Sobre ratos e homens
A primeira coisa que Gerhard Domagk percebeu ao entrar em casa naquela noite, foi o olhar de dor da esposa. Ela enxugou as mãos no avental antes de inclinar o rosto para beijá-lo.
- Como está Hildegard? - Indagou ele.
- Mal. Delirando - retrucou a mulher, olhos baixos. - O dr. Berkner disse que havia esgotado o seu estoque de medicamentos, e que nada mais poderia fazer...
- Gostaria de ter o dr. Gemmingen por perto nestas horas... - sussurrou Domagk, retirando chapéu e sobretudo e pendurando-os num cabideiro junto à porta de entrada.
- Gemmingen é judeu - sussurrou a esposa de volta, horrorizada. - Judeus estão proibidos de exercer a medicina!
- Desde que curasse minha filha, poderia ser até um feiticeiro negro do Congo - retrucou Domagk com amargura.
Pegou a maleta de couro que usava para transportar papéis do trabalho, e sentou-se com a esposa num sofá da sala.
- Preciso fazer alguma coisa, ou nossa filha vai morrer - murmurou.
- Você é um diretor da Bayer... deve ter acesso a alguma droga que possa salvar Hildegard - insistiu a mulher.
Domagk ficou em silêncio por alguns instantes, maleta no colo. Finalmente, balançou a cabeça.
- Sim.
- Você tem? - Inquiriu a esposa, incrédula. - E por que não usa?
Domagk virou-se para ela, muito sério.
- É uma droga experimental... chama-se Prontosil. Só foi testada em ratos.
A esposa segurou a cabeça com as mãos.
- Meu Deus! O que será de Hildegard!
Domagk ergueu a cabeça, uma súbita decisão refletida em seus olhos azuis.
- Se a alternativa é a morte, creio que devo tentar salvar minha filha... custe o que custar.
E ergueu-se do sofá.
* * *
Os dois agentes da Gestapo aguardaram até que a porta da casa fosse aberta por uma menina, praticamente uma adolescente, com a pele de uma estranha tonalidade avermelhada. Ela sustentou o olhar deles, como se já estivesse acostumada com aquela reação de estranheza.
- Você é Hildegard Domagk? - Indagou um dos agentes, cabelo cortado à escovinha.
- Sim, sou eu - respondeu a garota.
- Viemos ver seu pai. Ele está em casa?
Hildegard encarou-os, pensando se dar uma resposta negativa adiantaria de alguma coisa. Concluiu rapidamente que não.
- Sim, meu pai está em casa. Entrem, eu vou chamá-lo.
Os agentes a seguiram, retirando os chapéus, e aguardaram de pé junto a entrada até que Gerhard Domagk aparecesse.
- A que devo a honra da Gestapo em minha casa? - Indagou ele com calculada indiferença.
- O senhor está preso - declarou o agente de cabelo à escovinha.
- Sob qual acusação? - Indagou Domagk.
- Ter aceito o Prêmio Nobel de Medicina - prosseguiu o agente. - Como sabe, desde que aquele falastrão do Carl von Ossietzky recebeu o Nobel da Paz em 1935, cidadãos do Reich estão proibidos de aceitar Prêmios Nobel.
- Sim, estou ciente disto - declarou Domagk.
- Ignorar deliberadamente a lei faz do senhor um criminoso - declarou o agente de cabelo à escovinha. - Terá que vir conosco.
- Posso me despedir da minha família?
- Seja breve.
Na cozinha, encontrou a esposa e os três filhos, incluindo Hildegard, abraçados com ela. A esposa estava com os olhos vermelhos.
- Para onde vão te levar? - Sussurrou ela.
Domagk abraçou-a.
- Sossegue, minha querida, sossegue. Afinal de contas, eu ainda sou um diretor da Bayer. Vão precisar do meu trabalho para o esforço de guerra.
Domagk estava com a razão. Uma semana depois, após ter sido forçado a escrever uma carta ao comitê do Nobel recusando a premiação, foi liberado pela Gestapo para prosseguir em seu trabalho nos laboratórios da farmacêutica.
Apenas em 1947 ele logrou obter a medalha pelo Nobel de Medicina de 1939. O dinheiro do prêmio, contudo, já havia sido redistribuído anos antes.
- [17-09-2018]