Solstício - O Maior Dia do Ano
Disseram que poderia ser um cometa que traria o equilíbrio da Força de volta ao mundo. Mas, para o Halley voltar, ainda faltavam décadas. Anyway, aquela meia dúzia de esquisitos conversava enquanto seguia a estrela cadente. Apenas Lila permanecia calada como sempre. Era a vez de Celeste guiar a cadeira de Índigo. Glauco seguia Flávio pelo braço.
[Celeste] - Oh, céus! Ainda falta muito, papai Smurf?
[Índigo] - Devemos acreditar que já estamos próximos, Celeste.
[Bergamota] - Arrgh! Eu estou cansado de caminhar!
[Flávio] - Ãããhn… eu também… cansado.
Lila apontou para si mesma e curvou o corpo e os ombros para a frente.
[Glauco] - Se vocês se sentem assim, pensem no Rubens aqui, com uma perna só.
[Rubens] - Ahaha! Eu to muito bem com estas muletas, Glauco. Mas, Bergamota, seu papudo, cadê a resistência dos anões às longas caminhadas? Quero ver! Ahaha!
[Bergamota] - Arrgh! Não amola!
[Índigo] - Devemos prosseguir até amanhecer. Descansaremos em qualquer abrigo.
Todos eles tinham sido escolhidos para representar seus semelhantes nesta Irmandade. Saíram de seus territórios nos vários continentes e uniram-se ao grupo. Foram orientados por sinais interpretados por seus astrônomos, e assim convergiram. Tinham a missão de peregrinar, guiando-se pelos astros, e de levar ao local do destino um anel precioso para o recém-nascido Senhor do Mundo. E deixar lá suas energias, para sempre.
Quando chegou a Aurora de róseos dedos, e eles deixaram de ver a estrela da manhã, pararam para descanso. Retomariam a caminhada quando o carro do Sol se escondesse. Abrigados numa caverna e acalentados por uma fogueira, Índigo lembrou-lhes da missão.
[Índigo] - Devemos nos concentrar nas energias que nos confiaram para deixar lá.
[Rubens] - Ahaha. Os mais jovens do meu povo só querem fazer o que gostam, não têm limites. E os mais velhos se culpam, se deprimem por qualquer motivo. Ahaha.
[Bergamota] - Arrgh! Os meus estão parecidos: uns exageram em buscar o prazer, e até perdem o gosto; outros querem mais do que o corpo permite, e já não podem.
[Flávio] - Ãããhn… eu também… Uns não sabem o que querem, só seguem alguém. E outros, se chegam a querer alguma coisa, não persistem, pois dá muito trabalho.
[Glauco] - Percebo a visão estreita das pessoas quanto ao amor: dedicação demais a uma só pessoa, e quase nenhuma preocupação com o restante do universo.
[Celeste] - Oh, céus! Como haveria amor, se não existe conversa, diálogo? Uns são soberbos e fazem julgamentos amargos dos outros, outros agem somente por si.
[Índigo] - Devemos derrubar as barreiras para aqueles que reprimem suas intuições. E também para os outros, os que aceitam como superior outro Eu que não o seu.
Lila juntou as pontas dos dedos na parte superior da cabeça e franziu o cenho. Depois juntou as mãos no peito, e crispou os dedos. E também franziu o cenho.
[Índigo] - Devemos refletir sobre como deixar tais energias com o Senhor do Mundo. E aproveitar estes momentos de descanso para encontrarmos a melhor maneira.
O cansaço da caminhada trouxe um adormecimento rápido. O sono reparou os corpos até o fim da tarde, quando Lila acordou e foi sacudir os ombros dos outros. Ela saltitava entre os dorminhocos e apontava a estrela da manhã junto do asteroide que os guiava. Agora, Flávio empurrava a cadeira de Índigo, e Glauco seguia Bergamota segurando-lhe o braço.
