Cão Nino
Em 1936, Klaus Endres era um jovem empresário alemão, bem-sucedido no ramo da hotelaria. Era casado e tinha quatro pequenos filhos. Morava na cidade de Munique, sul da Alemanha, onde tinha vários hotéis de alto padrão. Seu hobby era criar cães da raça pastor alemão. Eu diria que era mais que um hobby: era uma paixão. Tudo ia bem, até que em 1939 foi convocado para lutar ao lado das forças nazistas. Por ter formação em direito, passou a exercer o oficialato como primeiro-tenente. A princípio foi designado para atuar na intendência, longe dos combates. Em pouco tempo, embora não concordasse com as posições hitleristas, sentiu desejo de lutar no front.
Graças a sua coragem e disciplina, em novembro de 1942 estava no alto de um desfiladeiro, na região dos Apeninos, no norte da Itália, junto com um de seus cães, pastor alemão capa preta, o favorito, Adler. Exercendo a patente de major, comandava uma companhia de infantes, bem armada e equipada, especializada em combates nas montanhas, com efetivo de trezentos e cinquenta soldados, bloqueando a passagem de eventuais tropas invasoras aliadas.
Já fazia dois meses que o major e sua companhia ali estavam. As nevascas haviam chegado e o frio era intenso: porém, nada do inimigo, somente expectativa. Nos dias mais amenos, o major Klaus, acompanhado de alguns soldados, saía ali por perto para exercitar seu cão. Lembrava com saudade de sua esposa, dos filhos e de todos os seus cães, que não mais os pertencia, pois foram confiscados pelo exército alemão para patrulha e guarda nos campos de concentração.
Em meados de dezembro de 1942, começou a perceber que seu cão, amigo certo de todos os dias, se ausentava à noite, só retornando pela manhã. Fez de tudo, procurando saber por onde ele andava. Não chegou a nenhuma conclusão. Apenas sabia que aquele cão, além de companheiro querido, lhe trazia boas lembranças dos familiares, dos amigos e funcionários ameaçados por uma guerra brutal.
Em 1914, na América, em uma fazenda texana, nasceu Thomas Moore. Caçula, foi criado por seus pais ao lado de duas irmãs e três irmãos. Cresceu ouvindo histórias sobre a independência do Texas, conseguida por meio de muitas batalhas. Ouvia também sobre a sangrenta Guerra Civil Americana, na qual o Texas combateu ao lado dos Confederados, e sobre a Primeira Grande Guerra, iniciada no ano de seu nascimento. Ele tinha uma convivência cotidiana com inúmeros animais, pelos quais desenvolveu admiração e respeito. Enfrentou e superou, junto com toda sua família, a Grande Depressão americana de 1929.
Em 1937, realizou seu grande sonho: ingressou na Academia Militar de West Point. Em 1940, formou-se com mérito como segundo-tenente de infantaria do Exército americano. Em janeiro de 1941, começou um treinamento intensivo na 48ª Brigada de Paraquedistas. Em meados de 1941, estava pronto para ações de saltos e combates, nos mais variados tipos de terreno. Lutou na África, sob o comando dos ingleses, contra os alemães comandados pelo general Rommel. Foi condecorado por atos de bravura.
Em fevereiro de 1943, estava em uma base aérea próxima de um porto, no norte da África, onde tropas inglesas e americanas aguardavam a ordem de invasão da Itália, dominada pela Alemanha. Vinte paraquedistas, bem experientes, comandados pelo agora capitão Thomas, foram selecionados para verificarem o potencial inimigo em um desfiladeiro e imediações, na região dos Apeninos, no norte da Itália.
Na noite do dia 27 de fevereiro de 1943, embarcaram. Durante o voo, o capitão expôs para os seus comandados o objetivo da missão e o plano. Às vinte três horas, saltaram a uma distância de oito quilômetros do desfiladeiro e se entrincheiraram. Ao amanhecer, seguiram em direção ao desfiladeiro. Quando estavam a dois quilômetros do destino, foram recebidos com pesado fogo de morteiros 60 mm da companhia comandada pelo major Klaus e com obuses 105 mm da artilharia alemã, estacionada longe dali. Capitão Thomas pensou de maneira conclusiva:
– Não temos mais nada para ver ou saber! As tropas alemãs estão alertas e bem armadas em toda região! No alto do desfiladeiro impedirão a passagem, como no passado, na Grécia, na batalha das Termópilas, os guerreiros espartanos impediram a passagem do exército persa!
