Caminho de Santiago - Cap. 30/32 - De Portomarín a Ribadiso
O Sol já ia alto quando avistei Portomarín, não mais que uma vila com quase 2.000 habitantes. Eu estava bastante cansado, mas atravessei a passos largos a longa ponte sobre o Rio Minho, que a despeito do que muitos pensam não é um rio exclusivamente português, pois nasce na Espanha, mais exatamente na Província de Lugo.
Podemos dizer que Portomarín hoje é uma cidade nova, pois a velha se encontra sob as águas do Minho, afogada impiedosamente pela construção da barragem de Belesar. Era uma cidade histórica tendo sido decretada Patrimônio Artístico da Espanha em 1946 pelo então Generalíssimo Franco. Nas estações secas, quando o nível do rio baixa, a ponte velha revela-se aos olhos dos passantes em toda a sua antiga beleza.
Antes da construção da represa e consequentemente da inundação da antiga vila, algumas poucas construções de relevância foram desmontadas, pedra por pedra, e remontadas na nova Portomarín logo acima do local onde se encontravam. A mais importante delas foi a igreja templária de San Juan (San Xoán em galego). Ainda é possível encontrar em algumas pedras, o número de ordem recebido por ocasião do traslado. Portomarín também é famosa pela produção de sua “aguardiente”, na realidade uma “bagaceira” espanhola, feita a partir das cascas da uva.
No dia seguinte caminhei 25 quilômetros até Palas de Rei, passando por Gonzar, Castromaior, Hospital de La Cruz, Ventas de Narón, Ligonde, Airexe e Abenostre.
Palas de Rei é outro município de Lugo, tendo pouco mais de 3.500 habitantes. No caminho para lá um espanhol passou ao meu lado falando ao celular dizendo que iria comer um ótimo polvo na “Pulpería O Camiñante” bem na entrada da cidade. Não pensei duas vezes – fui direto para lá assim que cheguei. Realmente o polvo dali é sensacional (aliás, de toda a Galícia).
Na mesa ao lado da minha, dois peregrinos espanhóis conversavam animadamente embalados por algumas taças de vinho. Ouvi quando um deles disse ao outro que após chegar a Santiago de Compostela, iria até A Coruña, pois não se perdoaria por ter estado na Galícia sem ter conhecido sua capital. O outro respondeu que faria o mesmo.
Fiquei quieto, mas aquilo estava me corroendo por dentro. Não conseguindo me conter, falei: “desculpem senhores, mas não precisam ter esse trabalho todo para conhecer a capital da Galícia, pois ela é Santiago de Compostela e não A Coruña”.
Os dois acharam muito engraçado e começaram a rir. Afinal, quem esse brasileiro pensa que é para nos contradizer?
- Perdão senhor, mas a capital da Galícia é A Coruña, disseram.
- Desculpem-me senhores, mas a capital da Galícia é Santiago de Compostela, insisti.
Com um ar de superioridade, o mais novo dos dois falou: “espere aí” - e tirou o celular do bolso. Digitou algo lá no Google para fazer com que eu me convencesse definitivamente.
Notei que ele ia ficando cada vez mais vermelho e desconcertado com o resultado da pesquisa. Digitou de novo, de novo e de novo e eu só olhando. Já meio sem graça falou para seu amigo: “É Pablo – aqui diz que a capital da Galícia é realmente Santiago de Compostela”.
- Bem, vocês dois acabaram de economizar uma grana, falei.
Em meio ao silêncio que se seguiu e notando o visível desconforto dos dois, pedi minha conta e despedi-me deles.
- É brasileiro, você venceu essa, mas nós vamos ganhar a Copa do Mundo este ano dentro da casa de vocês, disseram rindo.
- Não tem problema – nós já ganhamos cinco vezes e vocês só ganharam uma. Nós podemos deixar essa pra vocês, se quiserem – e retirei-me achando graça.
Dormi muito bem naquela noite num albergue situado quase em frente à “Pulpería O Camiñante” e acordei bem disposto na manhã seguinte.
Por que O e não El Camiñante? – simplesmente porque estamos na Galícia onde o português se funde com o espanhol. Outro exemplo é A Coruña.
Minha meta hoje seria a cidade de Arzúa, 30 quilômetro à frente. Atravessei frondosos bosques onde predominava o perfume do eucalipto e passei por lindos povoados como Casanova, Leboreiro, Furelos e Melide, onde me detive na imperdível “Pulpería Ezequiel”, talvez a mais conhecida de todo o Caminho.
Prossegui para Boente e Castañeda e quando faltavam cinco quilômetros para o meu destino, passei por um lugarejo encantador após cruzar uma antiga ponte romana, onde dezenas de peregrinos se banhavam e descansavam sobre a grama para aproveitar aquele “calor” de 15 graus. Era Ribadiso da Baixo (é da Baixo mesmo e não do Baixo).
Seu antigo albergue municipal, que no passado chegou a ser um hospital para peregrinos, fica às margens do Rio Iso (o nome Ribadiso vem de riba+Iso, ou “às margens do Iso”). Resolvi ficar ali.
Fui tomar meu vinho e jantar no único restaurante existente, exatamente ao lado do albergue. Notei que na parede do restaurante lá estava ela: a bruxa. Por que os galegos gostam tanto assim da bruxa? Será que dá sorte pra eles? Na Idade Média não deu.
À noite, já na cama, vi dois rapazes e uma moça chegando e dirigindo-se ao dormitório de cima. Já passava muito das 22 horas e eles estavam bem animados, rindo à toa, sem respeitar os demais peregrinos. Botei a boca no trombone e mandei que ficassem quietos.
- Se vocês gostam de fazer o que querem, vão então para um hotel.
Mais alguns risinhos sufocados do trio enquanto subiam, mas ficou só nisso.
Adormeci em seguida pensando que no dia seguinte faria meu penúltimo trecho antes de chegar a Santiago de Compostela. Eu estava terminando o meu Caminho.