Depois de algumas horas de trajeto, um estrondo no ar perturbou a todos, e afetou até Lila. O tremor na terra desequilibrou os passos do grupo. Um repentino e intenso brilho ocupou o céu e os ofuscou, até a Glauco, por um instante que nenhum deles jamais vai esquecer. E isso vinha da direção para a qual eles seguiam. Com mais cuidado do que sempre tiveram, prosseguiram por mais uma hora ou duas, e alcançaram uma ampla cratera, onde presenciaram os primeiros momentos terrenos do meteoro recém-chegado. Policiais, técnicos, cientistas e muitos curiosos já se aproximavam do local. Mas, sondando com o olhar todo o espaço ao redor da clareira resultante da queda, Celeste viu. Logo Lila viu. E Flávio também. Glauco percebeu os sons e odores naquela direção. Rubens até virou seu corpo para lá, e Índigo a sua cadeira. Bergamota viu e resmungou.
[Bergamota] - Arrgh... Então era a este galpão fedido que nós tínhamos que chegar?
[Rubens] - Ahaha. Daqui eu só to vendo um nenê deitado numa cocheira. Ahaha.
[Glauco] - E os animais: ouço umas galinhas e sinto cheiro de vaca, talvez um cavalo. Além do que, o aroma de esterco está intenso para mim. Para vocês, não?
[Celeste] - Oh, céus! Eu to sentindo cheiro ruim. É uma vaca e um burro, Glauco.
[Flávio] - Ãããhn… eu também… to sentindo cheiro ruim.
Lila tampou o nariz.
[Índigo] - Devemos ignorar os odores e nos concentrar no recém-nascido. Vamos.
[Bergamota] - Arrgh… De que jeito? Agora já tem um monte de gente em volta dele.
[Celeste] - Que amor: a mãe e o pai do menino. Oh, céus! Aquele ali parece um anjo.
[Rubens] - Ahaha. Já ouvi falar. Que família moderninha! Deve ser o Gabriel, dizem que é um ex da mãe do guri. Muito suspeito, ou lugar-errado-na-hora-errada. Ahaha.
[Glauco] - Será que alguém ali pode nos ajudar? Estou ansioso pela nossa missão.
[Flávio] - Ãããhn… eu também… ansioso pela nossa missão.
Lila deu dois tapinhas na mão de Glauco e balançou a cabeça, confirmando.
[Índigo] - Devemos nos aproximar com muito cuidado deste novo Senhor do Mundo.
Chegaram até a porteira do galpão e puderam ver o curral e seus ocupantes bem de perto.
[Celeste] - Oh, céus! Olha ali! O nenê tá conversando com os peões e a mãe e o pai!
[Glauco] - Esse guri recém nasceu e já conversa como gente grande. Que fenômeno!
[Índigo] - Está agradecendo aos peões pelos presentes, uns cobertores de pelego.
[Bergamota] - Arrgh! Mas será que ele é…?
[Rubens] - Ahaha! Será que ele é…?
[Flávio] - Ãããhn… eu também… quer dizer, será que ele é…?
Lila arregalou os olhos, questionadora.
E então todos falaram ao mesmo tempo.
[Celeste] - Oh, céus! Um extraterrestre?
[Bergamota] - Arrgh! Um enviado dos Valar?
[Índigo] - Um Mutante?
[Rubens] - Um Jedi?
[Glauco] - Uma criança com Altas Habilidades?
[Índigo] - Devemos ater-nos à nossa missão. Devemos fazer o teste.
[Rubens] - Ahaha! Teste de QI? Duelo de xadrez? Maratona de programação? Ahaha!
[Celeste] - Oh, céus! Eu detesto essas coisas. É muito difícil.
[Flávio] - Ãããhn… eu também… detesto essas coisas. É difícil.
[Glauco] - Mas ele é até capaz de gostar! Não convém julgar sem antes saber. Quem sabe como é o funcionamento do cérebro dele, como são as conexões de ideias?
[Bergamota] - Arghh! Gente louca esses nerds. Garanto que sentem cada uma das conexões entre neurônios quando formam uma nova associação de ideias. Arrgh!
[Rubens] - Ahaha! E aqueles que leem enciclopédias, e decoram tudo!?! Será que gente assim também tem modalidade própria nos Jogos Paralímpicos? Ahaha.
[Índigo] - Meus caros, devemos apenas entregar-lhe o Anel e deixar as energias aqui.
Lila assentiu com a cabeça, confiante.
Índigo pegou do bolso um bauzinho enfeitado e ergueu-o nas duas mãos, enquanto agora Celeste guiava sua cadeira, e os sete entravam no galpão até se aproximarem do menino. A solenidade do momento era visível nos rostos circunspectos e nos passos cautelosos. Mas o menino e seus pais tinham expressões tranquilas de acolhimento aos visitantes.