Em meio ao fogo inimigo, bradou:
– Não fiquem juntos! MANTENHAM-SE SEPARADOS! Verificou que vários paraquedistas, que horas atrás recebiam suas instruções durante o voo, jaziam ensanguentados, colorindo a neve de vermelho – na guerra, a cor da morte. Sabia que aquela situação era extremamente adversa. Ordenou:
– Me acompanhem mantendo a distância, vamos sair em direção ao desfiladeiro, fora do perímetro de tiro!
Quando chegaram a uma distância próxima de quinhentos metros do desfiladeiro, os morteiros e obuses haviam cessado. Do alto do desfiladeiro, as metralhadoras iniciaram rajadas contínuas. O major Klaus, acompanhado de trinta subalternos, se antecipou. Objetivando o confronto, veio ao encontro do capitão Thomas e dos oito combatentes que restaram. Naquele momento, o capitão avistou, em um terreno mais elevado, uma casa em ruínas. Poderia ser a sede do que, outrora, fora uma fazenda, e para lá se dirigiram e se abrigaram. Para sorte do capitão, começou uma nevasca leve, mas o bastante para cessar os combates. Major Klaus e seus soldados cercaram a casa para o ataque final. Ordenou que seus artilheiros posicionassem os morteiros com tiros diretos, já que naquela distância, cento e cinquenta metros, seria possível. O único inconveniente era mesmo a nevasca, por isso ficou aguardando.
A noite chegou e a nevasca continuou. Os americanos aproveitaram a oportunidade para se alimentarem com ração seca, que fazia parte dos inúmeros equipamentos contidos em suas mochilas. Era uma questão de tempo: capitão Thomas sabia que, quando a nevasca passasse, seria o fim. Lembrou-se de sua infância, dos seus irmãos e pais ainda vivos. Houve confidências de todos, sobre os mais variados assuntos. Cantarolaram bonitas canções que emocionaram até mesmo os alemães.
No raiar do dia, a nevasca passou. Os soldados alemães começaram a acertar os morteiros para o derradeiro golpe. Foram dois disparos, os chamados tiros de correção, para acerto da pontaria. Atingiram o fundo da casa, ferindo o tenente subcomandante da missão e um sargento. Em meio à confusão estabelecida, ouviram-se fortes ruídos de cães. Major Klaus, mais perto da casa, ordenou:
– Suspendam o fogo! Suspendam o fogo!
Capitão Thomas correu para os fundos, sobre os companheiros atingidos: nada tinha a fazer, estavam mortos. Todavia, viu que debaixo das tábuas do assoalho de um porão havia cães feridos. Constatou que, devido aos dois tiros de morteiro, uma cadela pastora alemã estava inconsciente, gravemente ferida, e seus sete filhotes morreram, restando ileso somente um filhote macho. O capitão não teve opção, senão o sacrifício da cadela. Quanto ao filhote, o cãozinho com poucas semanas de vida, provavelmente nunca vira um humano. Estava assustado, talvez em estado de choque. O capitão, para acalmá-lo e aquecê-lo, colocou o filhote junto ao seu peito, protegido por pesadas roupas brancas de inverno e camuflagem.
Naquele momento, fez-se um silêncio aterrador de ambos os lados. Depois de alguns minutos, o major Klaus rompeu o silêncio, falando com a voz alta e empostada, típica dos militares, em inglês de alto nível, quase sem sotaque:
– Sou o major Klaus, desejo falar com o comandante americano! Por favor, responda! Por favor, responda!
Prontamente, o capitão respondeu:
– Pode falar, major, sou o capitão Thomas!
O major, sem constrangimento, pergunta:
– Capitão, escutei barulho de cães, quantos são?
– Uma cadela e sete crias estão mortas, restou somente um filhote macho!
O major, fazendo uma rápida dedução, indaga:
– Capitão! Qual a raça e cor?
– Pastor alemão, capa preta, inclusive a mãe!
O major, com profunda sensação de perda, conclui que aqueles filhotes são filhos de seu cão, pastor capa preta, Adler, que foi morto recentemente, vitimado por estilhaços de bombas lançadas pela aviação inglesa. Com a voz embargada, o major quase que ordena:
– Capitão, graças a esse filhote, vou retirar meus homens, vocês poderão partir! Deverá fazê-lo em quatro horas, tempo suficiente para cuidar do filhote e tomar todas as providências cabíveis, relativo à sua volta!
O capitão faz a última pergunta:
– Major, se quiser, posso deixar o filhote sob seus cuidados!
O major responde secamente:
– Não, capitão, aqui sua chance de sobrevivência seria mínima. Leve-o e cuide para que ele se torne um cão feliz!
