Chimborazo

Lendo nesses últimos dias um artigo sobre educação e popularização da ciência, aprendi que os limites físicos de um indivíduo são ditados pelas seguintes características: sexo, altura, peso e biótipo. Já os limites fisiológicos são aqueles que se relacionam a tônus muscular, aptidão física, descanso, efeitos de droga, boa saúde e nutrição.

Esses limites podem variar de dia para dia e com as condições do clima. Assim, a doença, a fadiga, a fome e o frio, por exemplo, podem afetar os nossos limites durante uma rotina de atividade física. Deve-se, portanto, dar atenção aos sinais de aviso emitidos pelo próprio corpo e que podem geralmente preveni-lo da ultrapassagem de seus limites fisiológicos.

Antes de terminar a leitura, lembrei-me da história de dois amigos inseparáveis que se conheciam desde a infância. Um deles chamava-se Cadu, ou melhor, Doutor Carlos Eduardo, como era conhecido por seus pacientes.

Cadu, eu o conheci há uns treze ou quatorze anos, quando, por recomendação da minha esposa, agendei a primeira consulta com um cardiologista.

O outro era o Fernando. Um engenheiro que praticamente não tinha exercido a profissão, que me fora apresentado por Carlos logo depois que, além do relacionamento médico-paciente, passamos a desfrutar de uma amizade.

Algumas vezes ouvi Carlos Eduardo o chamar de Nando.

Logo que se formou, na mesma universidade e ano que o amigo Cadu, Fernando chegou a trabalhar quase oito meses numa pequena fábrica que produzia ferramentas de corte. Todavia, devido à sua paixão por literatura, abandonou tudo para se tornar um “livreiro”. Não um simples indivíduo que comercializava e vendia livros, mas um livreiro por vocação.

Todos os dias, quando não ia à livraria, Fernando acordava cedo e escrevia até o entardecer. Ele gostava de usar o notebook, pois isto lhe dava liberdade de redigir seus textos ora na sala, ora no quarto ou na varanda.

Naquela época, Nando já havia escrito e publicado cinco livros de contos. Escrevia e curtia a solidão do seu apartamento.

Além disso, visitava o pai, que morava distante apenas duas quadras, a cada dois dias.

Com quase quarenta anos de idade, ainda não tinha pensado em se casar. Às quintas-feiras, a sua namorada, uma mulher casada, o visitava. Eles passavam a tarde juntos conversando sobre livros e gastronomia. Fazer sexo com uma mulher casada, apenas dois anos mais nova que ele, era perfeito, uma vez que não precisava assumir um compromisso sério.

Diariamente, antes de escurecer saía para uma longa corrida e, à noite, costumava ficar sozinho lendo um livro e ouvindo música. Adorava rock. Não assistia à televisão.

Nando ou Fernando também era conhecido como o “Livreiro de Terê”. Isto porque ele administrava uma livraria que em pouco tempo passou a ser bastante frequentada por amantes de livros. A livraria ficava na cidade de Teresópolis, cidade da região serrana do Rio de Janeiro, onde os dois amigos viviam desde criança.

O sucesso imediato do negócio deveu-se principalmente à constante presença dele na loja. Ele era pessoa que conversava e orientava os clientes nas compras. Foi lá, na “Livraria do Cume”, assim indicava uma placa com o nome do empreendimento, que conversei pela primeira vez com o Nando.

A minha amizade com a dupla Cadu e Nando surgiu calcada no interesse comum que tínhamos por literatura.

Encontrávamo-nos regularmente a cada dez ou quinze dias na livraria do Fernando. Tínhamos sempre uma mesa reservada junto a uma estante que ficava no fundo da sala de leitura.

Lá, num ambiente aconchegante, o papo era focado nas obras literárias clássicas e contemporâneas. Além de passar a conhecer e a gostar dos autores russos, os prediletos de Carlos, também ouvi e acabei aprendendo alguma coisa sobre escaladas em altas montanhas, outra paixão dos amigos teresopolitanos. Na realidade a prática desse esporte era o que os mantinha unidos desde garotos.

Diferente de Carlos Eduardo e de Fernando, eu passei a ser morador da Serra poucos meses depois de me aposentar na Universidade Federal do Rio. Tão logo acertei alguns compromissos que tinha, mudei-me de vez do Leme para Salinas, região da área rural de Nova Friburgo, onde vivo até hoje com a minha esposa.

Moramos em uma casa confortável que mandei construir em um sítio há quinze anos. Atualmente, divido o meu tempo entre plantar alface, ler e, de vez em quando, escrever.

Vivendo na Serra, passei a frequentar a cidade de Teresópolis onde, como já disse, conheci a dupla Cadu e Nando.

Após essas informações iniciais sobre os protagonistas, vamos conhecer a história vivida há quase dez anos por esses dois montanhistas, a qual uma parte eu presenciei, a outra...

Na época, eu tinha cinquenta e três anos e os dois amigos deviam estar com trinta e sete ou trinta e oito, talvez. Quarenta no máximo.

***

Nos Andes Equatorianos

O relógio indicava quatro e cinco da tarde e a temperatura externa, dependendo da rajada do vento, oscilava entre menos sete e menos nove graus. No interior do refúgio “Hermanos Carrel”, o termômetro indicava um grau negativo. Numa placa fixada na entrada da porta lia-se “Bien Venidos” à altitude de quatro mil e oitocentos metros.

