1038-O BEBÊ DE ROSEMEIRE

— Vamos, andem logo com esse serviço. O funeral é amanhã cedo.

Eram cinco horas da tarde, conforme marcava o relógio de parede no escritório do cemitério de Zarara, cidade distante 300 quilômetros a sudeste de Caracas, Venezuela.

O encarregado do cemitério, Miguel Asteargo apressa seus dois empregados. Devido à desorganização nos serviços do cemitério, o corpo de uma mulher registrada como Rosemeire Artigas esperava para ser enterrado há uma semana. Estava conservada numa gaveta do cômodo onde, anteriormente, eram feitas autópsias legais. O cômodo não tinha refrigeração e sobre o corpo fora despejado uma boa quantidade de gelo para conservação até o dia que fosse possível fazer o enterro da mulher falecida há uma semana

Dois empregados da funerária dirigiram-se à sala contígua ao escritório, aproximaram-se da câmara que antes era frigorificada (que os dois coveiros chamavam de “geladeira de defunto”) e abriram a gaveta onde estava o corpo da defunta a ser enterrada na manhã seguinte.

— Ei, Soco, que é isso aí no meio das pernas da defunta?

— Opa! Parece um bebê!

Olharam com atenção e saíram correndo na direção do escritório.

— Senhor Miguel, senhor Miguel! Tem alguma coisa esquisita no gavetão onde está a defunta.

Os dois empregados falavam tropeçando nas palavras e os rostos de ambos, Soco e Calisto, ambos negros, estavam numa cor de azeitona verde.

— Que é? Anda, falem logo.

— Vem ver. Parece mandinga!

O senhor Miguel acompanhou os dois empregados, que correram de volta à porta da sala onde os mortos aguardam o funeral; eles pararam na porta e ficaram olhando para dentro.

Ao entrar na sala, o encarregado do cemitério dirigiu-se ao gavetão onde estava o corpo da mulher. Assustou-se com o que viu: entre as pernas da defunta havia um bebê.

Virou-se para a porta e chamou os dois empregados:

— Soco! Calisto! Que é isto aqui? Quem colocou esse bebê aqui.

Entre tremores e balbucios, eles falaram.

— Não fomos nós, não, senhor Miguel. Ele estava aí quando abrimos a gaveta para tirar a morta. O bebê também está morto.

O encarregado tocou o bebê e virou-o, a fim de examinar o sexo.

— Também está morto. Fechem a gaveta e passem a chave.

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Miguel Asteargo era o responsável pelo cemitério de Zarara. Fora gerente de uma fábrica de sapatos, artigos de couro e afins, que, incorporada pelo governo bolivariano, falira e fechara. Agora, arranjara aquele serviço de “gerente” do cemitério. Era um homem decidido e de iniciativa; de pensamento ágil e atitude rápida.

Olhou a certidão de morte da defunta. Tratava-se de Rosemeire Artigas, de 33 anos, grávida, moradora da vila de Borracho, distrito Zarara. Havia morrido de causas naturais há sete dias.

“Isto não explica nada. —pensou — Tenho de ver com o médico legista e com a família, antes do enterro. Acho que vai ter uma cerimonia.”.

Subiu rapidamente no seu desgastado jipe e dirigiu-se em primeiro lugar ao posto médico de atendimento público, onde estava o doutor Graziano, que assinara o atestado de óbito.

— A morte foi repentina. — Informou o médico. — Ela chegou aqui sentindo falta de ar. Estava no ultimo mês de gravidez. Quando a colocamos na maca e a levamos para um quarto, para aplicar-lhe soro e anti-espamódico, ela morreu.

— Chegou a receber os medicamentos? — Indagou ao dono da funerária, fazendo agora o papel de detetive.

— Não. Não deu tempo.

— E o bebê? Estava para nascer. Tomou alguma providência para retirar o bebê?

—Não, já na maca, quando a paciente, arfava e gemia, procurei ouvir o som do coração do bebê, mas nada ouvi. Ele já estava morto.

Asteargo nada disse ao médico sobre o bebê encontrado entre as pernas da defunta.

—Peço que dê um pulo até o cemitério e veja se encontra uma explicação para o que vai ver.

Saiu rápido e de novo no jipe, dirigiu-se à vila de Borracho, a fim de conversar com a família e dar a notícia.

Já a anoitecia, quando chegou ao casebre indicado como a morada da mãe e dos filhos da mulher falecida e que dera a luz a um bebê depois de morta. Foi atendido na porta por uma mocinha de uns quinze anos.

