Caminho de Santiago - Cap. 14/32 - De Navarrete a Nájera
O dia já havia raiado quando o administrador do albergue entrou no dormitório: “Vamos peregrino, levántate. Tienes que caminar mucho si quieres llegar a Santiago de Compostela” – disse-me em alta voz e sorrindo.
Notei que eu era a única pessoa que ainda estava ali.
- “Vas a desayunar con nosotros?”, Perguntou-me
- “ No, gracias – Voy a desanuyar en el caminho”, respondi-lhe ainda meio tonto e sem saber exatamente onde estava.
Eu havia dormido muito mal e sentia-me alquebrado. Pulei pra fora da cama literalmente, vesti-me rapidamente e desci até à portaria, onde calcei meu tênis, peguei meu cajado e saí.
Vale aqui uma explicação: nos albergues os calçados dos peregrinos assim como seus cajados, devem ser deixados do lado de fora dos dormitórios por questão de higiene. Entretanto, por algumas vezes vi essa regra não ser obedecida, principalmente naqueles de cidades mais simples. Também é proibido usar aparelhos eletrônicos nos dormitórios ou fazer ruídos que possam incomodar aos demais.
As portas costumam ser fechadas pontualmente às 22H00 e você pode abri-las por dentro para sair a qualquer hora e retomar seu Caminho. Essa é a regra, mas você sempre encontrará uma exceção a tudo isso que eu disse. É próprio do ser humano.
O que mais me incomodava não eram os roncos nem as eventuais flatulências alheias durante a madrugada, mas a incrível mania que alguns peregrinos têm de bater a porta do dormitório ao entrar e sair.
Notei que os europeus são campeões nessa modalidade. Eles são muito educados, tudo bem, mas adoram dar uma porradinha com a porta.
Reparem que quando eles fecham a do automóvel, parecem estar praticando uma nova modalidade de esporte: “lançamento de porta”.
A pancada é tão violenta que chega a estremecer todo o veículo. Se você por distração deixar sua mão encostada no encaixe da porta nessa hora, seguramente vai perder todos os dedos. Será que eles fazem isso para se certificarem de que está bem fechada? Vai saber....
Tirando isso, acho até saudável a vida nos albergues, pois você acaba desenvolvendo um sentido comunitário muito forte. Alguns partilham até o preparo das refeições, dividindo os custos das compras e lavando a louça toda ao final. Já fui convidado para comer uma “paella” feita dessa forma assim que cheguei em um deles. Quis pagar pela minha parte, mas não aceitaram. "Esqueça isso. Vai sobrar mesmo!!! Sente-se aqui e coma com a gente". - É uma grande festa!! -
Já na estrada, o dia estava muito bom e o sol já botava suas asinhas de fora, obrigando-me a tirar o agasalho e consecutivamente a mochila. Amarrei o casaco na cintura pelas mangas e recoloquei a mochila. Era uma verdadeira ginástica e a gente vai perdendo calorias.
Vamos lá!!! Tenho que chegar a Nájera ainda hoje, pensei.
Fui caminhando e observando aqueles lindos campos de trigo, alguns já colhidos e transformados em enormes feixes à beira do Caminho aguardando por transporte. Os europeus aproveitam cada centímetro de terreno vazio.
Comecei a pensar no episódio do dia anterior, nos mistérios da vida e da sua efemeridade. Por que estamos aqui neste mundo? E para quê?
Não tenho medo da morte – nunca tive, mas temo a “ causa mortis”. Esta sim é o problema.
Há pessoas que pedem a Deus uma vida longa - mas sem qualidade, não serve. Morrer com noventa anos sobre uma cama, com fraldão, tomando banhos de asseio, cheio de chagas e dando trabalho pra todo mundo não é nada bom. Pensei que talvez morrer ainda lúcido ali no Caminho e ter uma cruz com minha foto encravada sob uma árvore até que seria bom.
Não acredito em destino. Deus não seria tão injusto com a sua criatura. Morrer com dia e hora marcados como um boi num matadouro, não é coisa para seres humanos. Nós temos o livre arbítrio. Se fizermos besteira por aqui, vamos ter que voltar para expiar nossos erros e saldar a nossa dívida. Nossa alma é como uma pedra pontiaguda – nascemos imperfeitos e viemos a este mundo para rolar e acertar nossas arestas. Quando estivermos redondinhos, ascenderemos a novos planos nesse gigantesco universo criado pela sabedoria divina cujo amor e misericórdia são infinitos. Eu pelo menos penso assim.
Nossa matéria é efêmera assim como a nossa vida. Nosso corpo quando privado do espírito e do sopro da vida, nada mais é que carne para os vermes: apenas um cadáver.
Não sou eu quem está dizendo nem estou inventando nada.
A própria palavra CADÁVER é composta pelos prefixos silábicos da frase: Carne Dada aos Vermes (Ca+Da+Ver), ou como diziam os antigos pensadores – “CARA DATA VERMIS”.
E com essas coisas na cabeça, porque no Caminho o que você mais tem é tempo pra pensar, acabei chegando a Ventosa, outra graciosa cidadezinha com 150 habitantes. O sol já ia a pino quando resolvi entrar num bar para tomar aquele já conhecido canecão de cerveja, porque ninguém é de ferro.