Fluidez cognitiva

Lobo Cinzento ouviu o choro da criança vindo de um bosque de abetos próximo. A sua gente não costumava caçar por aqueles lados do sopé das montanhas, onde ainda havia todo tipo de besta perigosa, muito menos acompanhado de crianças. Ele ergueu a pesada lança com ponta de pedra que usava, e circundou cautelosamente o local de onde vinha o choro. Olhou por entre as árvores e viu uma pequena clareira, no solo da qual jazia um vulto escuro, e sobre ele, uma criança desgrenhada de uns três ou quatro anos de idade, vestida unicamente com uma tanga de couro cru. Lobo Cinzento aproximou-se, devagar, e não vendo nenhum sinal de ameaça, agachou-se ao lado do corpo, coberto com um manto de penas pretas. Ao vê-lo, a criança parou de chorar, talvez paralisada de medo. Lobo Cinzento sorriu, e colocou a lança no chão, dizendo:

- Não vou te fazer mal.

A criança não respondeu, encarando-o com olhos verdes amedrontados. Os arcos superciliares proeminentes e o cabelo ruivo indicavam o que ele já suspeitava, e que confirmou ao virar o corpo sob o manto de penas: tratavam-se de membros dos Outros, indivíduos com os quais seu povo não mantinha nenhum contato e que evitavam sempre que possível. Viam-se ocasionalmente e sempre à distância. Aparentemente, os Outros não falavam, embora parecessem comunicar-se entre si por meio de gestos. O morto era um homem adulto, com o cabelo já começando a embranquecer nas têmporas. Deveria ter morrido há poucas horas, embora não apresentasse nenhum ferimento visível. Lobo Cinzento só poderia especular sobre o que teria acontecido e quem seria a criança. Mas, isso teria que esperar. Tinha que decidir o que faria a seguir, considerando-se que fora expulso da tribo, e aparecer novamente por lá talvez não fosse uma boa ideia.

Depois, olhou novamente para o manto de penas e uma ideia brotou-lhe na mente.

* * *

A noite caía quando Lobo Cinzento chegou ao acampamento do seu povo, às margens do rio. As tendas já haviam sido erguidas, e a fogueira central acesa. Seu caminho foi interceptado por Urso Vesgo, que lhe brandiu uma lança.

- Lobo Cinzento! Você não deveria estar aqui! Tigre Vermelho avisou: banido por uma lua!

Lobo Cinzento, vestido com o manto de penas e segurando a criança pela mão, bradou, em tom solene:

- Não sou mais Lobo Cinzento! Sou Pássaro Preto! Preciso falar com Tigre Vermelho.

- Pra mim, você continua sendo Lobo Cinzento - retrucou Urso Vesgo. Mas, foi chamar o chefe da tribo.

Tigre Vermelho veio e encarou seu irmão de tribo com irritação.

- O que faz aqui com esse manto estranho e essa criança dos Outros?

- Estou numa missão - foi a resposta. - Preciso de um grupo de guerreiros para me acompanhar até os Outros e devolver esta criança.

- Não temos negócios com os Outros.

- Pois se devolvermos um deles, poderemos passar a ter.

Tigre Vermelho cruzou os braços, enquanto refletia. Finalmente, mandou que Urso Vesgo chamasse Cavalo Malhado. E, virando-se para Lobo Cinzento:

- Já tem o seu grupo de guerreiros. Agora, desapareça daqui e não volte antes de uma lua!

* * *

A caminhada até as cavernas onde viviam os Outros durou dois dias. No caminho, Lobo Cinzento tentou ensinar algumas palavras à criança - um menino, como veio a descobrir - sem grande sucesso. Finalmente, chegaram num início de manhã, quando os Outros pareciam prontos para sair numa expedição de caça. Era um grupo de cerca de uma dúzia de homens grandes e fortes, com peito abaulado e sobrancelhas hirsutas, carregando lanças. Pararam a cerca de vinte metros uns dos outros e ficaram se encarando. Finalmente, Lobo Cinzento, vestindo o manto preto, tomou a iniciativa e caminhou em direção a eles, carregando a criança no ombro. Colocou-a no chão e ela correu em direção ao grupo de caçadores, que o receberam com grunhidos de alegria e uma profusão de gestos.

Lobo Cinzento e seus companheiros ficaram de longe, observando a cena. O grupo voltou para a caverna com a criança, e pouco depois, retornaram com uma jovem de cabelos de fogo. Ela olhou para Lobo Cinzento e seus amigos com receio e em seguida começou a andar lentamente em direção a eles.

- Parece que você acabou de fazer uma troca - disse Cavalo Malhado dando um tapinha nas costas de Lobo Cinzento.

- Até que é bonitinha - avaliou Urso Vesgo.

E foi assim que Lobo Cinzento e seu grupo tomaram o caminho de volta.

Ele aproveitou a sua lua de exílio para ensinar sua nova esposa a procurar mel. Uma tradição que até hoje persiste, embora praticamente irreconhecível após dezenas de milhares de anos.

- [09-11-2017]