Fernando acordou, se livrou do saco de dormir, sentou-se na cama e logo se pôs de pé. Sem tomar decisão alguma, sem nenhuma motivação, começou a mover-se rumo à pequena janela de vidro localizada na parede oposta à porta de entrada. Enquanto caminhava, observava Carlos dormindo tranquilamente na parte de cima do beliche.

Ao chegar à janela, que estava lacrada, aproximou o rosto do vidro e viu refletindo no lusco fusco do final da claridade solar, não muito distante, a imensa montanha coberta de gelo.

Forçando um pouco mais a visão, ele conseguiu enxergar o cume do Chimborazo, que gostava de chamar de a “montanha branca”. Parado, tremendo de frio, Nando verificou a hora no seu Garmin e constatou que ainda era cedo. Havia combinado com o amigo que acordariam um pouco antes das dezoito horas, pois queriam realizar a pernada mais difícil da escalada durante a noite e a madrugada. Fariam aquilo numa condição de frio mais intenso, o que deixaria a neve não muito fofa. Isso evitaria pequenas avalanches e tornaria menos cansativa a subida a partir dos seis mil metros.

Ele não tinha ideia de porque estava fora da cama tão cedo. Não tinha nenhuma vontade de se aliviar, nem se sentia perturbado por algum sonho ou por algum problema burocrático na livraria, pois estava no Equador havia vinte dias e no último contato com o gerente da loja, seu funcionário de confiança, soube que estava tudo bem com as vendas.

Tampouco se sentia incomodado ou cansado por estar fora do seu apartamento, pois já estava acostumado a dormir em barracas e refúgios em horários não convencionais, de modo a concluir escaladas ao amanhecer.

De fato, estava alerta e de mente vazia.

Mas de repente o pensamento jorrou e a mente de Fernando ficou abarrotada de imagens, situações e preocupações que estavam incomodando-o há cinco dias. Tais preocupações o atormentavam desde a escalada do vulcão Illinizas, a qual havia realizado para aclimatação e ele não tinha se saído muito bem.

Havia sofrido muito com o frio intenso e com o peso do equipamento individual necessário ao contato constante com a neve.

***

Seis meses antes em Teresópolis

Foi num final de tarde de um dia agradável, com céu limpo e azul, do inverno de 2008, quando estávamos na Livraria do Cume, que ouvi pela primeira vez Carlos Eduardo e Fernando conversarem sobre o planejamento que estavam fazendo para escalarem montanhas acima de seis mil metros de altitude.

Primeiro eles escalariam o vulcão Chimborazo, o mais alto dos Andes Equatoriais, com uma altitude de seis mil, trezentos e dez metros. Depois seguiriam para a Argentina onde tentariam chegar ao cume do Aconcágua, a montanha mais alta fora da Ásia com seis mil novecentos e sessenta metros de altitude.

– Nando, temos que terminar com brevidade os detalhes logísticos da nossa estada no Equador e na Argentina, pois precisamos dedicar mais tempo ao treinamento físico. – disse Carlos, num tom tranquilo, se afastando em direção ao banheiro de clientes da livraria.

Quando Cadu retornou à mesa, Fernando, que havia ligado o notebook, pediu, sinalizando com a cabeça, que o amigo se sentasse ao seu lado. Assim os dois ficaram de frente para a tela do computador e o livreiro, apontando com o dedo indicador as diversas planilhas, comentou cada etapa do planejamento logístico da expedição.

Carlos questionou constantemente as explicações que ouvia. Eu, que estava sentado do outro lado da mesa, por mais que tentasse dar continuidade à leitura do romance “O Eterno Marido”, de Dostoievski, não conseguia.

A conversa dos dois montanhistas, rica nos detalhes logísticos sobre os deslocamentos, os locais de pernoites, o aluguel de equipamentos, a contratação de carregadores, a possibilidade ou não de resgate e muito mais, chamava a minha atenção. Entendi que as intervenções de Cadu eram necessárias, pois eles precisavam ter certeza de que as providências realmente já tinham sido tomadas.

O briefing durou quase duas horas. Em um determinado momento, o livreiro disse:

– Isso é tudo. Algum detalhe que não foi esclarecido? – ele perguntou ao amigo, enquanto levantava e murmurava para si mesmo: “Agora sou eu que tenho de dar uma mijada”.

– Acho que não. Está tudo bem planejado. Falta apenas decidir se o apoio da nossa subida, no trecho sul do Aconcágua, será realizado por carregadores nativos ou por mulas. E isso só poderá ser confirmado na chegada ao Parque Provincial, lá em Mendoza – Cadu falou antes do amigo se afastar para ir ao banheiro.

Depois da explanação de Fernando, fomos ao pequeno café da livraria e tomamos um cappuccino cremoso. Em seguida, voltamos à nossa mesa e assistimos ao Carlos expor o programa de preparação física e de alimentação para os treinos.

Eu nada tinha a ver ou a contribuir com os assuntos que eles tratavam naquela tarde. Isto porque o laço que me unia à dupla era a literatura e não o esporte radical que eles praticavam.

