Caminho de Santiago - Cap. 20/32 - De Villafria de Burgos a Hornillos Del Camino
Acordei bem disposto após ter dormido por mais de 12 horas seguidas. Olhei pela janela do meu quarto e vi que um lindo dia estava me aguardando. Imediatamente me dei conta de que estava em Burgos, ou melhor, em Villafria de Burgos, uma de suas portas de entrada.
Fundada no ano de 884 D.C., Burgos é sem dúvida a maior cidade do Caminho, com uma área de 108 km2 e 180.000 habitantes. De grande pujança econômica e cultural, foi em muito ajudada pelo próprio Caminho de Santiago que a atravessa por completo.
Para conhecê-la melhor, seriam necessários vários dias, mas não se deve perder a oportunidade de visitar pelo menos sua belíssima Catedral.
Seu interior abriga obras sacras dos mais famosos artistas, escultores e arquitetos espanhóis, inclusive o túmulo de El Cid e de sua mulher, Doña Jimena. Para conhecê-la adequadamente apenas uma vez não é suficiente, tendo em vista a quantidade de detalhes e informações disponíveis ao visitante.
Fiquei boquiaberto diante de tanta beleza!!! Antes de visitá-la, hospedei-me no Albergue Municipal Casa Del Cubo que fica a poucos passos dali.
O nível de qualidade desse Albergue que pertence à Prefeitura de Burgos, com amplos espaços limpos e bem divididos em todos os seus andares servidos por modernos elevadores com painéis eletrônicos e forrados com lâminas de aço inoxidável, realmente impressiona.
Os banheiros, com muitas pias e amplos espelhos, são de primeira qualidade e o número de duchas quentes é adequado ao seu tamanho.
Os serviços disponíveis aos peregrinos, tais como bicicletário, máquinas de autoatendimento, lavadoras e secadoras de roupa, cozinha e acesso à Internet também são muito bons.
Tudo isto, pasmem, por somente cinco euros (já dormi em albergues bem simples ao lado de cemitérios pelo mesmo preço).
Após ter visitado a linda Catedral de Burgos, fui conhecer a cidade, ou melhor, parte dela. É um lugar onde certamente retornarei, pensei enquanto caminhava por suas lindas ruas disparando incessantemente o botão da minha câmera fotográfica - clic., clic., clic., clic., clic. Não dava pra parar!!
A bateria acabou, mas eu sou um sujeito prevenido – tinha outras na minha bolsa previamente carregadas. Fiz a troca e continuei – clic., clic., clic. Era compulsivo!!! Só no interior da Catedral de Burgos devo ter feito umas 300 fotos, por baixo.
No final da tarde, já cansado, resolvi tomar uma garrafa de vinho para depois jantar e dormir. Encontrei no restaurante “Las Espuelas del Cid” o local ideal para isso. Enquanto bebia, ia colocando em dia minha correspondência utilizando meu “tablet” e aproveitando a rede WI-FI do estabelecimento.
Encontrei um e-mail de Thaís, uma das três irmãs baianas, dizendo-me que ela e Sarah tinham desistido de fazer o Caminho porque estavam muito cansadas. Respondi em tom de brincadeira que deveriam encontrar alguém disposto a levá-las até Santiago de Compostela deitadas em redes.
Acho que não gostaram da piada porque nunca mais me escreveram (risos). Jamais voltaria a vê-las.
Ao reentrar no albergue, fui violentamente sacudido por um pensamento: onde está meu cajado??? Eu sabia que havia entrado em Burgos com ele, mas não conseguia lembrar-me onde o tinha deixado. Eu o havia realmente perdido, talvez encostado a uma parede no momento de tirar uma foto, vai saber.....
Saí desesperado refazendo meus próprios passos naquela cidade, mas sem sucesso. Nada do meu cajado.
Procurei o administrador do albergue e perguntei-lhe se alguém por acaso teria feito ali a entrega de algum.
Venha comigo, disse levando-me até uma sala onde havia um cesto com dezenas deles. Nenhum era o meu.
Notando minha consternação o homem disse para escolher qualquer um, pois alguns estavam ali há anos e ninguém os reclamara.
