Gávea: a Pedra e Penina

A narrativa que se segue foi inspirada na vida de um casal que conheci no Rio de Janeiro, talvez uns trinta ou trinta e cinco anos atrás, na época em que lá morei e trabalhei na PUC onde, por quase uma década, lecionei no curso de Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo.

Não sei se ainda estão vivos, porque, sem um motivo específico, perdemos o contato aproximadamente dez anos depois que retornei à Ribeirão Preto, cidade em que nasci e moro até hoje.

A história será contada com total fidelidade aos acontecimentos que presenciei e aos que chegaram ao meu conhecimento por meio das inúmeras conversas que tive com Luiz Tomás e sua esposa Penina, assim se chamavam os meus grandes amigos da Barra da Tijuca.

Durante toda a minha temporada na Cidade Maravilhosa, residi na Rua Osório de Almeida na Urca. Lá conheci Tomás num final de tarde de um sábado de junho. Eu estava fazendo a minha habitual caminhada na pista Cláudio Coutinho, quando de repente pisei em falso e com um grito de dor “desabei”. Não sei de onde surgiram, mas quando abri os olhos, ao meu lado, agachados tentando me ajudar, vi dois homens:

— Calma, amigo! Deve ter torcido o tornozelo. — disse o mais velho.

Reparei que tanto o jovem quanto o sujeito que aparentava uns sessenta anos estavam portando mochilas e usavam aqueles trajes que as pessoas utilizam para trekking em montanhas. A aparência deles era de cansaço. Mais tarde fiquei sabendo que, cerca de quinze minutos antes de me socorrerem, eles tinham terminado de escalar o Pão de Açúcar, uma aventura de nove horas de atividades na pedra.

Os dois escaladores me ajudaram a caminhar até o estacionamento e de lá, no carro do sujeito mais velho, me deixaram em casa com recomendações de pôr gelo no tornozelo e ficar de repouso.

Foi assim que começou a nossa amizade, primeiro com Tom, como era chamado e conhecido Luiz Tomás e depois com Nina, apelido carinhoso de Penina.

Agora, vamos à história de “Tom e Nina”, o casal que amava as montanhas.

***

Naquela segunda-feira de maio, da varanda do apartamento do décimo terceiro andar onde morava o casal Tomás e Penina, já se avistava o limbo inferior do Sol sobre o horizonte do mar. Nina estava em pé no canto esquerdo, próximo à murada, e olhava fixamente à Pedra da Gávea com um semblante de cansaço e de felicidade. Tom estava sentado no chão retirando o material da mochila e admirando à sua frente, do outro lado da rua, a Praia do Pepê. Ambos usavam calças do tipo cargo, camiseta manga longa com proteção solar e calçavam botas de trekking. Nada conversavam. De quando em quando, cada um bebia um pouco do isotônico que estava em cima da mesa de vidro ao lado de um sofá de vime.

A cena acima era bastante comum na vida do casal, pois há muito tempo eles praticavam esportes de aventuras em montanhas. Realizavam trekking no Brasil e nos Andes. Mas naquela segunda-feira, no chão da varanda havia, além do material utilizado normalmente nas caminhadas, itens específicos para escaladas, tais como: cadeirinha baudrier, mosquetões, freio ATC, corda dinâmica e cordeletes.

Ao terminar de retirar o material da mochila, Tom se levantou, aproximou-se da esposa, abraçou-a por trás e, apontado com os olhos o cume da Pedra da Gávea, disse:

— Você foi maravilhosa, querida. Agora deixou de ser somente uma “trilheira”. Bem-vinda ao mundo dos “escaladores!“.

— Tom, sem exageros! Por favor, apenas subi a Gávea. E por muita insistência sua. Eu já não aguentava mais ouvir as suas ladainhas sobre a “Carrasqueira”.

Para facilitar a compreensão desta narrativa sem que o caro leitor necessite consultar o Google, apresento de forma resumida o seguinte: a Pedra da Gávea está situada no Parque Nacional da Tijuca e é considerada um dos pontos icônicos da paisagem “carioca”. Com sua silhueta inconfundível de 842 metros de altitude e sua posição, alinhada com a orla, garante um dos melhores ângulos para que o visitante se apaixone ainda mais pelo Rio de Janeiro.

