O Dia da Incerteza

Jennifer enrolou os dedos nos longos cabelos castanhos e depois nos encarou, a mim e a Chelsea, com ar de dúvida.

- A embaixada convocou todos os residentes americanos a abandonar o país... vocês ouviram o comunicado.

- Ouvimos - assenti. - Mas ainda assim, penso que deveríamos ficar e ver o que vai acontecer.

Chelsea balançou a cabeça, em concordância.

- Estamos há quase dois anos no Vietnã fazendo o nosso trabalho humanitário, e sabemos o que pensam e como agem os dois lados... todos nos conhecem e tem ciência de que estamos aqui para ajudá-los. Não é porque o Norte está agora perto da vitória, que as coisas irão mudar.

Jennifer continuou a enrolar os cabelos.

- Tá, nós vimos os efeitos da guerra... duvido muito que os moradores de Saigon saibam o que isso significa, isolados na sua bolha de conforto... - ponderou ela. - Mas, imaginem: a Frente Nacional de Libertação vai entrar em Saigon e pode encontrar resistência do exército do Vietnã do Sul. Nós somos três mulheres... americanas... não imaginam que isso possa ser perigoso, durante e após a tomada da cidade?

Eu e Chelsea nos entreolhamos.

- Sim, pode ser perigoso - admitiu Chelsea. - Mas Sandra e eu decidimos ficar. Se você quer ir para a embaixada, não vamos recriminá-la.

Jennifer era a mais nova do trio, e apesar dos meses vividos conosco em nosso pequeno centro de reabilitação de mutilados de guerra no interior do país, ainda não estava convencida de que a derrocada do Vietnã do Sul não seria o estopim para um banho de sangue contra a população civil da capital - mulheres estrangeiras inclusas. Havíamos decidido ir para Saigon nos últimos dias de abril de 1975, justamente por causa do rápido avanço das tropas vietcongues, mas relatos de nossos amigos e conhecidos vietnamitas nas áreas agora sob controle do Norte, nos informavam de que, ao menos para eles, que não mantinham contatos próximos com as tropas sulistas ou com o exército norte-americano, a troca de comando não causara grandes aborrecimentos. Era com isso que eu e Chelsea contávamos, embora o quadro pintado pela imprensa sul-coreana fosse de absoluto terror.

- Tomei minha decisão - disse finalmente Jennifer. - Não vou deixar vocês sozinhas.

Nos abraçamos, felizes por estarmos juntas.

* * *

Havíamos alugado uma pequena casa próximo ao centro de Saigon. Na noite de 30 de abril, depois que os últimos helicópteros americanos haviam partido, ainda ouvimos tiros ocasionais. Depois, reinou silêncio até a manhã. Resolvemos que era hora de sair e encarar o mundo, ver se ele havia virado de ponta-cabeça.

- Tem muita gente na rua - foi a primeira coisa que Jennifer comentou.

Havia. A população de Saigon também resolvera conferir o que o destino lhe reservara, e após meses de conflito, cada vez mais próximo, reinava uma sensação generalizada de alívio. As tropas vietcongues estavam por toda parte: acampadas nos parques públicos, lavando roupa nos chafarizes, usando árvores para estender varais. Tanques passavam em colunas pelas ruas, o povo atirando flores e cigarros aos soldados.

- Parece uma confraternização - avaliou Chelsea.

- E não deixa de ser - avaliei. - Imagine: foram anos e anos de divisão do país, e agora podem se reencontrar, finalmente.

Não iríamos passar desapercebidas, é claro. Soldados vietcongues nos apontavam, assombrados. E tiravam fotos. Todos estavam tirando fotos. Finalmente, fomos abordadas por um trio de soldados, recém-chegados à cidade.

- Vocês... americanas? - Perguntou um deles, capacete sob o braço.

- Somos - retrucou Chelsea sorrindo.

- Tirar foto? - Indagou o soldado, exibindo sua câmera russa.

- Chac chan! - Respondeu Chelsea.

O soldado chamou um outro para fotografar, e nos agachamos à frente do trio, para que eles pudessem sair na foto sem obstáculos. De qualquer forma, parecia ser uma boa posição para um cidadão dos Estados Unidos da América estar em Saigon, naquela manhã de 1º de maio de 1975.

- Nu cuòi! - Exclamou o soldado-fotógrafo, apontando para a lente da câmera.

Sorrimos.

- [17-08-2018]