— Entre. Vou chamar a vovó.

Ele abaixou a cabeça para entrar na modesta casa.

Apareceu vinda dos fundos da casa uma senhora idosa, de rosto encarquilhado, uma postura arqueada e as mãos longas e magras, acompanhada de cinco crianças e a mocinha que havia atendido Asteargo.

— Sou Rosa, mãe da Rose. Que aconteceu?

Após de se apresentar, o Miguel tentou saber como foram os últimos dias de Rosemeire. Ficou sabendo que a filha, mãe das cinco crianças e da mocinha que estavam ali, começou a sentir-se mal há duas semanas. Falta de ar e de apetite, não dormia direito e ficou muito chorosa.

— Na semana passada, quando vi que de nada adiantavam os meus chás e as minhas “simpatias”, chamei dona Piñeda, a benzedeira da vila. Ela rezou muito, fez um chá que só ela sabia de que era, cantou e invocou os espíritos que moram no alto da montanha.

—Mas minha filha só piorou. Quando foi levada para o posto médico estava tão aflita a que nem viu. Morreu no corredor.

—Ela não estava começando o parto?

— Não senhor, o dia não tinha chegado, não senhor.

A velha senhora era lúcida, tão lúcida que desconfiou e perguntou:

— Mas porque o senhor quer saber da morte da minha filha?

Então, Asteargo foi direto ao que tinha de dizer:

— Sua filha deu a luz a um bebê depois de morta. No cemitério. Ele nasceu morto.

A velha levou um susto, arregalou os olhos e disse:

— Impossivel! Io no lo credo. ( Eu não acredito).

E caiu desmaiada, amparada pelo gesto rápido de Miguel Asteargo que a levou para um quartinho ao lado, deitando-a num colchão sobre um estrado de taquaras trançadas. .

A mocinha foi buscar um copo d’água. Quando voltou, disse baixinho para Miguel que abanava o rosto da avó:

— Foi feitiçaria. Eu vi...

A velha senhora voltou a si. Parece que o desmaio havia provocado um choque na sua memória, pois balbuciava palavras sem sentido. Sentou-se na beirada da cama e começou a chorar.

— O enterro será amanhã, como está marcado. Às nove horas. — Disse Asteargo, dirigindo-se ao mesmo tempo à velha e à mocinha.

Ao passar para a salinha e saindo do casebre, sentiu o paletó puxado pela garota, que lhe cochichou:

— Senhor, foi feitiçaria. Eu vi na porta do quintal...

Ele virou-se rápido e respondeu:

— Deixa de bobagem, menina. Você não viu nada!

E subiu no jipe, deu partida, acendeu os faróis e voltou à cidade pela estrada poeirenta.

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A mãe, senhora Rosa Artigas, compareceu ao funeral, acompanhada pelos seis filhos de Rosemeire.

Foi realizada uma cerimônia simples, dirigida pelo padre Raniero, da pequena igreja da vila de Borracho, seguida do enterro, com o bebê no caixão com sua mãe.

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O incidente chocante deixou a mãe da morta, de 76 anos de idade, abatida, mas ainda bem lúcida para responder ao jornalista que estava à saída do cemitério.

— Eu apelei aos médicos para me acalmar e me explicar como é possível a uma mulher morta dar à luz. Tenho agora mais de 70 anos e nunca ouvi falar de tal coisa. Por que isso aconteceu com minha filha? Primeiro, fiquei devastada pela morte prematura da minha filha e depois fico sabendo que ela deu à luz já morta. O que é isso? Deus, por favor, me explique!

O médico legista não esclareceu claramente se a vida do bebê poderia ter sido salva se os médicos do posto de saúde tivessem feito um parto forçado, tão logo ela tivera as primeiras tonteiras e desmaios.

Pairam alguns boatos lançados por moradores da vila, segundo os quais a morte de Rose — que tinha apenas 33 anos e já dera a luz seis filhos fortes e sadios — e a do bebê, seria feitiçaria.

Boatos. Suspeitas.

O senhor Miguel Asteargo lembrava-se claramente das palavras da inocente menina, filha mais velha de Rosemeire, que insistiam em sua mente:

— Foi feitiçaria. Eu vi... na porta do fundo da casa...

Decidiu que iria investigar.

A seguir: O Diário de Rosemeire

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 27 de janeiro de 2018.

Conto # 1038 da SÉRIE INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/04/2018
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