Mas com o decorrer dos nossos encontros, passei a interessar-me por montanhismo. Então participei como ouvinte de várias reuniões sobre trekking e escaladas. Admirava-me o profissionalismo com que Cadu e Nando planejavam cada detalhe das expedições. Para cada situação adversa possível de acontecer, relacionavam as ações a serem adotadas. De fato eles não contavam com o acaso para protegê-los.

Durante a apresentação, Cadu informou que o programa tinha sido aprovado por um preparador físico e por um nutricionista, ambos ligados às atividades esportistas. Destacou algumas vezes a importância de incluir no cardápio do dia a dia o arroz integral, a aveia, a banana, o mix de castanhas e amêndoas, a batata doce, o frango, o salmão, dentre outros alimentos saudáveis. E recomendou não dispensar o chocolate amargo, que é rico em flavonoides e ferro.

Como das outras vezes, percebi que Fernando não deu a mínima importância às recomendações dos cardápios sugeridos. Não fez uma única pergunta, dando a impressão de que nada tinha a ver com o assunto que fora tratado.

Naquela tarde, depois de nos despedirmos do livreiro, enquanto caminhávamos em direção ao estacionamento, comentei com Cadu da minha percepção sobre o desinteresse de Fernando no tocante aos cuidados com a alimentação.

Depois de ouvir-me atentamente, ele parou e disse:

– Não é apenas uma percepção sua. O desinteresse dele com a alimentação é um fato. Eu já desisti de falar com o Nando sobre essa questão. Ninguém o convence de mudar o seu hábito alimentar. Há uns dez anos que o cardápio dele não muda. Só come salada verde, legumes cozidos e frango ou peixe grelhado.

Esse tipo de alimentação, associado aos treinos físico que ele pratica regularmente, o levou para uma magreza quase doentia. Da última vez que tentei convencê-lo de que deveria consultar um nutricionista especializado em esportes, fiquei sabendo que já estava, segundo os índices divulgados pela Organização Mundial de Saúde, abaixo do peso ideal. E sabe o que ele responde quando é questionado sobre a sua magreza?

– Não. Não posso nem imaginar – eu respondi.

– Ele sempre repete: “Um pouco mais magro consigo escalar com mais facilidade e adquiro uma excelente capacidade respiratória”.

– Mas não precisa ser escalador para saber que uma expedição em uma montanha, acima de seis mil metros de altitude e coberta de gelo é bem diferente de participar de uma aventura na Serra dos Órgãos aqui em Teresópolis – eu disse, um pouco antes de nos despedirmos no estacionamento.

Nos meses que antecederam a ida dos dois amigos para o Equador, nos reunimos poucas vezes para o nosso papo sobre literatura, pois eles estavam se dedicando quase que exclusivamente aos treinos e focados na aventura dos Andes.

No dia que embarcaram para Quito, eu os levei ao aeroporto e constatei que Fernando não havia engordado um grama. Mas nada comentei. Ele iria, para uma expedição acima de seis mil metros de altitude, magro e com pouca ou quase nenhuma reserva de gordura.

***

Na Montanha Branca

Em pé, de braços cruzados para se proteger do frio, com o rosto quase colado no vidro da janela do refúgio, Fernando olhava, quase que hipnotizado, a montanha equatoriana mais alta e mais difícil de ser escalada. E mentalmente seguia o percurso da via conhecida como “Whymper”. Este caminho, além de apresentar maiores riscos de avalanches, era também mais longo que a via tradicional.

Apesar de terem considerado no planejamento a possibilidade, devido às condições climáticas, de terem que seguir pela via mais difícil, aquela mudança o deixou muito preocupado.

E sozinho, junto à janela, com seus pensamentos e preocupações, o livreiro ficou ali até por volta das dezessete horas. De repente decidiu voltar ao beliche e se equipar, mesmo sabendo que faltavam quase cinquenta minutos para iniciar a subida. Por alguns minutos ele tentou se adaptar ao peso da roupa e do equipamento, principalmente o das botas plásticas para caminhar no gelo.

Ao acordar, Carlos viu o amigo todo equipado, inclusive com a mochila, faltando apenas fixar os crampons nas botas, caminhando no interior do refúgio. Ele nada comentou, porque já havia percebido que o seu parceiro não estava bem nos últimos dias.

Desde que tinham voltado dos treinos na Reserva Ecológica dos Illinizas que o livreiro vinha se comportando diferentemente do seu modo habitual. Quase não falava. Repetidas vezes retirou da mochila o mapa com o croqui da escalada do Chimborazo e o olhava como se pretendesse decorar todo o percurso.

Vez por outra murmurava para si mesmo: “O cume sempre estará lá, eu preciso ir e voltar”.

A dupla tinha convicção de que estava iniciando uma das escaladas mais difíceis dos Andes. Segundo alguns sites especializados, chegar ao cume do Chimborazo era, algumas vezes, dependendo das condições climáticas, mais difícil do que alcançar o topo do Aconcágua. Naquela montanha branca equatoriana era alto o risco de avalanches, havia muitas fendas, trechos extremamente íngremes e não existiam pontos de referências para demarcar o percurso a ser seguido. E isto poderia causar diversas desorientações nos escaladores.

Eles sabiam que as estatísticas sobre o Chimborazo não eram muito favoráveis a quem se arriscava por ali. Apenas cinquenta por cento dos que se aventuravam naquela montanha pela via tradicional, alcançavam o topo. E pela via “Whymper”, o percentual caía para trinta por cento.