O major ordena debandada para toda tropa alemã. De dentro da casa, com visão privilegiava, o capitão observa a retirada dos alemães.
Em seguida, fora da casa, o capitão Thomas, junto com seus paraquedistas, procede ao sepultamento do tenente, do sargento e de todos os cães, atingidos pelos tiros de morteiro. O cãozinho, “bichinho de pelúcia”, aconchegado no peito do capitão, começa a ficar impaciente. O capitão prepara um mingau ralo de bolachas misturadas com leite em pó e oferece ao filhote que, sem refugar, para alegria do capitão, engole tudo com voracidade.
O capitão combina com seus paraquedistas sobre a melhor estratégia para a volta e chega à conclusão de que o melhor é seguir viagem. Os sete paraquedistas, baseando-se em um mapa da região e uma bússola, seguem viagem de volta, procurando atingir um determinado ponto, distante vinte quilômetros, onde militantes da resistência italiana, favorável aos aliados, os aguardavam.
Ao passar próximo do lugar onde estavam os doze corpos dos companheiros atingidos pelo fogo da artilharia alemã, o capitão não se conteve. Fez uma breve parada, retirou as placas de identificação e, junto dos demais, aproveitando os buracos feitos pelas granadas alemãs, efetuou o enterro de todos.
A noite chegou e os americanos continuaram a caminhada, procurando atingir o local planejado o mais rápido possível. Durante o percurso, já haviam feito pequenas paradas para que o cãozinho pudesse alimentar-se e fazer suas necessidades fisiológicas. Em dez horas de caminhada, transpuseram somente doze quilômetros. Os paraquedistas estavam exaustos. Capitão Thomas decidiu parar para pernoitar e recuperar as energias. Com mais calma, cuidou do cãozinho: novamente, ofereceu mingau ralo de bolacha com leite e mais uma vez o cãozinho comeu com prazer. Começava ali um elo muito forte entre capitão Thomas e o pequeno pastorzinho capa preta. O cãozinho, já tranquilo, ameaçava até mesmo algumas brincadeiras, mas devido ao frio, logo demonstrava desejo de voltar para junto do peito do capitão, que mal sabia que ali, bem do lado esquerdo, ele iria ficar para sempre.
Antes mesmo de o dia amanhecer, os americanos já estavam a caminho, tentando encontrar os italianos da resistência. Depois de mais oito horas de caminhada, ao anoitecer, chegaram próximo de um bosque. Embora não percebessem, há algum tempo, alguém já os observava. Logo na entrada, foram surpreendidos por uma emboscada. Uma emboscada de italianos amigos, ainda bem. Foi um susto, só um susto... O chefe do bando, Angelino Milano, um homem forte e rústico, de quase dois metros de altura, saudou os americanos em inglês:
– Sejam bem-vindos! Não esperávamos recebê-los tão cedo, mas é melhor assim!
Capitão Thomas agradece com um caloroso aperto de mão. Angelino pergunta:
– Soubemos que vocês tiveram problemas com os alemães e, como consequência, perderam muitos homens?
Capitão Thomas conta toda história para Angelino, que fica perplexo com a atitude do major Klaus, mas ao mesmo tempo confortado em saber que o exército alemão ainda conta com nobres soldados.
Os americanos são levados para uma clareira no meio do bosque, onde há um pequeno campo de pouso. Lá ficam aguardando a chegada de um avião, que os levariam para a Inglaterra. Depois de cinco horas, já de madrugada, a aeronave pousa. Os americanos se despedem rapidamente e seguem seu destino.
Em solo inglês, capitão Thomas deixa o cãozinho sob os cuidados do soldado Scott e segue para o quartel-general. Passa todas as informações sobre a missão. Os aliados, agora não há dúvidas, sabem do potencial inimigo no desfiladeiro e na região dos Apeninos. Capitão Thomas e seus soldados recebem uma semana de dispensa e ordem para posteriormente se integrarem à 38ª Brigada de Paraquedistas.
Nessa semana, capitão Thomas procura dar o máximo de atenção para o cãozinho, que agora tem um nome, Nino. Embora pequenino, de longe já reconhece o capitão, que é recebido por um constante abanar de rabo. Capitão Thomas, preocupado com essa dependência, planeja, de maneira lógica, como será a vida de Nino, visando o bem-estar do animal. De imediato, em comum acordo, além do capitão Thomas, Nino torna-se responsabilidade de mais três militares: soldado Scott, sargento Collins e major Smith. Os três realizam o trabalho de decifrar mensagens, sempre em terra, longe das ações de combate. A logística era, acima de tudo, quebrar a dependência e, caso algum deles viesse a faltar, minimizar a perda junto ao cão. Mas o fato é que o pequeno Nino se torna alvo de atenção de toda 38ª Brigada de Paraquedistas.