[] - Bem-vindos vocês são. Sem medo, aproximar-se vocês devem. Tudo bem está.
[Índigo] - Senhor do Mundo, somos representantes de nossos povos, de terras longínquas, guiados até aqui pelos sinais dos céus. Unimos nossas energias e forjamos este um anel de ouro. Garantimos que ele não tem poderes ocultos, só energias positivas, e oferecemos algo especial no colorido de suas pedras.
O guri recebe o bauzinho e aprecia o precioso anel à luz do fogo da churrasqueira.
[] - A tão sábios e engenhosos mestres agradeço. Esta preciosa homenagem cifrada está: Citrino, Rubi, Iolita, Safira, Tsavorita, mbar, Lapis-lazuli. Meu nome: Cristal.
Uma aura de nobreza e elevação de intenções parece emanar de seu sorriso e contagiar os visitantes. Ele dirige, então, seu régio e sereno olhar para Rubens. Este se voluntaria a ser o primeiro a deixar suas energias ali, numa comoção tão inusitada, que nem sequer sorri. Até as palavras dele, e de cada um, saem mais pomposas do que era seu costume.
[Rubens] - Senhor, meu povo oferece seus mais elevados esforços para valorizar os instintos físicos, aceitar a natureza como é e ampliar a ligação das pessoas a ela.
[Bergamota] - Senhor, meu povo, arr…, digo, oferece nossos mais sinceros esforços para eliminar... conflitos e preocupações sobre... valorizar o prazer. - e sorri grande.
[Flávio] - Senhor, ãhn.. eu também, em nome do meu povo, ofereço nossa dedicação a eliminar comportamentos negativos, e a valorizar como nunca a força de vontade.
[Glauco] - Senhor, meu povo e eu, embora não possamos vê-lo, sentimos a vibração do seu amor, e oferecemos nosso amor, amplo, vinculando micro e macrocosmo.
[Celeste] - Senhor, ainda que seja difícil para muitos, oh, céus, meu povo oferece nossos mais afetivos :-) esforços para melhorar os julgamentos e a comunicação.
[Índigo] - Senhor, represento meu povo ao oferecer nossa dedicação ao livre desenvolvimento de nossas intuições e a interação com nosso próprio eu superior.
Lila juntou as pontas dos dedos no alto da cabeça e as afastou rapidamente num gesto de abertura intensamente marcado. Fez o mesmo exato gesto no centro do peito.
O nenê então dirigiu-se majestosamente a cada um, ofertando-lhe palavras de sabedoria dos maiores mestres do universo:
- Verdadeiramente maravilhosa, a mente de uma criança é, Lila.
- Sim, Índigo, o que você aprendeu, sempre passar.
- Nossas escolhas, não nossas habilidades, Celeste, quem somos mostram.
- Mesmo nas horas mais sombrias, Glauco, de acender a sua luz lembre-se.
- Faça, ou não faça, Flávio: a tentativa não existe.
- Até mesmo a menor das pessoas pode o rumo do futuro mudar, Bergamota.
- Seres luminosos somos nós, Rubens, não esta matéria bruta.
Lila, Índigo, Celeste, Glauco, Flávio, Bergamota, Rubens: suas benéficas energias em seus reinos e no mundo todo se espalhar irão. A sua extenuante peregrinação, as renúncias que cada um teve que fazer para a missão cumprir, tudo a pena vale.
[Flávio] - Então, se me perdoa a ousadia, o Senhor… sabia que viríamos...
Lila arregalou os olhos, interrogativa.
[Celeste] - Oh, céus, o Senhor… desde o começo…
[Glauco] - … esteve olhando por nós...
[Bergamota] - Ah, o Senhor… estava cuidando de nós…
[Rubens] - … desde quando deixamos nossos reinos...
[Índigo] - … Mesmo depois de todo este tempo?
[] - Always.
Lila chorou sem ruído; Índigo, com os olhos fechados; Celeste libertou um vasto pranto; Glauco, sorrindo; Flávio erguendo os braços; Bergamota chorava ruidosamente e abraçava os colegas; Rubens chorava abraçado a ele e aos outros, todos chorando juntos.