Antes de saírem do refúgio e iniciarem a jornada final rumo ao cume da montanha branca, eles tomaram um chocolate quente, checaram todo o material, se abraçaram e desejaram sorte um ao outro. Aquele era um gesto que costumeiramente se repetia entre eles desde as primeiras escaladas em Teresópolis, quando ainda eram adolescentes.

Na primeira hora Fernando seguia o parceiro. Eles caminhavam separados por uma distância de quatro metros, no entanto um ia amarrado ao outro por uma corda. Seus passos batiam no mesmo ritmo sobre o gelo.

Conforme haviam combinado, a cada hora de avanço, um caminhava à frente verificando, com auxílio do “Piolet”, a consistência da neve e buscando os trechos menos difíceis.

As trocas de “liderança” aconteceram sem dificuldades durante a primeira parte da escalada.

Depois de sete horas de atividades, Carlos percebeu que seu amigo não conseguia manter a passada e constantemente pedia para parar, pois precisava descansar. Ele reclamava do peso das botas e das polainas.

Realmente, para a estatura do livreiro, que tinha não mais do que um metro e sessenta e seis de altura e pesava cinquenta quilos, não deve ter sido fácil caminhar, em trechos íngremes cobertos de gelo, calçando botas de mais ou menos um quilo em cada pé.

Para dar força ao amigo, Cadu, por diversas vezes dizia:

– Está mais difícil do que eu imaginava. Vou diminuir o ritmo, Nando.

– Tudo bem, cara! Por mim pode reduzir muito a cadência. Mesmo mastigando folha de coca, estou extremamente cansado. Já quase não consigo levantar os pés. Essas botas estão acabando comigo.

O vento não estava forte, mas a temperatura de nove graus negativos incomodava sobremaneira. Para piorar a situação de Nando, a cada passo em direção ao cume, o caminho ficava cada vez mais íngreme.

Num ritmo bem lento e apesar de terem caído em duas fendas, eles avançaram por mais quatro horas. Naquela altura da jornada, Carlos seguia à frente, pois o amigo não tinha mais condições físicas de ser o primeiro da corda.

Depois de quase doze horas subindo a montanha, devido às diversas quedas de Fernando, eles não mais progrediam no percurso. Estavam praticamente há uma hora na mesma altitude.

No sexto tombo de Nando, a dupla rolou montanha abaixo por mais ou menos uns vinte metros, até que, com auxílio do Piolet, eles travaram a queda. Nando não conseguiu se levantar. Carlos se aproximou do amigo, o ajudou a sentar-se e perguntou:

– Tudo bem?

– Acho que sim – ele respondeu baixinho com a voz cansada.

– Vamos! Levante-se. Você sabe que não podemos parar. Temos que continuar em movimento.

– Cara, por favor! Preciso descansar um minuto. Já alcançamos os seis mil metros? A porra do meu Garmin deve ter congelado o visor. Não está indicando nada, nem a altitude nem o tempo decorrido. Há quantas horas estamos na montanha?

Naquele momento, ao ouvir as perguntas do amigo e reparar, com uma simples olhada que o Garmin no pulso esquerdo do livreiro estava funcionando perfeitamente, Carlos constatou que o seu amigo estava com a “visão turva”.

Ele não teve a menor dúvida de que o embaçamento nos olhos de Nando estava relacionado à baixa oxigenação no sangue. Aquilo explicava o extremo cansaço do parceiro.

Era hora de decidir: continuar, ou melhor, tentar prosseguir em direção ao cume, ou voltar ao refúgio.

Carlos Eduardo, que nunca tinha visto o amigo de infância numa situação tão crítica, depois de refletir por alguns instantes, concluiu que teriam que desistir de chegar ao topo. Estava convencido de que precisavam voltar o mais rápido possível para o abrigo.

Naquela imensa montanha, num cenário onde, sob o brilho das estrelas que iluminam o céu na linha do Equador, só se enxergava o branco, Cadu sentou-se ao lado do livreiro. Desligou as lanternas de cabeça, a dele e a do parceiro, o abraçou carinhosamente, da mesma forma que Irvin Yalom abraçava seus pacientes no livro “De Frente para o Sol”, e disse pausadamente:

– Nando, temos que voltar. Vou te levar pra casa. Você não está bem e eu estou cansado.

Olhando e apontando com a cabeça para o cume do Chimborazo, ele continuou:

– Olhe para cima. Estamos bem próximos do topo, quase o tocamos com as mãos. Mais uma hora de subida e nós o alcançaríamos. Mas a verdadeira meta de uma escalada, como sempre acreditamos, não é o topo da montanha e sim o retorno à sua base.

Percebendo que o amigo estava quieto, sonolento e de olhos fechados, Cadu o sacudiu pelos braços, e com um tom alto e firme da voz, exclamou:

– Porra, reage! Escalamos montanhas a vida toda. Levanta! Vou te levar de volta para Terê.

Nada foi dito pelo amigo nos dois minutos que se seguiram aos gritos de Carlos.

Nando continuou inerte.

Repentinamente ele se virou e, com o apoio do Piolet, tentou se levantar. Contudo não conseguiu. Reclamou de uma dor aguda nos pulmões e com dificuldade murmurou ao amigo:

– Estou exausto e com muito frio e sono. Por favor, me deixe descansar um pouco mais.