Após dois meses, capitão Thomas começa um treinamento leve, com o objetivo de aprimorar os conhecimentos e bons modos de Nino. Depois de mais quatro meses, Nino e seus quatro responsáveis estão juntos em uma base aérea na Cecília, invadida recentemente por tropas aliadas.
Capitão Thomas é um treinador de fato. Com idade próxima de dez meses, Nino já está preparado para saltar acoplado ao capitão Thomas ou a um paraquedista. Ele sobe feliz no avião e fica frustrado quando não vai preparado para o salto.
A 38ª Brigada de Paraquedistas é designada para saltar no norte da Itália, por trás das linhas alemãs. O plano consiste em atacar de surpresa o exército alemão, bem entrincheirado nos morros italianos, lugar onde os pracinhas brasileiros, posteriormente, ao custo de muitas baixas, viriam a conquistar. São muitos pelotões que compõem a 38ª Brigada de Paraquedistas, e capitão Thomas comanda um deles. Por ser uma missão de alto risco, capitão Thomas decide, como sempre, que Nino ficará em terra. O salto acontece, os combates são travados, as baixas ocorrem. Capitão Thomas morre em combate.
Por ser um herói de guerra, o corpo é resgatado e transladado para Cecília. Com todas as honrarias, o corpo é velado por muitos militares, entre os quais estão sargento Collins, soldado Scott, major Smith e o cão Nino, que, sentado ao lado do major, atentamente, de orelha em pé e olhar fixo, observa o caixão. Em dado instante, Nino, desrespeitando o comando, coisa que até então não tinha acontecido, vai próximo ao caixão, e, apoiando suas patas, consegue levantar-se e ver o corpo do capitão Thomas. Volta para seu lugar ao lado do major Smith e chora.... Aquela cena enternece a todos, que não fazem outra coisa senão também chorar.
No dia seguinte, Nino é visto correndo, feliz da vida, perto do campo de pouso, coisa que só fazia ao lado do capitão Thomas. Tal procedimento, no decorrer dos dias, foi se repetindo. Muitos afirmaram, de maneira categórica, que quando isso acontecia, capitão Thomas estava junto do cão comandando a brincadeira. A guerra está chegando ao fim, a Itália já está liberta do nazismo, falta pouco para os aliados consolidarem a vitória sobre os alemães, porém, o Exército americano combate em duas frentes: Europa contra Alemanha e Pacífico contra o Japão. Precisava-se aproveitar seus efetivos da melhor maneira possível, nos mais diversos lugares, por isso, após a invasão dos aliados nas praias da Normandia e posterior libertação da França, major Smith, sargento Collins, soldado Scott e obviamente o cão Nino são transferidos para fronteira da França com a Suíça. Lá, eles e outros militares da intendência farão um trabalho de guarda na fronteira. O lugar era bonito, as instalações eram boas e o trabalho fácil. Em poucos dias, todos se adaptaram.
Em uma noite escura, um homem vestido de preto, com o rosto e mãos camuflados, espera o melhor momento para burlar a vigilância e atravessar a fronteira da França para Suíça. O melhor momento chega quando o sargento Collins vai dar uma cochilada e deixa Nino no comando. O homem de preto, a uma distância de cem metros da guarita, com um alicate, começa a cortar o arame farpado. Nino, imóvel, a dez metros, observa a audácia do homem. Sabe que deverá intervir, está pronto para atacar, quando em meio à escuridão vê e ouve o capitão Thomas: “Nino, esse é amigo! ... Esse é amigo! ... Deixe-o passar!” Com o braço do capitão Thomas envolto em seu pescoço, Nino continua imóvel. O homem termina de cortar o arame, ultrapassa a cerca e começa a correr. Joga o alicate no chão, dá um soco no ar e grita:
– Para mim, a guerra acabou! Acabou!
Assim, lá vai o felizardo major Klaus encontrar-se com sua esposa e filhos, que o aguardam em uma cidade fronteiriça na Suíça.
Ao término da guerra, levado pelo major Smith, Nino foi para América, mais precisamente para a pequena cidade de Durango, que fica no Colorado, terra natal do major. Fora visitado inúmeras vezes pelos amigos soldado Scott, sargento Collins e, certamente, pelo capitão Thomas. Viveu até 1960. Acredito que hoje ele está no céu brincando de guerra, com todos os seus amigos!