O julgamento
O padre Jessop recebeu o pão de cevada, recém-assado, das mãos de Saerus, um dos meninos abrigados pelo monastério. Examinou o alimento, cheirou-o com satisfação, e declarou:
- Este vai servir!
Saerus sorriu.
- Posso ver, padre?
- Pode. Mas vá buscar outro para nós ou vou acabar comendo esse!
Colocou o pão redondo sobre a mesa rústica de sua cela e sentou-se num tamborete. Enquanto Saerus não retornava, pegou um estilete de cobre polido numa arca de madeira ao lado da cama, e virou a base do pão para cima. Quando o garoto voltou, com outro pão de cevada partido em dois, indicou-lhe que se sentasse na arca para acompanhar a tarefa que iria fazer.
- Vamos comer primeiro... depois trabalhamos.
Comeram em silêncio o pão quente, e quando terminaram, Jessop persignou-se e exclamou:
- Deo gratias!
Pegou o estilete e mostrou a base, grosseiramente plana, do pão sobre a mesa.
- Está vendo? O Pai Nosso inteiro vai ter que caber aqui!
E com gestos precisos, começou a escrever em latim:
Pater noster, qui es in caelis,
sanctificetur nomen tuum,
adveniat regnum tuum,
fiat voluntas tua,
sicut in caelo, et in terra.
Panem nostrum supersubstantialem da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne inducas nos in tentationem;
sed libera nos a Malo.
Contemplou sua obra e balançou a cabeça em aprovação. Persignou-se novamente.
- Pronto! Agora só falta o queijo de leite de ovelha, mas podemos esperar até amanhã.
- E podemos comer o pão que sobrar, padre? - Indagou esperançoso Saerus.
- Se você não tiver culpa sobre si, poderá comer sem medo - retrucou o padre, lançando-lhe um olhar arguto.
O garoto encolheu-se e nada mais disse.
* * *
E na manhã seguinte, no salão comunitário da aldeia, boa parte dos moradores das redondezas, nobres, mulheres, crianças e escravos, haviam se reunido em torno da lareira localizada no centro do aposento, de paredes de madeira e telhado de palha. O padre Jessop, pão de centeio e queijo de ovelha numa sacola a tiracolo, aguardou de pé até que dois guardas entrassem no recinto, escoltando um sujeito magro, cabelo louro desgrenhado: o tano Eadmund. O trio parou a poucos metros do ponto onde estava sentado o chefe militar local, o tano Stithulf, e o próprio Jessop. Stithulf encarou Eadmund com severidade, e declarou:
- Pelo visto, não há pessoas suficientes nesta região que jurem pela sua inocência, Eadmund.
O interpelado franziu o cenho.
- Eu venho do norte, meu senhor, e não tenho muitos amigos nestas terras. Mas todos que o são, vieram à corte para jurar em meu nome.
Stithulf não abrandou a expressão.
- Muitos mais vieram aqui declarar que você esteve envolvido na fuga do escravo Erwann e sua família. Que lhes forneceu prata e recursos para que fossem para a Bretanha.
- Perdão, meu senhor, mas esta acusação não faz o menor sentido. Se eu tivesse prata suficiente para bancar tal empresa, poderia muito bem ter comprado a liberdade de Erwann e dos seus.
Stithulf cruzou os braços.
- Exceto se o dono do escravo não estivesse disposto a vendê-los... e parece que foi isso que ocorreu, não é, Cynebald?
O interpelado, um outro tano, ergueu-se de sua cadeira dobrável e apontou um dedo para Eadmund.
- Este homem procurou-me dias atrás, e propôs comprar a dívida do meu escravo e de sua família. Eu recusei, pois me interessava que cumprissem o período de escravidão inicialmente acertado!
Stithulf voltou-se para Eadmund.
- E após esta recusa, por uma estranha coincidência, o escravo e sua família desapareceram das terras do seu senhor.
- Desejo provar minha inocência, - retrucou Eadmund - e me submeto ao ordálio.
Stithulf virou-se então para o padre Jessop, que ouvira o diálogo com atenção, e fez um leve aceno de cabeça. Jessop então dirigiu a palavra ao acusado:
- Está ciente de que se for culpado, morrerá de morte horrível e estará condenado à danação eterna?
- Estou ciente - respondeu Eadmund com tranquilidade.
O padre sacou uma pequena cruz de choupo de sua bolsa a tiracolo e a manteve pressionada sobre a cabeça de Eadmund. Depois, retirou da bolsa um pedaço de pão e outro de queijo e os colocou na boca do acusado, que já sabendo o que o aguardava, a mantivera aberta. Finalmente, fez uma exortação em alto e bom som:
- Eu te conjuro, oh homem, pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, pelos vinte e quatro anciãos que diariamente entoam louvores perante Deus, e pelos doze patriarcas, os doze profetas, os doze apóstolos, os evangelistas, mártires, confessores e virgens, por todos os santos e por nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo, que por nossa salvação e nossos pecados teve Suas mãos pregadas na cruz; que se estiveres implicado neste delito ou souberes quem o cometeu, ou nele tiveres alguma culpa, que este pão e este queijo não passem pela tua garganta, mas que estremeças como uma folha de choupo, amém, e que não tenhas descanso, oh homem, até que vomites sangue, se houveres tido alguma relação com este delito. Por obra Daquele que viveu.
Acrescentou rapidamente:
- Engula.
Eadmund fechou a boca, respirou fundo... e engoliu.
Durante alguns momentos tensos, os olhares de todos os presentes cravaram-se no homem de pé entre os dois guardas. Como os minutos foram se passando e nenhuma reação adversa foi observada, o padre Jessop voltou-se para Stithulf e declarou:
- Este homem é inocente.
* * *
Eadmund montou em seu cavalo e depois inclinou-se em direção ao padre Jessop, que o acompanhara para fora do monastério.
- Nunca poderei lhe pagar pelo que fez por mim, padre.
- Mas eu nada fiz - retrucou Jessop com um sorriso. - Não acredita na Providência Divina?
- Mais do que nunca - assegurou fervorosamente Eadmund. E, de olhos postos na estrada em frente:
- Bem, hora de partir para a Bretanha. Talvez consiga tomar um barco indo para lá amanhã cedo.
- Tome cuidado com os piratas... ou poderá voltar para esta ilha nas mesmas condições que Erwann - alertou Jessop com um sorriso matreiro.
Eadmund persignou-se.
- Deus me defenda!
E acenando em despedida, esporeou o cavalo e tomou o rumo que o levaria às terras dos bretões exilados, no continente.
- [14-08-2018]