Meu cajado era de alumínio e do tipo telescópico, tendo sido um presente do meu filho assim como minha mochila, mas naquele momento encantei-me com um de madeira envernizada onde se lia: “Roncestiago – Zariquiegui – Navarra”. Ele passaria a guiar meus passos e me forneceria apoio nas subidas e descidas que ainda viriam pela frente. E não eram poucas.
Saí de Burgos logo cedinho em direção a Hornillos Del Camino, minha próxima meta a 20 km dali. Depois de 8 km de caminhada, parei em Tardajos para tomar café e prosseguir então para Rabé de las Calzadas, onde pretendia fazer uma parada intermediária para uma cerveja – senão não dá!!!!
Ao sair do restaurante, não consegui avistar nenhuma seta amarela indicando a direção para Santiago. De repente, vi um peregrino bem mais à frente e resolvi segui-lo. Eu sempre fazia isso e nunca falhara, mas dessa vez algo não estava funcionando adequadamente. Eu já não via uma seta amarela há muito tempo e isto não era normal. Resolvi apressar o passo e alcançar o peregrino a quem seguia. O cara ia num ritmo muito forte e estava difícil emparelhar com ele.
Resolvi gritar: Hey you!!!!! Ele parou no acostamento da estrada e ficou me olhando por um instante, mas virou-se e continuou andando. Hey you!!! Wait a minute!!!!!!!!!!! Gritei com toda a força dos meus pulmões ao mesmo tempo em que levantava meu cajado. Qualquer que fosse a sua nacionalidade, com certeza entenderia o que eu estava querendo.
Alcancei-o finalmente e perguntei para onde estava indo. Era Charles, um canadense barbudo, muito claro e um pouco baixo. Tinha um chapéu todo amassado na cabeça.
- Para Rabé de las Calzadas, respondeu-me.
Eu também, disse-lhe, mas acho que nós estamos indo na direção errada. Minhas suspeitas se confirmaram quando reparei que vários veículos quando passavam por nós, piscavam desesperadamente seus faróis e tocavam incessantemente as buzinas fazendo sinais incompreensíveis com as mãos como que para alertar-nos.
Tínhamos realmente nos perdido. Estávamos em Las Quintanillas e a cerca de 5 km fora do curso. Uma simpática senhora percebendo nosso problema veio até nós e explicou-nos o que já sabíamos. Agradecemos e voltamo-nos para a direção oposta com a intenção de recuperar o tempo perdido.
- Esperem aí, eu vou levá-los de volta!!!!
Fiquei muito agradecido e disse que não seria necessário, mas ela insistiu - isso acontece com frequência, falou – o entroncamento em Tardajos não é bem sinalizado.
Já no carro, notei que ela não estava indo para o tal entroncamento, mas para outra direção. Questionei-a e ela me respondeu que já nos deixaria em Hornillos Del Camino, pois havíamos perdido muito tempo e certamente encontraríamos o albergue lotado quando lá chegássemos.
Senti um quê de gratidão por ela estar se preocupando conosco, mas ao mesmo tempo não me agradava a ideia de “trapacear”, pois estaria percorrendo uns 10 km de carro ao invés de caminhar. Eu queria fazer todo o Caminho pé ante pé, passo a passo.
Ela percebendo meu semblante disse: “não te preocupes com isto – Santiago há de perdoar, pois vocês ainda têm os créditos do trecho que fizeram por engano e de outros que ainda errarão”, disse rindo.
Achei que havia certa lógica em suas palavras e comecei a rir também. Charles não havia compreendido absolutamente nada do que estávamos falando e então lhe expliquei. Ele achou a ideia mais do que válida e com o polegar para cima também concordou.
Chegamos finalmente a Hornillos Del Camino. Coloquei minha mochila na fila que já se havia formado em frente ao albergue. Carmela estava certa. Não pude fazer outra coisa a não ser convidá-la para um café no bar em frente. Ela aceitou, mas não ficou por muito tempo dizendo que tinha coisas a resolver em Las Quintanillas. Ainda existe muita gente boa neste mundo, fiquei pensando enquanto seu carro sumia atrás de uma espessa nuvem de poeira ao longe, numa das muitas curvas do Caminho.
Tudo que eu precisava agora era de um banho quente para depois jantar e dormir, pois Castrojeriz, 21 km à frente, me esperava no dia seguinte.