Novamente abraçando o parceiro de tantas aventuras, Cadu sussurrou:

– Calma, Nando! Ficaremos aqui por dez minutos, no máximo quinze. Depois iremos pra casa.

No instante seguinte, Fernando, com a voz cansada e com dificuldades de respirar, voltou a dizer:

– Você pode montar a minha tenda de emergência? Ela está na minha mochila. Preciso abrigar-me.

– Não podemos ficar aqui por muito tempo. Estamos a quase seis mil e duzentos metros de altitude. Você precisa descer o mais rápido possível – respondeu Cadu, olhando para o Garmin no pulso esquerdo.

– Cadu, você disse que estamos quase no topo. Eu não consigo enxergá-lo. Estou desorientado. Então, a minha proposta é que você prossiga. Eu o aguardarei abrigado dentro da tenda.

Interrompendo o parceiro, Carlos berrou:

– Tu estás mal mesmo! Já te disse que retornaremos. Vou te levar pra casa. Você sempre confiou em mim e eu em você. Como nos últimos trinta anos, voltaremos juntos para Terê.

– Cara, quando você se acidentou na Pedra do Garrafão, eu atendi o seu pedido e continuei sozinho até o cume. Também não queria te deixar num momento daqueles, mas você não me deu escolha. Lembro-me de que na época, você disse: “Somos uma dupla e o gol poderá ser marcado por nós dois ou apenas por um de nós. O importante é o resultado”. Mesmo não concordando, segui escalando sozinho. Agora é a minha vez, você não tem escolha. Está me devendo. Não perca tempo. Siga para o cume, te aguardarei aqui. Monte a tenda, por favor.

Com base na sua experiência em montanhas, Cadu tentou por quase cinco minutos convencer ao amigo de que a situação era bastante diferente. Não se podia comparar um acontecimento durante uma escalada na Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro, com o que estava ocorrendo naquele momento, num clima inóspito e numa altitude acima de seis mil metros.

Mas de nada adiantaram os argumentos de Carlos. Após ouvir o amigo, Fernando, sonolento, voltou a falar quase num sussurro:

– Monta a minha barraca e vá ao cume. Faça isso por mim.

Após montar e acomodar o parceiro na tenda de emergência, Cadu quebrou uma barra de chocolate amargo em vários pedaços e os colocou ao lado do amigo.

Em seguida diminuiu ao máximo o peso de sua mochila, deu uma rápida olhada no croqui do trecho final da subida e, agachado junto a Nando, enquanto colocava dois pedaços de chocolate na boca do parceiro, disse:

– Caminharei o mais rápido que eu aguentar. Estimo estar de volta em uma hora e vinte minutos, talvez um pouco mais. No máximo, uma hora e meia. Tente ficar acordado e mantenha sempre um pedaço de chocolate na boca. Ok?

– Ok, ok, ok... – repetiu várias vezes Nando quase que em forma de mímica.

Quando estava fechando o zíper da tenda, Cadu ouviu: “Deixa o Isatphone comigo. Vou tentar ligar para o meu pai”.

Enquanto pegava o telefone na mochila e o preparava, Carlos respondeu:

– Ótimo! Faça tudo que puder para ficar acordado. O telefone está aí ao seu lado. Está pronto para discar o número do senhor Berico. Fique atento. Quando a luz do satélite ficar verde, é só calcar a tecla “ligar”.

– Ok, obrigado.

– Não durma! Voltarei logo.

Fernando não abriu os olhos, mas mostrando um semblante de paz murmurou:

– Siga em frente. Esse é o acordo selado entre os montanhistas. Eu ficarei bem.

Imediatamente após se despedir do amigo, Carlos inspirou e expirou o ar profundamente. Tinha a intenção de absorver o máximo de oxigênio. Em seguida iniciou a caminhada rumo ao cume.

Sem tirar uma peça do traje, sem descalçar as botas e as luvas, Nando segurou em uma das mãos a sua caderneta de anotações e na outra o telefone via satélite. Mantendo continuamente calcada a tecla “ligar”, ficou deitado numa luta quase perdida contra o sono. Ora cochilava, ora falava; escrevia e pensava no pai, a pessoa que ele mais amava e admirava na vida.

***

Alberico, seu pai, que ele e o amigo chamavam de “Berico”, era um homem simples, mas de uma cultura admirável. A Livraria do Cume, a qual no passado chamava-se “Terelivros”, tinha sido aberta por ele há quase setenta anos.

Antes de o filho completar quatro anos de idade, Alberico havia ficado viúvo. Ele tinha dedicado sua vida à livraria e ao filho. Enquanto pôde, cuidou de Nando como pai e mãe. O velho livreiro gostava de cozinhar e extraía a mais profunda satisfação ao preparar as refeições para ele e Nando.

Fernando estava ali mergulhado em suas boas lembranças quando escutou bem baixinho uma voz: “Alô. Alô, filho! Sou eu, seu pai. Você me ligou? O que houve? Já terminaram a escalada?”.

Sem levantar, mas com os olhos fixos no teto da tenda, o livreiro recolheu o braço e, aproximando o Isatphone do ouvido, respondeu:

– Oi, Berico! Sim, sou eu, Nando. Ainda estamos na montanha. Liguei só para dar um alô. Estou com saudades.

