Caminho de Santiago - Cap. 10/32 - De Estella a Los Arcos
Antes de sair de Estella, fui ao correio local e despachei para o Seminário Menor Belvís em Santiago de Compostela, onde me hospedaria, uma caixa de papelão contendo mais alguns itens que eu estava considerando supérfluos. Sobre a caixa escrevi: Peregrino em trânsito - favor reter.
Já havia caminhado alguns quilômetros após ter saído de Estella, quando vi uma placa no Caminho nas proximidades de um lindo Monastério: Bodegas Irache - Fuente de Vino - onde animados peregrinos bebiam gratuitamente, e à vontade, o vinho que saía de uma torneira na parede. Acima dela havia uma placa onde se lia:
"Peregrino Se quieres llegar a Santiago con fuerza y vitalidad de este gran vino echa un trago y brinda por la felicidad.”
Tomei um pouco do saboroso vinho enquanto imaginava que algo similar não funcionaria no meu país, por motivos que obviamente são do conhecimento de todos.
Pensei em visitar o Museu do Vinho e o Monastério de Irache já que estava ali, mas eu havia perdido muito tempo em Estella e resolvi prosseguir para Los Arcos.
Continuei a caminhar agradavelmente até Azqueta apreciando as flores e os campos de trigo que bailavam ao meu lado açoitados pelo vento.
Meu segundo par de tênis incomodava um pouco por ser novo. O que eu amaciara preventivamente caminhando quase que diariamente entre o Recreio dos Bandeirantes, onde moro, e a Barra da Tijuca, teve que ser jogado fora. É que no caminho para Pamplona, ao sair de uma igreja em Zabaldika, ao lado de um albergue paroquial onde fui pedir informações, escorreguei numas pedras soltas e desci uma pirambeira de costas.
O tombo foi muito feio!!
Não havia ninguém na trilha para me socorrer. Quando finalmente parei, fiquei inerte olhando para o céu sem mexer um músculo. Tinha receio de ter quebrado algum osso ou luxado alguma articulação.
Levantei-me sozinho e vi que além do meu orgulho ferido e o tênis do pé esquerdo em frangalhos, tudo estava bem.
Eu fora salvo pela mochila, pois caí de costas e ela amorteceu todo o impacto. Ainda bem que eu levara um par reserva.
Depois de Azqueta, encontrei novamente campos e vinhedos. Antes da pronunciada subida que leva a Villamaior de Monjardin que venci com relativa facilidade, visitei a Fonte de Los Moros, uma interessante construção em forma de cisterna que fica bem à margem do Caminho e que tem saciado a sede dos peregrinos desde a Idade Média.
Segui para Urbiola e após uma caneca de cerveja chequei finalmente a Las Cruces de onde iniciei a descida até Los Arcos.
Eu havia completado até agora, 138 km em 6 dias. Uma média diária de 23 km. Teria que caminhar outros 700 km até Santiago de Compostela.
Los Arcos é uma simpática cidadezinha com 1.200 habitantes e como muitas outras não existiria sem o Caminho e sem os peregrinos.
Hospedei-me no albergue Casa de Áustria logo na entrada da cidade. Ao carimbar a minha credencial de peregrino, percebi que uma mulher que parecia a administradora, "passava um sabão" num rapaz por este estar sentado numa cadeira girada ao contrário, isto é, com os braços apoiados sobre o encosto.
Depois fui apresentado aos meus aposentos: uma acomodação no sótão com vários colchões dispostos lado a lado sobre um piso de tábuas envernizadas. Tudo muito rústico, mas bem limpinho e organizado.
Banho tomado, barba feita, desci pra conhecer a cidade. Depois, como de praxe, viriam o vinho e o jantar.
Passando pela cozinha do albergue, vi sobre a pia uma garrafa grande de refrigerante já aberta e quase vazia. É normal nos albergues, quando alguma coisa nos sobra, colocá-la sobre a bancada da pia para que outros a utilizem. É uma questão de cordialidade e compartilhamento - quase um código tácito de conduta. Eu mesmo já havia deixado sobre a pia latas de pêssegos, sacos de biscoito abertos, etc., etc. Evita-se assim também o desperdício de muitas coisas que ainda podem ser aproveitadas.
Assim que enchi meu copo com o refrigerante, a mesma administradora, uma loira magra com forte sotaque alemão, veio repreender-me.
Meio sem entender, expliquei-lhe meu ponto de vista e por que eu havia feito aquilo. Quis pagar pelo copo de refrigerante, mas ela não aceitou. Saí dali ruborizado e bastante chateado.
Estava dando umas voltas pela cidade quando de repente avistei Thaís e Sarah, as duas irmãs baianas. Perguntei por Neise e fui informado que ela havia voltado a Madri para retomar o trabalho.
Perguntaram-me onde eu estava hospedado.
- Na Casa de Áustria, respondi.
Thaís com os olhos faiscando de ódio me falou que elas também estavam lá, mas que não aguentaram a perseguição da tal administradora. Bateram de frente e discutiram com ela, indo para outro albergue.
Thaís continuou: "eu vou arrasar com ela na Internet" (na verdade usou outro verbo que achei melhor não colocar aqui, mas todos vocês entenderam).
- Saia de lá também, Sergio, disse-me Sarah. Vem pro nosso albergue - tem vaga.
- Não, obrigado. Vou ficar lá mesmo, agradeci.
Depois de tomar meu vinho e consumir o já conhecido "Menu del Peregrino" - normalmente composto de um primeiro prato, um segundo, sobremesa, vinho, pão e azeite à vontade (tudo por 10 euros), voltei pro albergue para usar um dos computadores, daqueles que funcionam com moedas, pois tinha que enviar várias fotos e vídeos do Caminho para casa e amigos.
Já estava quase concluindo quando chegou a mesma administradora.
- Vamos encerrando com isso porque vou desligar os computadores daqui a 5 minutos.
- Ponderei que o tempo que tinha à disposição e pelo qual já havia pago era bem maior. E eu ainda estava concluindo o upload das fotos.
- Você agora só tem 4 minutos e eu vou desligar em seguida.
A mulher era o cão chupando manga, a besta-fera, o rabudo em pessoa.
Sempre tive muito medo da mistura do sangue que levo nas veias: o italiano por parte de mãe e o espanhol por parte de minha avó paterna. Fiquei imaginando o que faria se ela cumprisse a ameaça. Ia ser um bafafá dos infernos e não valeria a pena. Afinal eu não havia saído de casa pra me aborrecer tão longe.
Assim pensando, salvei meu e-mail na pasta "Rascunhos" para retomá-lo mais tarde em outro lugar e fui pro dormitório, antes que a neurótica mulher me mandasse para o pelourinho tomar umas 50 chibatadas.
No dia seguinte iria para Logroño, a 28 km de onde estava.