Caminho de Santiago - Cap. 17/32 - De Sto Domingo de la Calzada a Belorado
Andei pelas vielas de Santo Domingo de la Calzada estupefato por sua beleza. Era uma linda sexta-feira de primavera. O ir e vir das pessoas passando por aquelas ruas aumentava a cada minuto. Brindes sendo erguidos nas portas e mesas em frente aos bares, risos altos e espontâneos vindos dos grupos formados nas esquinas, namorados passeando de mãos dadas e crianças brincando nas pracinhas, ajudavam a compor todo aquele clima de pura alegria e descontração.
Subitamente, minha atenção foi despertada pelos primeiros acordes de uma música tipicamente espanhola que parecia vir da “Plaza de España”, a principal da cidade. Eu já estava indo para o meu albergue, mas voltei-me imediatamente em direção ao som e resolvi ir ver o que era aquilo.
Fiquei surpreso ao encontrar centenas de pessoas sentadas lado a lado bem no meio da praça. Estavam dispostas ordeira e simetricamente umas das outras. Notei que as cadeiras eram de vários tipos, como se tivessem sido trazidas de casa pelos próprios espectadores. Algumas eram de madeira, outras de plástico rígido - havia até mesmo algumas poltronas, mas tudo muito bem arrumado como numa verdadeira sala de espetáculos.
Aproximei-me pelo flanco e fiquei perto da pequena, mas bem ensaiada orquestra que estava sobre um palanque também improvisado. Ao final das interpretações, todos aplaudiam educadamente, sem assobios ou gritos. O repertório mudou para algumas peças clássicas da música erudita, voltando em seguida para aquelas mais conhecidas do cancioneiro espanhol.
Fiquei estático e emocionado vendo e ouvindo tudo aquilo. A educação, a ordem e o respeito demonstrados por aquela gente àquele evento, fizeram com que eu me sentisse feliz por ter sangue espanhol correndo em minhas veias.
Estava vivamente embevecido quando fui inesperadamente sacudido e trazido de volta à realidade pelo badalar dos sinos da Catedral junto à praça. Eram 22H00 em ponto e o meu albergue já deveria estar fechando as portas. E como no conto de Charles Perrault - Cinderela - apressei-me em sair dali em desabalada carreira, antes que todo o encantamento se desfizesse. Cheguei finalmente à Abadia Cistercense onde estava hospedado e para minha surpresa vi que a porta estava apenas encostada.
Quase sem fôlego, entrei desculpando-me com a administradora pelo acontecido, ao que ela sorrindo me respondeu: “Não te preocupes. Hoje é dia de apresentação da orquestra na Plaza de España e os peregrinos acabam se esquecendo mesmo do horário. Outros ainda chegarão depois de ti. Suba e durma com Deus”.
E dormi mesmo, pois só acordei na manhã seguinte com uma música sacra tocando, cujo volume ia subindo aos poucos pra despertar os peregrinos para mais um dia.
Já no Caminho, passei pela “Cruz de los Valientes” e parei mais à frente para tomar café em Grañon, um povoado de 270 habitantes.
Logo após, cheguei a Redecilla del Camino, outro povoado com 120 habitantes. Estava agora oficialmente na terceira Comunidade Autônoma do Caminho, ou seja, Castilla y León. Segui em frente passando por outras pérolas do Caminho: Castildelgado, Viloria de Rioja e Villamayor del Rio, onde avistei do outro lado da estrada um restaurante chamado "Casa León".
Cansado por ter caminhado cerca de 18 km até ali, resolvi fazer uma parada estratégica, pois ainda me restavam outros 5 km de caminhada até Belorado.
Assim que abri a porta, fui advertido pelo proprietário - que veio como uma flecha em minha direção - de que não poderia entrar ali com a minha mochila nem com o meu cajado. Além disso, disse que eu tinha que ver se minhas botas não estavam sujas de barro.
Ele era o Sr. Javier. Uma figuraça!!!!
Não discuti e fiz o que ele me pediu, afinal não me parecia haver outro estabelecimento nas imediações e eu estava louco por um canecão de cerveja. Além disso, não estava na Espanha para discutir e sim para aproveitar.
Já dentro do restaurante entendi a preocupação de Javier e dei-lhe razão. O “Casa León” é sem dúvida o mais bem cuidado estabelecimento comercial que encontrei no Caminho. É finamente decorado com mobiliário de época, dezenas de relógios antigos, pinturas nas paredes, estátuas e gravuras por toda parte. Tudo de extremo bom gosto.
Aquilo parecia mais um palácio do que um restaurante. Fico pensando no estrago que um peregrino poderia fazer ao girar-se desatentamente: ia voar bibelô pra todo lado!!!!!
Fiz questão de parabenizar Javier. Ele agradeceu e veio logo pessoalmente trazer a minha cerveja. Ficou ali de pé ao lado da minha mesa enquanto eu bebia.
- Tu não me acompanhas, Javier?
- Está bem. Vou tomar uma contigo.
Ele viu que eu era brasileiro e passou a fazer muitas perguntas sobre a situação em que nos encontrávamos.
- Não entendo como um país tão grande como o Brasil, onde a Espanha caberia diversas vezes, não aproveite tudo o que tem. Vocês deveriam estar no topo dos países mais ricos e desenvolvidos do mundo, disse-me
Era difícil explicar a Javier o porquê disso não estar acontecendo. Era melhor que ficássemos apenas nos deliciando com nossas canecas de cerveja. Eu queria mesmo era esquecer as mazelas do meu país e aproveitar aquele momento.
De vez em quando, Javier levantava-se e partia como uma bala de rifle em direção à porta do restaurante para barrar a entrada de outros peregrinos e informá-los sobre o “regulamento da casa”. Alguns praguejavam e não entravam.
Eu estava me divertindo com tudo aquilo. Tinha que conter o riso quando via os olhos arregalados dos peregrinos ao receberem as regras ditadas por Javier.
Em um certo momento, desculpou-se comigo e disse que tinha que providenciar algumas coisas para o jantar, mas não antes de me trazer outro canecão de cerveja acompanhado por um prato de “pinchos”.
Isto é por conta da casa, disse-me.
Agradeci e resolvi deliberadamente colaborar informando tudo aos outros “desavisados peregrinos” que chegavam, pois eu agora era amigo do Javier (risos). Um deles, que me pareceu ser um chinês, não concordou comigo e disse que iria somente ao “toillete” para sair logo em seguida e por isso não precisava tirar a mochila.
O infeliz rapaz foi surpreendido por Javier que saltou sobre ele já na metade do caminho como um gato sobre um camundongo, colocando-o imediatamente para fora.
Eu por mais que tentasse, não conseguia deixar de rir com tudo aquilo. Acabei engasgando com a cerveja. Meus olhos lacrimejavam - quanto mais fazia esforço para me conter, mais ria e precisava disfarçar a todo momento.
Antes de sair, já refeito, abracei demoradamente Javier e prometi-lhe que voltaria um dia. Deixei também uma calorosa e entusiástica mensagem no seu livro de visitantes, elogiando o estabelecimento e a amável recepção. Afinal, o “Casa León” era realmente uma pérola perdida nas profundezas abissais do Caminho, um verdadeiro oásis no deserto que infelizmente nem todos os peregrinos estão preparados para apreciar.
Cinco quilômetros depois cheguei a Belorado. Fui dormir ainda rindo das cenas que havia presenciado no “Casa León” e feliz pelos bons momentos que ali passei.