Alberico percebendo a dificuldade do filho em falar, o interrompeu perguntando:

– Filho, o que está acontecendo? Você sempre liga quando termina a escalada. Pelo cansaço da sua voz, tenho certeza que você não está nada bem. Deixa-me falar com Carlos Eduardo? Quero saber a verdade.

– Pai, por favor, me escuta. Estou cansado e com sono. Precisava ouvir a sua voz. Olha! Aconteça o que acontecer, foi uma decisão minha escalar o Chimborazo. Estou aqui porque quis vir. De certa forma estou tranquilo. Pai, eu te amo...

No quarto, que ficava no segundo andar da casa, o senhor Alberico, percebendo que a ligação tinha caído, jogou o celular em cima do criado mudo, sentou-se na poltrona ao lado da cama e pensou: “Nando e Carlos escalam já há quase trinta anos e nunca tinham telefonado da montanha. Algo muito sério está acontecendo”.

Com os olhos em lágrimas, não querendo acreditar que Fernando havia ligado para se despedir, Alberico deixou sua mente vagar pelos momentos maravilhosos vividos junto ao filho.

Alguns minutos depois, caminhou em direção à pequena estante do quarto, pegou o seu exemplar do mais recente livro de Nando e começou a reler, pela terceira ou quarta vez, o conto “Uma História de Montanhas e de Superações”. Aquela era a narrativa de que ele mais gostava.

***

Quando Carlos, muito cansado, retornou do cume, o dia já tinha amanhecido. Raios do sol tocavam à grande montanha, tornando-a mais branca, mais bela e mais fria. A temperatura havia caído, como sempre acontece quando não há nuvens para reter o calor do sol. O termômetro de mercúrio, preso na parte externa do teto da barraca, indicava menos treze graus.

– Olá, Nando! Está tudo bem? – ele perguntou, enquanto se aproximava para abrir o zíper da tenda.

Sem esperar a resposta, com a voz ofegante, voltou a falar:

– Missão cumprida! Fizemos o gol, mais um cume para nossa dupla.

Mal entrou na barraca viu o amigo imóvel, de olhos fechados, deitado de lado, encolhido com os joelhos na direção do peito. Tinha ele os braços cruzados perto das pernas, numa posição que lembrava a posição fetal. Estava o velho amigo com uma aparência no rosto que demonstrava tranquilidade. Naquele momento, num ato de quase desespero, Carlos gritou:

– Minha nossa! Putz! O que houve?

– Nando! Acorde!

Abraçando o corpo do amigo, que já estava um pouco frio, Cadu chorou e gritou:

“Não acredito! Você não me esperou. Porra! Não foi isso que combinamos. E agora?”.

Atordoado, desorientado, num intenso conflito entre memórias e emoções, ele sentou-se, usando as pernas como travesseiro para Fernando. Por alguns minutos manteve-se em silêncio pensando nas diversas montanhas que juntos tinham conquistado tanto no Brasil e nos Andes.

Depois de quase meia hora de perplexidade pela morte do amigo, Carlos Eduardo conseguiu sair do estado de choque.

–Tenho que agir! – berrou para si.

Enquanto acomodava o corpo do parceiro no chão da tenda, disse olhando diretamente no rosto de Fernando:

– Eu e você sempre voltamos juntos das montanhas. Vou te levar para Teresópolis, Nando.

Ao contrário do que tinha lido em alguns relatórios sobre o sepultamento de escaladores, Carlos havia decidido não deixar o companheiro na montanha branca.

Então, a partir daquele momento, ele passou a agir como se fosse um robô.

Sozinho tomou todas as providências para que ele e o amigo retornassem ao Brasil no mesmo voo.

Inicialmente, acionou as autoridades de Riobamba, capital da Província de Chimborazo. Era preciso informar o ocorrido e verificar como poderia ser feito o resgate do corpo.

Eram onze e pouco da manhã quando conseguiu contato telefônico, via satélite, com a administração da Reserva Nacional de Chimborazo.

Naquela situação ele não tinha muito tempo para responder aos questionamentos e explicar com detalhes aos funcionários sobre o que havia acontecido. A bateria do Isatphone, que tinha ficado ligado ao lado de Nando, estava no final.

Apesar das dificuldades, um pouco antes do telefone desligar-se por completo por falta de energia, Carlos obteve a confirmação de que o pessoal da administração tinha anotado os dados de sua posição geográfica e que a estimativa da equipe de resgate chegar ao local seria no início da tarde do dia seguinte.

Ficou sabendo também que as despesas logísticas e diárias do pessoal do resgate teriam que ser pagas por ele. Mas naquele momento Carlos não quis sequer anotar o valor que custaria tirar o corpo do companheiro da montanha.

Em seguida, ele montou a sua tenda de emergência, quebrou, com o Piolet, as duas últimas barras de chocolate e colocou três pedaços na boca. Logo depois, entrou, fechou o zíper da barraca e ali, deitado quase em estado de hibernação, ficou aguardando o pessoal do resgate.

Por volta das duas horas da tarde do dia seguinte, Carlos foi acordado por um homem de meia-idade, moreno, nem alto nem baixo. Era um típico equatoriano que se vê guiando expedições nos Andes. Enquanto abria o zíper da tenda, ele, num tom de voz alto, demonstrando segurança e firmeza, disse:

– Olá! Chegamos. Você está bem? Sou o chefe da equipe que veio te ajudar. Meu nome é Antay.

