Brincando na Carroça (Otoko to on'na to niguruma, 1923)
"Uns meninos e meninas brincavam em uma carroça que havia sido deixada na beira da estrada, sentados, quatro ou cinco em cada lado, em suas extremidades. Subindo e descendo, como uma gangorra, o eixo da carroça rangia; as crianças nem se lembravam da hora de ir para casa jantar. Um garoto enlaçava, com firmeza, os ombros de uma menina; ela apoiava sua mão ora no colo dele, ora no estrado da carroça. Quando seus pés tocavam no chão, pisavam com força e se elevavam, quase flutuando no ar; depois mergulhavam novamente. A luz do crepúsculo do verão ia se tornando indefinida e realçava esse quadro de folguedo das crianças, que pairavam em sombras escuras. Eram raros os transuentes, e sempre a passos apressados.
-Sobe gangorra, desce gangorra; em cima é rei, embaixo é mendigo... - Sobre a carroça, as crianças cantavam ritmando os movimentos da gangorra.
De repente, soltando os braços que enlaçavam as meninas sentadas ao seu lado e voltando-se para trás, um garoto de bonitas sobrancelhas, aparentando ter cerca de doze anos, elevou a voz:
-Vamos trocar de parceiros!
-Por quê? Não precisa, vamos balançar mais rápido! - disse um garoto do outro grupo, de costas para o primeiro.
-Assim não tem graça. Quero trocar, porque quem está do lado do timão fica em desvantagem. Esse lado sobe pouco.
-Fica nada! É mentira, é mentira! Olhe, sobe até a mesma altura! - contestou uma menina extremamente bela, que também aparentava ter cerca de doze anos, balançando seus cabelos cortados na altura dos ombros e virando-se para o primeiro garoto.
-Fique de boca fechada, Yuriko! A gente fica de costas e não pode saber, mas eu vi. O lado do timão tem desvantagem, sim!
-Você também não pode saber, Tatsuo! - replicou a menina.
-Se a gente não trocar, eu não brinco mais.
-Não é tão ruim no lado do timão - interveio o segundo garoto. Vai ser uma chatice trocar. Vamos balançar mais rápido!
-Não quero!
-Se não quer brincar, então pode parar! Eu sei por que você não quer. Você quer ficar junto da Yuriko - disse com malícia Haruzô, que abraçava o ombro da menina chamada Yuriko.
Tatsuo saltou da carroça, agarrou-se ao timão e, ruborizado, trocou um rápido olhar com a garota, que se virou para ele no mesmo instante. E rebateu cheio de raiva, expressa nas sobrancelhas límpidas:
-Você também! É você que quer ficar com ela! É por isso que não quer trocar de lugar!
Yuriko, ruborizada, levantou-se e se afastou da carroça. Mas, revelando seu gênio forte, assumiu um ar de determinação e anunciou, inesperadamente, ao garoto com quem Tatsuo discutia:
-Eu não gosto de quem fala como Haruzô. Mas, tudo bem. Vou ficar junto com Tatsuo.
-E o que você tem com isso?! Garota que brinca de gangorra é sapeca! - disse Haruzô, encarando-a.
-Ah! Não posso?
-Não, não pode! Se chegar o dono do riquixá, uma menina não consegue fugir. E se você levar uma surra, eu não posso fazer nada.
-Quem vai bater em mim? Você sabe que o tio, dono deste riquixá, trabalha para a nossa casa?
-E que importância tem isso, de trabalhar para a sua casa? Eu também já andei de riquixá!
-É mesmo? Quando?
Ouvindo o bate-boca entre Haruzô e Yuriko, Tatsuo sentiu-se apaziguado e falou com a brandura de uma criança que não se cansa da diversão:
-Grupos não importam. Vamos, vamos brincar de novo.
-Está bem - disse Yuriko -, está bem, mas eu fico no grupo do Tatsuo.
Criança que era, Haruzô sentiu-se ferido com a provocação da menina. Na realidade, esmagado por completo.
-Mulheres, que graça têm?! Não quero ser parceiro de garotas. Ninguém quer ser parceiro de garotas! Tatsuo, vamos formar um grupo só de homens, vamos.
-Ah, tudo bem! Vamos logo, então.
Com a autoconfiança recuperada, Tatsuo aceitou a proposta de Haruzô sem hesitar.
-Então está bem - declarou Yuriko. - Não vou ficar com Tatsuo. Vou fazer o grupo com qualquer um.
-Mas não dá pra fazer um grupo só de homens- recomeçou Haruzô. - Mulheres são mais leves, fica sem graça.
Como se dissesse "olhem só como Haruzô é bobo!", Yuriko lançou as faíscas do seu olhar cheio de significado para Tatsuo; mas, como ele não retribuiu com o olhar que ela esperava, replicou:
-Não somos tão leves assim.
-Não diga bobagem! São leves, sim! Vocês, fraquinhas, são leves! - Ainda se sentindo ofendido, Haruzô volveu seu olhar irado.
-Não somos leves, não! Vamos ver agora quem é mais pesado.
-Você não quer dar o braço a torcer, Yuriko - interveio Tatsuo com serenidade. - Não seja teimosa. Está na cara que vai perder.
-Você é medroso, Tatsuo! Nós vamos ganhar, não é, meninas?
Ela olhou para as meninas. Ao todo, havia cinco meninos e cinco meninas, mas as outras eram crianças menores do que ela e os dois garotos, dois ou três anos mais novos.