A trilha que dá acesso ao cume é considerada como a mais difícil do parque, com um trecho de escalada íngreme, a famosa “Carrasqueira”. Um paredão de pedra, quase todo liso, de 40 metros de altura, com uma inclinação de 80 graus. E por ficar numa área descampada causa a impressão de que a altura é bem maior. Muita gente “trava” naquele trecho.

Por causa da Carrasqueira, a Pedra da Gávea tem a triste estatística de ser a montanha com mais acidentes do país, fruto de uma série de fatores que não são levados em consideração na prática do esporte.

Depois dessa pequena explanação sobre a principal dificuldade para se alcançar o topo da Gávea, vamos conhecer um pouquinho desses protagonistas, Tom e Nina, e o dia a dia vivido por eles antes, durante e depois desta aventura...

***

Alguns meses Antes...

Quando estavam caminhando ou correndo na areia da praia, durante os treinos regulares daquele ano, sempre que surgia no visual a bela montanha da Gávea, Tom apontava-a com a cabeça e com a voz cansada repetia duas ou três vezes:

— Querida, adoraria te levar lá em cima!

A resposta não mudava e também era dada com a voz cansada e com o mesmo número de repetições:

— Querido, não sou um “calango”! Prefiro caminhar nas montanhas.

Luiz Tomás entendia a resposta da esposa, não como um assunto encerrado, não como uma decisão final da qual não se pode recorrer, mas sim como: “Ah, quem sabe? Talvez um dia!”.

Nina, por conhecer muito bem o marido e ter plena consciência de sua persistência, também tinha certeza que ele, enquanto vivesse, não desistiria do convite.

Na época em que conheci o casal, Tom tinha sessenta e dois anos, três anos mais velho que a esposa. Era um coroa bastante bonito, de estatura alta, barba rala e grisalha que lhe dava o aspecto de um homem intelectual, o que, a meu ver, era. Lia muito e também escrevia. Tinha alguns livros publicados, viajava regularmente para o exterior. Era fluente em inglês e falava razoavelmente bem ucraniano, pois havia morado e trabalhado em Kiev por quase cinco anos. Um esportista nato, além de escalar, também praticava corrida de montanhas e meia maratona. Rara foram as vezes que o vi trajando algo diferente de calça jeans e camiseta preta. Costumava andar de botas de trekking ou sandália do tipo “papete”.

Nina, apesar de quase sexagenária, parecia uma balzaquiana. Também de estatura alta e magra. Mantinha o cabelo curto e na tonalidade original escura com algumas manchas grisalhas, naturais da idade. O rosto fino com a pele bem cuidada dava um charme especial, tornando-a uma linda senhora. Diferente do marido estava sempre elegantemente vestida. Não era dedicada ao esporte na adolescência, somente aos cinquenta anos, quando deixou de lecionar e se aposentou, passou a treinar sistematicamente e acompanhar Tom nas caminhadas de montanhas no Brasil e no exterior.

Num fim de tarde, de um domingo de abril, quando Tom estava chegando à varanda para sentar-se ao lado da esposa, ouviu o que ela dizia ao telefone:

— Estou pensando em fazer a trilha da Gávea com seu pai. O que você acha?

Surpreso com o que acabara de escutar e, sem refletir sobre o assunto e por pura intuição, adotou uma atitude de quem nada tinha ouvido. Então, falando para si mesmo em voz alta, ele disse:

— Putz! Esqueci o celular na mesa da cozinha! Já volto, querida.

— O quê? — ocultando o microfone do celular com a mão direita, respondeu a esposa, também em voz alta, com um semblante de espanto ao ver o marido.

Logo em seguida, Tom voltou, sentou-se ao lado da esposa e nada comentou sobre a conversa dela ao telefone. Depois de poucos minutos de papo sobre os compromissos da semana, Nina disse que havia ligado para saber se o filho e a esposa gostariam de marcar um cinema para terça ou quinta-feira.