Cadu imediatamente sentou-se e, um pouco assustado, além de atordoado, respondeu:

– Sim, estou bem! Acho que estou. Eu sou Carlos Eduardo.

– Ok! Não podemos perder tempo, companheiro. Comigo vieram três montanhistas. Você precisa de ajuda? Conseguirá descer a montanha caminhando? O seu material e a mochila nós transportaremos.

– Estou bem! Estou bem!

Cadu repetiu aquelas palavras e depois disse:

– Descerei caminhando.

Enquanto a equipe de Antay preparava o material e a maca de transporte, Carlos, com o telefone do chefe do resgate, ligou para o pai de Fernando.

– Alô, senhor Alberico? Sou eu...

Sem nada esperar e com a voz baixa e triste, o pai respondeu:

– Por favor, Carlos, me deixa falar com meu filho?

– Ele não...

De repente nada mais foi dito.

Ambos permaneceram calados por cerca de um minuto. Instantes depois o silêncio foi quebrado pelo pai, que ainda com a voz triste, mas num tom de quem tenta demonstrar resignação, disse:

– Eu estava esperando a sua ligação. Ontem quando Nando me telefonou, percebi que algo grave estava acontecendo. Depois, sentado no meu quarto, senti uma forte sensação que ele havia ligado para se despedir. Não sei se foi um tipo de pressentimento ou uma espécie de intuição, mas sabia que estava ouvindo a voz do meu filho pela última vez. Por favor, Carlos, não o deixe na montanha.

– Senhor Alberico, voltaremos juntos. – ele respondeu e logo em seguida desligou.

Naquele momento ele tinha certeza que o velho Alberico gostaria de ficar sozinho e calado, na sua poltrona junto à estante de livros.

***

Numa manhã de terça-feira, vinte e cinco dias depois de ter alcançado o cume da montanha branca, Carlos estava sentado em uma poltrona, junto à janela da quinta fileira, do voo AV 8372 da Avianca com destino ao Rio de Janeiro.

Logo após a decolagem, ele, ainda sentido a dor incontrolável por ter perdido o parceiro de tantas escaladas para o Chimborazo, olhou para o corredor de vulcões que circunda a cidade de Quito e disse baixinho para si mesmo: “Pelo menos não tive que sepultar o Nando na montanha. Apesar das dificuldades e da enorme burocracia, consegui embarcá-lo para o Brasil”.

Quando o avião atingiu a altitude padrão de voo, Carlos, como de costume, foi pegar em sua mochila o livro do John Boyne que estava lendo. Era “O Palácio de Inverno”, um romance histórico sobre a família dos Romanov. Foi então que se lembrou da caderneta de anotações de Nando.

Ele a tinha encontrado ao lado do corpo do companheiro, em sua mão esquerda. Com a intenção de devolvê-la juntamente com os outros pertences ao senhor Alberico, ele a tinha guardado na mochila.

Cadu sabia que o amigo sempre levava consigo um bloco ou um caderno para rascunhar seus contos literários.

Então, levado por um sentimento de saudade do companheiro, junto com o livro sobre a família Romanov retirou também da mochila a caderneta e, em vez de voltar a ler o romance, leu as últimas anotações do amigo:

ANOTAÇÕES: NANDO

Chimborazo

Personagem A: Montanhista (livreiro)

Desde criança, ele nunca acreditou no destino e na providência divina ou que o nosso futuro fosse pré-elaborado e selado por Deus, como descrito por Grégory Samak no romance “O Livro Secreto”. Ao invés disso, tinha certeza de que em todos os instantes, milhões de novos futuros aconteceriam, frutos do acaso da vida ou decorrentes de decisões tomadas por cada um de nós.

Ele tinha convicção de que, diferente dos romances, na vida real são raros os momentos de exata compreensão de que erramos. Diversas questões de interpretação errada não são solucionadas; são simplesmente esquecidas.

Achava-se importante, o centro do mundo, que tudo girava ao seu redor. E que sem ele, o mundo certamente deixaria de funcionar corretamente.

Personagem B: Montanhista (médico)...

Diálogos:

– Ah, pelo amor de Deus. Não venha com essa conversa sobre alimentação adequada – ele respondeu no mesmo tom de voz do amigo.

– Então...

**

Cadu,

Mesmo na sua ausência, para não dormir, vou continuar falando contigo.

Minha visão está turva, quase não enxergo a folha do caderno, mas tentarei escrever e manter a mente funcionando. Se um dia vieres a ler estas anotações, por favor, desconsidere os garranchos e a falta de encadeamento entre os parágrafos. Estou debilitado.

Obrigado por concordar em seguir sozinho para o cume. Eu realmente não consigo mais continuar subindo. Quando se caminha nesta condição em que estou, o tempo parece fluir mais lentamente. Um segundo se transforma em uma eternidade. Há quase onze horas venho lutando com esta montanha e, diferente de todas as outras vezes, estou perdendo.