-Fique dizendo desaforos! Vamos lá, Tatsuo, vamos! Vamos mostrar a elas quem é o mais pesado.
Um pouco pensativa,Yuriko estreitou os olhos com graça, mas logo abriu um sorriso ingênuo de criança e, balançando-se alegremente, disse:
-Está bem, está bem. Nós vamos ganhar, vocês vão ver... Vamos, meninas!
Ela correu e segurou-se na barra dianteira do timão. Então, rindo baixinho, segredou alguma coisa nos ouvidos das garotinhas que a cercavam.
-Não vale, não vale, Yuriko! Vocês não podem fazer assim! Não podem segurar a ponta do timão! - gritou Tatsuo, como se o céu desabasse sobre ele. - Vocês têm que segurar no estrado!
-Mas assim a gente perde! Eu não ligo de perder, mas as outras são muito pequenas.
Haruzô também reclamou.
-Se você roubar, a gente não brinca. Mulheres são safadas mesmo!
-Mas vocês são homens. E, apesar de serem garotos, desse jeito não conseguem ganhar de nós, seus fracotes!
-Ganhamos sim! Não cante vitória antes, sua sapeca!
Haruzô não perdia no bate-boca. Porém, quando começou, com os meninos segurando a traseira da carroça, seus pés se soltaram do chão com facilidade e ficaram no ar. Mais distantes do eixo central, Yuriko e as meninas não cabiam em si de contentamento
-Ganhamos! Ganhamos! Estão vendo? Homens fraquinhos, homens fraquinhos!
-Não é verdade, não perdemos, não! - vociferou Haruzô; depois, segredou algo aos meninos, e gritou de repente:
-Atenção! Um, dois e... três!
Os cincos garotos, todos ao mesmo tempo, concentraram as forças nos braços e no abdome, conseguindo descer e firmar a traseira da carroça no chão.
Yuriko recebeu uma forte pancada nas mãos que seguravam o timão e, no impacto, soltou-o, estatelando-se de costas no chão. A frente da sua yukata, de vistosas estampas, se abriu como se inflasse ao vento. Juntando rápido as barras da yukata e virando-se para o chão, ela cobriu o rosto com as mangas e chorou baixinho.
As outras garotas nada sofreram porque não soltaram as mãos.
Surpresos, todos correram para junto de Yuriko. Haruzô, espiando o rosto da menina, viu que ela levara apenas uma pequena queda, e disse:
-Chorona! Por isso que mulher é fraquinha. Chora por qualquer coisa
Ao ouvir isto, Yuriko se levantou ligeiro, sem afastar as mangas que cobriam o seu rosto, e replicou com a voz embargada, entrecortada em soluços:
-Eu vou contar tudo, tudinho pro papai... A mamãe me disse... "Não brinque com o Haruzô... de uma família como aquela..." E Tatsuo também foi horrível, horrível comigo.
Yuriko virou-se e correu até o portão sa casa de estilo semi-ocidental, onde se avistavam muitos pés de palóvnia verdejantes, e colou o rosto na porta. Seus ombros tremiam ligeiramente.
-E o que tem a sua casa?! Não passa de uma casa caipira! A gente lá em casa nem sabe quem é o seu pai.
Falando assim, Haruzô tentou encorajar as outras crianças, esforçando-se para que continuassem a brincar de gangorra, ou de outra coisa. No entanto, tanto Tatsuo como as outras crianças estavam preocupados com Yuriko, que chorava agarrada ao portão da sua casa. Então, lembraram-se das suas casas.
Com uma expressão desapontada, no entanto, Haruzô parecia adivinhar o que se passava no coração de Yuriko, que, apesar de estar encostada ao portão, não fazia menção de abri-lo. Ele correu até ela e, enquanto a garota retorcia o corpo e virava o rosto para o outro lado, quase a abraçou, e, colocando a boca no seu ouvido, sussurrou algo de modo insistente.
Por fim, Yuriko fez que sim com a cabeça, de leve, e encarou de frente os olhos de Haruzô. Sorriu um pouco encabulada e, depois, assentiu mais uma vez. Assim, Haruzô e Yuriko voltaram à carroça.
Desta vez, Tatsuo, Haruzô e Yuriko, com mais uma garotinha, formaram um grupo; e no lado oposto da carroça sentaram sei crianças menores. Tatsuo e Haruzô pousaram seus braços nos ombros de Yuriko e recomeçaram a balançar a gangorra.
Passaram-se cinco minutos, quando, de repente, grossas gotas de chuva começaram a cair, dançando nas folhas de cerejeira, salpicando e pintando o chão, tamborilando a carroça. As crianças não perceberam o céu enegrecido.
-Olhe a chuva! Que frio! Nós vamos nos molhar! - gritou Yuriko.
-Que chuva, que nada! E se molhar, qual o problema?
Pressionando com os braços os ombros da menina, que procurava levantar-se, debatendo-se como podia, os dois garotos aceleraram o ritmo do balanço da gangorra.
-Não quero, estou dizendo que não quero mais! É muito gelada! Meus pais vão ficar bravos comigo!
O temporal foi ficando mais e mais forte, tingindo as ruas ruidosamente.
-Está choven-do-o-o-o! Va-a-a-mos embora!
Com esse grito de Haruzô, as crianças saltaram da carroça e se dispersaram em rápida disparada.
-Ai, que maldade!
Deixada para trás na carroça atingida pela chuva incessante, Yuriko gritou."