E ali mesmo na varanda, a esposa serviu o tradicional lanche de domingo: suco de abacaxi com hortelã, queijo cottage, patê de berinjela, torrada e cream cracker. Durante todo aquele final de tarde, Tom ficou na expectativa de Nina tocar no assunto da Gávea. Mas nada foi dito.

As respostas de Nina, aos convites rotineiros feitos durante as corridas das semanas seguintes, não mudavam. Tom estava quase convencido de que tinha escutado o que queria escutar e não o que a esposa havia dito ao filho naquele domingo.

Até que certa manhã, de um sábado do final de maio, em que os termômetros digitais da orla da praia indicavam dezesseis graus, e os dois se preparavam para iniciar mais um treino, de repente Nina apontando para o cume da Gávea perguntou:

— Querido, adoraria ir lá em cima! Quando você me levará?

— O quê? Não acredito! Não acredito no que estou ouvindo!

Depois de alguns momentos de euforia, abraços e beijos, eles combinaram que fariam a trilha na primeira segunda-feira de junho.

Tom tinha, então, cerca de dez dias para explicar à esposa o funcionamento básico de alguns equipamentos de escalada e praticar, de forma simulada, o uso desses acessórios.

E assim aconteceu, a varanda do apartamento serviu de campo de treinamento para o manuseio e uso simulado dos itens essenciais de segurança utilizados em uma escalada.

Na véspera do dia programado para realizarem a trilha, isto é, na tarde de um domingo, eles fizeram o último adestramento de manuseio dos acessórios e, em seguida, foram passear no calçadão da praia e apreciar a bela silhueta da Pedra da Gávea cuja meseta horizontal e semelhança com um rosto humano alimentam as mais diversas lendas, algumas relacionadas aos fenícios, outras com extraterrestres.

***

No dia da Aventura...

Faltavam alguns minutos para as sete da manhã, quando Tom e Nina chegaram ao início da trilha. O portão de acesso estava fechado, mas não trancado com cadeado. O guarda não havia chegado ao posto de controle. Eles aguardaram até às sete horas em ponto. Ninguém apareceu. Como essa situação já havia acontecido diversas outras vezes, Tom arrancou uma folha do seu caderninho de anotações, registrou seus dados e o da esposa e a deixou sobre a mesa que estava no canto da cabine. E iniciaram a caminhada.

O dia estava lindo. O azul do céu tornava deslumbrante o visual da Gávea. Não fazia calor nem frio, o vento fraco ajudava a manter a temperatura agradável.

Logo no começo da trilha, um pouco antes de chegarem à “Pedra do Navio”, eles foram alcançados por um grupo de dois homens e uma mulher. Todos aparentando não mais que trinta cinco anos. Eram turistas argentinos que estavam visitando o Rio e conhecendo o Parque da Tijuca.

Após os cumprimentos cordiais, uma rápida conversa sobre os pontos turísticos da cidade e informações sobre a trilha, Tom percebeu que os argentinos não tinham experiência em trekking e também não estavam cientes das dificuldades que viriam à frente, principalmente a subida da Carrasqueira.

Os turistas seguiram na frente, Tom e Penina continuaram no mesmo ritmo. Passou uma hora e mais outra, eles caminhavam conversando, ultrapassando os obstáculos sem grandes dificuldades.

Quando chegaram à base da Carrasqueira, a esposa, do jeito que estava, com boné, uma pequena mochila e luvas, se aproximou do paredão e, ainda ofegante da caminhada em trechos íngremes, permaneceu ali em pé. Não tirava os olhos do bloco de pedra, quase na vertical, com cerca de quarenta metros de altura, que estava à sua frente.

Ela parecia que estava hipnotizada.

O marido retirou o boné, colocou a mochila no chão e sentou-se em uma pedra, distante uns dois metros de onde estava Nina. E ali ficou, por alguns instantes, apreciando a vista das praias de São Conrado e da Barra da Tijuca.

