Remate

Eu estava com a casa do outro lado da rua na mira. Fazia frio na sala arruinada, mas com certeza a sensação térmica lá fora, onde agora nevava, devia ser muito pior. Alguém tocou meu ombro; voltei-me, assustado. Era Klemens, um cachecol sujo enrolado ao redor da cabeça sob o capacete, como uma atadura prendendo os maxilares de um morto precoce. Senti um tremor involuntário subir-me pela espinha.

- Diacho! Quer me matar do coração?

- Talvez seja bom morrer assim... - respondeu, mostrando os dentes amarelados. - Melhor que apodrecer aos poucos nessa geladeira do diabo.

- Alguma ordem? Vamos atacar? - Indaguei, ansioso.

- Nada. Manter a posição, nos disseram. Mas eu ouvi o rádio... notícias de casa!

- Alguma notícia boa?

Pensei comigo que uma notícia excelente seria uma caneca de café bem quente, ou mesmo chá russo. Mas não tínhamos nem um nem outro há semanas.

- Estamos ganhando a guerra... - ele me disse, com ar zombeteiro.

- Mesmo? - Retruquei no mesmo tom.

- O rádio disse que... "nossas tropas tomaram hoje um apartamento completo: sala, quarto, cozinha e banheiro... mas a área de serviço ainda está sob fogo inimigo".

- Provavelmente, Hitler em pessoa vai nos condecorar por esse feito - tentei fazer graça, mas não havia nada do que rir. Aquela era a nossa realidade, naquela cidade amaldiçoada, onde se lutava rua a rua, casa por casa.

- Eu trocaria a minha Cruz de Ferro por uma passagem de volta pra casa - disse por fim Klemens.

- Ninguém mais sai daqui, - atalhei - a não ser num caixão.

Klemens ergueu os olhos para as paredes furadas de balas à nossa volta.

- Se ainda não percebeu, é onde estamos. E as pás de terra já estão sendo jogadas sobre nós...

Silenciosa, a neve caía amortalhando a cidade bombardeada.

Mas estávamos vencendo a guerra.

- [02-05-2018]