Sei que o abandono de um parceiro na montanha é uma questão delicada. Mas entendo que quando isso acontece, não deve ser julgado por pessoas que não participaram do ocorrido. Aqui onde nada sobrevive, onde o império do gelo reina e a vida é tão hostil que temos que procurá-la dentro de nós, qualquer ser humano tem o direito de lutar pela própria sobrevivência sem ter responsabilidade sobre outras vidas. Você não me abandonou. Foi minha escolha ficar na tenda.

Acho que cheguei aos meus limites físicos e fisiológicos. Estou extremamente cansado, com frio, respirando com dificuldade e com bastante sono. Não ter seguido as suas recomendações sobre uma alimentação adequada, em muito contribuiu para o desconforto que estou passando neste momento.

Desde a primeira vez que ouvi alguém falar do Vulcão Chimborazo, desejei escalá-lo. Não me arrependo de ter vindo. Mas neste momento não posso mentir: o que eu desejaria era de fato ir pra casa, deitar-me no meu quarto, depois de um banho bem quente, e no dia seguinte chegar cedo à livraria. Voltar à normalidade do dia a dia da vida.

Consegui ligar e falar com Berico. Foi muito bom ouvir a voz do meu pai.

Eu e você escalamos muitas montanhas, juntos aprendemos que no montanhismo as decisões tomam um caráter irremediável e não há volta. Às vezes em situações complicadas, uma escolha pode significar a diferença entre viver e morrer. Escolhi ficar e descansar, talvez esta opção leve-me à morte. Mas, como sempre preferimos nos orientar pelos conceitos filosóficos e não pelos religiosos, sabemos que todos nós estamos viajando na mesma direção. Uns chegarão mais cedo outros mais tarde; mas todos chegarão ao final da viagem.

Se realmente a minha viagem estiver terminando, muito pouco ou nada mudará, pois como acontece com todos que terminam sua jornada, em breve a minha existência aqui na terra será esquecida.

Já não sei se estou falando ou apenas pensando.

Não deixe o livro Chimborazo inacabado. Você é a única pessoa que poderá concluí-lo.

Talvez possa mudar o título para “Chimborazo: O Cume, depois a Morte”.

O sono é o único alívio para tanto desconforto.

Não sei se vou dormir ou morrer.

Ou dormir e depois morrer...

***

Dias atuais em Salinas

Cerca de um ano após o episódio com a dupla Cadu e Nando no Equador, o senhor Alberico, que desde daquela época não mais saiu de casa, faleceu enquanto dormia. Fora uma morte de causa natural, talvez sonhando com o filho e com a esposa.

Ainda frequento a Livraria do Cume, não como frequentava no período do nosso grupo de leitura, que naturalmente deixou de existir com a saída do Fernando. Também porque o ambiente mudou. Não piorou nem melhorou, apenas não tem mais o charme e as características de um negócio administrado por um verdadeiro livreiro, como era no tempo do Nando.

Há mais ou menos uns dez anos, um grupo de profissionais contratados pela organização “Médicos Sem Fronteiras” (MSF), que é o seu novo proprietário, passou a gerenciar a livraria. É que antes de morrer, o senhor Alberico, que não tinha herdeiros, deixou em testamento todo seu patrimônio e o do filho para essa instituição humanitária internacional.

Sem os encontros regulares para discutir sobre literatura, passei a encontrar-me esporadicamente com Carlos Eduardo. Soube que seis meses depois de ter perdido o amigo nos Andes, ele havia voltado a escalar.

Inicialmente retornou às atividades na Serra dos Órgãos, no Parque de Três Picos e na Serra do Cipó em Minas Gerais. Depois, voltou a praticar o esporte em altas montanhas. Soube também que criou uma associação de montanhismo chamada “Cadu&Nando – Escale com segurança”.

Em homenagem ao seu antigo parceiro, escalou sozinho o Chimborazo, chegando ao cume exatamente um ano após a morte de Fernando. Alguns meses depois, conquistou o Aconcágua na Argentina e o Kilimanjaro no norte da Tanzânia.

Quando conversamos recentemente, há pouco mais de um mês, ele me disse que, junto com mais dois escaladores de Teresópolis, estava planejando uma expedição ao Nepal. Pretendiam chegar ao cume do Monte Everest.

Eu continuo morando em Salinas, lendo, contando histórias, escrevendo e plantando alface. Recentemente comprei uma caminhonete cabine dupla, com capacidade de transportar uma tonelada. Em breve devo me tornar um agricultor de fato.

Apesar de eu ter conhecido e, de certa forma, convivido por um pequeno período com a dupla Cadu e Nando, esta história não me foi contada. Tomei conhecimento dos fatos e de como os eventos transcorreram quando li “Chimborazo”, livro que Carlos Eduardo terminou de escrever e o publicou com título original.

Compareci à sessão de autógrafos e de homenagem aos autores, que ocorreu num final de tarde de uma quinta-feira na Livraria do Cume.

Foi um evento simples, bonito e verdadeiro, no qual compareceram quase duzentas pessoas, todas integrantes das comunidades de montanhismo e de literatura de Teresópolis e Friburgo.

Lá na livraria, Cadu, depois de recordar os nossos bons momentos naquela loja, entregou-me um exemplar autografado de uma edição especial com capa dura e fotos coloridas.

Fiquei emocionado ao ver as fotografias e ler “Chimborazo”, cuja história acabo de contar.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 07/11/2017
Reeditado em 22/01/2018
Código do texto: T6165244
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.