Caminho de Santiago - Cap. 04/32 - De Roncesvalles a Zubiri
Após ter jantado magnificamente e saboreado o bom vinho da casa servido a todos os peregrinos, fui dormir ainda pensando na difícil jornada há pouco vencida e na que estaria por vir.
Não dormi bem - estava muito excitado. Fiquei acordado ouvindo o forte aguaceiro que caia lá fora, acompanhado do rugir de longos e furiosos trovões. Estariam eles censurando minha solitária aventura?
Além de tudo, como nos albergues para peregrinos quase sempre existe uma boa concentração de pessoas dormindo em um mesmo ambiente, geralmente grandes salões com vários beliches, é inevitável que em algum momento da noite se inicie de forma involuntária e sem maestro, um magnífico concerto sinfônico de roncos e flatulências em várias tonalidades, compassos e andamentos, como que a lembrar-nos de nossa fisiológica condição humana.
Acordei cedo em terras espanholas pela primeira vez no Caminho.
O destino seria Zubiri a cerca de 22 km dali.
Tomei meu café no bar anexo ao restaurante, enchi meu cantil, coloquei minha mochila nas costas e fui à luta. Estava muito frio, mas pelo menos a chuva havia cessado. Logo ao sair do bar, deparei-me com a emblemática placa situada às margens da estrada e no início da trilha onde de lia: "Santiago de Compostela a 790 km". Era muito chão....
Logo após Roncesvalles, vem uma linda cidadezinha, na realidade uma vila cujo nome é Burguete (Auritz, em basco). Parece surgida de um conto de fadas. As casas têm suas portas e janelas praticamente encostadas na estrada, pois a calçada é bastante estreita, o que contribui para aumentar sua singularidade. A igreja de San Nicolás de Bari, de origem medieval ali situada, é uma joia de rara beleza. Em tempos idos, em frente a ela foram queimados vários "brujos" e "brujas" por ordem da Santa Inquisição Espanhola, cujo maior expoente foi sem dúvida alguma, Tomás de Torquemada, o grande inquisidor e também confessor da Rainha Isabel, a Católica.
Burguete tornou-se conhecida não só por sua singular beleza, mas também pelo fato de ter hospedado por diversas vezes o famoso escritor Ernest Hemingway, que ali possuía uma espécie de retiro onde encontrava a serenidade necessária para escrever. Existe ali em um hotel um piano em cuja tampa está a sua assinatura.
Hemingway era uma pessoa excêntrica e de personalidade muito forte. Teve várias paixões ao longo da vida. Amava as mulheres e a Espanha, especialmente a cidade de Pamplona onde vivia. Ativista político ferrenho, deixou para a posteridade várias obras literárias magníficas como Adeus às Armas, Por quem os Sinos Dobram e O Velho e o Mar.
Sua mente já conturbada estava sempre em ebulição. Assim como seu pai, acabou suicidando-se com um tiro na cabeça.
Fiquei pensando na minha caminhada e na minha solidão. Assim como o personagem de Hemingway em O Velho e o Mar, eu também estava travando minha batalha particular, só que contra algo que não sabia exatamente o que era. O Velho do romance de Hemingway queria trazer seu peixe a qualquer custo. E eu, queria exatamente o quê?
Ele tinha confiança inabalável em si mesmo. E eu teria em mim? Conseguiria chegar ao meu destino e voltar com algum aprendizado sobre a finalidade da vida e a validade da fé?
Com esses pensamentos latejando em minha mente continuei caminhando a passos largos e decididos, de tal sorte que acabei perdendo a orientação das setas amarelas que nos indicam o caminho a seguir. Havia já passado algum tempo sem que eu conseguisse avistar uma única delas. Resolvi entrar numa lojinha de comestíveis que acabara de levantar as portas e ali indaguei por que não estava mais encontrando as setas indicando o Caminho.
O homem que parecia ser o proprietário fitou-me demoradamente e disse: você deveria ter entrado entre dois prédios lá atrás e cruzado uma pequena ponte sobre um riacho ali existente.
Depois era só seguir a trilha que passa ao lado dos campos e das fazendas. As setas indicando a súbita mudança no percurso, estão pintadas sobre o asfalto da estrada. Nem todos conseguem vê-las, concluiu. É melhor você continuar em frente agora, pois em alguns quilômetros encontrará novamente a trilha, desta vez bem sinalizada.
Agradeci e meio aborrecido com o fato continuei caminhando.
Quantas vezes na vida perdemos ótimas oportunidades e momentos felizes por não estarmos suficientemente atentos aos sinais que ela nos envia, pensei comigo mesmo.
Subitamente, como que por magia, comecei a ouvir um cântico ao longe. Eram muitas vozes num coral invisível que cessavam repentinamente para darem início a algo parecido com uma ladainha. Após a primeira curva logo à frente, descobri tratar-se de uma grande procissão. Fiquei estupefato com aquilo tudo e postei-me à beira da estrada para observar sua passagem.
Eu havia perdido um cenário bucólico, florido e verdejante por não ter visto as setas indicando a mudança do caminho quilômetros atrás, mas em compensação havia ganhado algo em troca.
Frequentemente na vida nos lamentamos por alguma coisa que não fizemos e também por oportunidades que não soubemos aproveitar adequadamente. Mas a vida não é uma equação matemática. A frustração de agora, pode se converter em alegria mais à frente e vice-versa. Eu mesmo acabara de constatar isso na prática.
Após ter encontrado mais adiante o entroncamento que me devolvia ao Caminho, passei a enveredar por lindas e floridas pradarias, margeando de vez em quando algum rio, mas sempre ouvindo o canto de pássaros que eu não conhecia. Apenas conseguia identificar um deles: o do malvado e esperto cuco que coloca seus ovos no ninho de outras aves para que essas os choquem por ele. O pior é que as mães, enganadas, não percebem o ardil e passam também a alimentar os filhotes do cuco como se fossem seus. Para completar a maldade, os bebês invasores crescem primeiro e acabam atirando os legítimos herdeiros de sua madrasta para fora do ninho, matando-os. O cuco não é um sujeito legal. Cá entre nós: bem que podiam ter escolhido outro pássaro pra colocar nos famosos relógios de parede.
Percebi que estava chegando a Zubiri porque acabara de encontrar uma descida muito pronunciada, parecendo o leito seco de um rio e cheia de pedras soltas. Seriam alguns poucos quilômetros, mas que exigiriam toda a minha atenção. Muitos peregrinos já haviam rolado e se ferido seriamente nesse trecho. Por vezes na vida também encontramos pedras em nosso caminho, algumas intransponíveis.
Ernest Hemingway participou de duas guerras mundiais e sobreviveu a dois acidentes de avião. Eu realmente não conseguia entender como ele acabou por tirar a própria vida - só ele sabe o porquê. Os porões da alma e os labirintos da mente são impenetráveis, portanto não cabe a mim julgá-lo.
E foi com este pensamento, já esgotado e com fome após 22 km de caminhada, que avistei à frente a Ponte da Raiva sobre o rio Arga, exatamente na entrada de Zubiri, dando-me a certeza que eu havia vencido mais uma etapa das muitas que ainda viriam ao longo deste maravilhoso Caminho de Santiago de Compostela.