terço dos homens livres da colônia. Se alguém desistir, retiramos outro óstraco da urna.
- E se alguém que não pertença à classe dos soldados for pego usando uma arma sem autorização? - Indagou um colono ateniense.
- Será expulso da colônia - alertou Hipódamo.
No dia seguinte, antes do sorteio dos portadores de armas, parte dos sibaritas abandonou as ruínas da cidade em protesto. Os que ficaram, resignados, se submeteram ao ordenamento proposto por Hipódamo.
* * *
Zenão, um dos conselheiros da vizinha cidade-estado de Crotona, foi recebido por Hipódamo e Xenócrito na sede provisória do governo da nova colônia, na velha Síbaris.
- A princípio, estávamos preocupados com a presença dos atenienses nesta região - confessou Zenão. - Imaginamos que poderiam querer reinstalar nossos inimigos sibaritas em sua antiga cidade, mas soubemos que a maioria deles resolveu partir para longe. Vocês os expulsaram, por conta de sua indolência e apreço pelos prazeres físicos?
- Na verdade, não os expulsamos - admitiu Xenócrito. - Eles decidiram ir embora, voluntariamente.
- Sem armar confusão? - Zenão estava admirado.
- Os argumentos do nosso arquiteto Hipódamo foram muito convincentes - Xenócrito olhou em direção ao citado, que apenas sorriu modestamente, cofiando a barba.
- Pelos deuses! - Exclamou Zenão. - Nós tivemos que reunir um exército com milhares de homens para destruir Síbaris... e você conseguiu que eles se fossem, apenas argumentando?
- Os sibaritas remanescentes são minoria nesta colônia - esclareceu Hipódamo. - Seus pontos de vista, e mesmo suas pendengas com Crotona, são agora parte do passado. Queremos começar uma era nova, de paz e cooperação, com todos os nossos vizinhos que estiverem dispostos a retribuir da mesma forma.
E diante do olhar de apreciação do conselheiro, acrescentou:
- Já ouviu falar da minha obra, o "Melhor Estado"?
- [11-11-2018]