Chanana Tupixá : ficção ou realidade?
 


A lenda se constrói com retalhos da história, e já não se sabe mais onde termina uma e começa a outra. Muitas vezes,  a ficção avança os muros da realidade ou a realidade penetra o labirinto da ficção.  A vida, enfim, consiste em desprender-se, conquistar espaço, criar mundos em torno de si mesmo e viver a fantasia em cada realidade, ou a realidade em cada fantasia. Chanana  sempre foi assim: poucas palavras, muito sonho e ilusão. Ela esconde o  medo num sorriso pequeno. Quer  abraçar o mundo com as pernas. Mas o mundo não cabe num dedal e escorre entre seus dedos. Mundo, vasto mundo, nem o gigante de Itabira  sabe a dimensão!
 
A miscigenação faz do brasileiro o povo mais bonito.  Essa mistura de nações diferentes, mantem entre si caracteres genéticos comuns a todas as raças: cabelos negros corridos, escorridos na testa e porte atlético como se todos fossem filhos de Touro Sentado. Seriam os índios descendentes de caçadores,  de náufragos ou de Caim? Ela mesma tinha um pé na selva e outro na paia.
 
Também Ravenala queria morar longe de qualquer civilização. Os civilizados são selvagens demais. Dizia ela. É certo que precisava fazer incursão ao desconhecido, e sem medo, enfrentar seus temores: amores e paixões reprimidas. Cada situação de perigo na vida devia a ela obediência. Continência, como soldado no quartel.  Enfim, ela  conquistou seu canudo de papel. Graduou-se em Direito Civil e, por  causa da faculdade, retardou a missão como consagrada de Nossa Senhora de Namur. Inicialmente, a freira trabalhou em missões domésticas. Viajou, conheceu tribos indígenas do Brasil. Viu o rosto externo do coração num sorriso abafado, e sorriu aliviada: a alegria e a tristeza, tudo é vento que passa. Tinha muita  história para contar: em Goiás, conheceu remanescentes Jês que habitavam o baixo Araguaia... o Tocantins..., e assim, viajando em suas lembranças,  fechou os olhos e riu ao recordar-se do índio que se apaixonara por ela. ‘Índio querer casar mulher branca’ ‘ — Índio ser casado, respondeu a freira. Aquela  comunidade chorava as baixas em combates com o homem branco, em quantidade tanta, que não tinham potes suficientes para depositar seus mortos. Os jês  pranteavam o cacique Cuiarana-araruê  do tronco linguístico Macro-Jê, que saíra  do Norte de Minas para habitar  Goiás, e fora morto  durante a construção da Belém—Brasília.
 
Também choravam Apinajé Maxacali Araruê, desparecida aos 12 anos. Ninguém dava notícias dela. Morta ou viva não se sabia onde estava Apinajé.
 
Paola decidiu dar nova direção à sua linha de trabalhado, afastou-se da assessoria ao Conflito dos Guajajaras e desligou-se da Escola Brasil Grande, para assumir  missão evangelizadora em países da África. Ali, curou a ferida alheia e  com a alma na mão, guardou as suas dores na gaveta. Por qual espírito estaria sendo movida agora? Por que lhe vinha à mente o projeto de casar e ter muitos filhos? ‘Deixe-se conduzir pelo Espírito’, dizia, tomando para si as palavras do Apóstolo. Mas, também está escrito: ‘O homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher...’  A ideia pareceu absurda: casar com um jogador do Saint-Ettiénne, um brasileiro que conheceu na sala de embarque do aeroporto no Rio — e mais novo que ela? Não, não poderia sequer pensar nessas coisas, mesmo porque, embora  Américo a tenha cortejado com redobrada atenção, não lhe fizera nenhum  pedido de namoro. Nem poderia! Ela era consagrada a Deus com votos de pobreza e castidade. ‘Pode um homem tomar para si a esposa de Deus e não ser culpado de morte?’ Não figurava em seus planos morar na França. Seu projeto para o futuro seria voltar às raízes, fixar residência na Itália. Escrever livros, muitos livros.’
 
Compreendeu que a vocação para a vida consagrada é dom de Deus e alcança casados, viúvos, solteiros, velhos e jovens. ‘O próprio Deus  convoca-os junto a si por sua Palavra, por seus sinais que manifestam a vontade de Deus.’  Sabia também que o  matrimônio é vocação. Cabe, pois,  ao batizado seguir   o caminho apontado pelo  dedo de Deus.
Reclinou a poltrona, e acomodou-se para dormir, mas o sono era interrompido pela  ideia de   abandonar a vida consagrada.
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
Imagem 1. Chanana Tupixá.2. Equipe da Missão Guajajara.