Um pouco mais afastado do casal, próximo à placa de advertência sobre o perigo de subir ou descer aquele trecho sem equipamento de segurança, estavam os argentinos apreciando e fotografando o lindo visual do Rio. Para eles, a trilha terminava ali. E realmente terminou, dali eles voltaram.

Tom, que tinha bastante experiência na trilha, sabia que Nina, como diversas outras pessoas ao chegarem naquele ponto, estava no dilema: “continuar e escalar a Carrasqueira, com o risco de entrar em pânico e sofrer um acidente. Ou desistir e ter que conviver com o sentimento de derrota, de fracasso”.

E ele tinha razão.

Penina, que estava de frente para Carrasqueira com as palmas das mãos tocando na pedra, pensava: “Seguir ou desistir? Tom sempre repete pra si mesmo que desistir é para sempre, mas que as dificuldades e os obstáculos são momentâneos. Preciso pensar apenas em mim. Vou em frente ou volto daqui como acontece com a maioria das pessoas?”

Passaram seis ou sete minutos, Nina nada dizia. E Tom nada perguntava, continuava sentado no mesmo local admirando a paisagem e com o equipamento de segurança dentro da mochila. Ele não queria pressionar uma decisão da esposa.

— Aonde vai? — perguntou Tom quando Nina, de repente, retirou a mochila e fez menção de se movimentar.

Ela parou e com um leve sorriso no rosto respondeu:

— Para o topo da Gávea.

— Ou você está com medo e quer desistir? — questionou a esposa em tom de brincadeira.

Tom refletiu um pouco olhando para o paredão. Em seguida, retirando o material de escalada da mochila, disse:

— Por que não iríamos? Vamos em frente! Ótima decisão, querida. Avançaremos com total segurança.

O marido checou, um a um, os acessórios que utilizaria na subida. Vestiu e ajudou a esposa a vestir a cadeirinha baudrier. Desenrolou a corda e a fixou à cintura dando um nó “oito pela ponta”.

Antes de iniciarem a escalada, Tom fez um briefing para recordar os detalhes da subida. Ele ascenderia livre a Carrasqueira, prenderia a corda nos dois grampos do topo do paredão, de modo a deixá-la fixa pelo meio com as extremidades lançadas para baixo. E desceria de rapel. No momento seguinte, com a fita solteira “clipada” no baudrier e na corda, por meio do cordolete com o nó “prusik”, ele e a esposa subiriam aquele trecho de forma segura.

E assim estava acontecendo, Tom e Nina ascendiam no paredão. Ele seguia na frente. Abaixo, não mais do que uns dois metros, vinha a esposa. O vento não era muito forte, mas incomodava ao tocar no rosto. Penina cumpria rigorosamente as instruções do esposo e seguia sem estresse.

Tudo ia bem, até que de repente Nina, com uma expressão de medo no rosto, gritou:

— Meu pé está preso na rocha! Não consigo subir!

— Calma, querida! Você está segura à corda. Fique calma, mantenha o rosto voltado para o paredão, não olhe pra baixo.

Penina, no momento de ascender um lance na pedra, encaixou o pé esquerdo em uma fenda e não conseguia soltá-lo, pois a parte superior da fissura era bem estreita e ela estava puxando a perna pra cima, prendendo cada vez mais o pé. Seria necessário voltar, ou seja, descer um pouco e retirar o pé daquela fresta na mesma posição em que ele entrou.

Na visão de um escalador experiente, a situação não era crítica. Mas para ela que estava, pela primeira vez na vida com o pé preso, pendurada em um penhasco, numa área descampada, tendo a impressão de que a altura não era de trinta ou quarenta metros, mas sim de seiscentos, era uma situação bastante crítica, quase o fim de tudo.

Tom sabia que precisava agir rápido e com segurança, para evitar que a esposa entrasse em pânico. Pelas suas experiências anteriores, num momento como esse, era fundamental manter uma conversa com a pessoa que está em dificuldades. Então, ele, demonstrando tranquilidade, não parava de falar.

— Nina, está me ouvindo?

— Sim.

— Preste atenção. Já fiquei, algumas vezes, entalado e também com o pé preso em fendas. Não é uma situação crítica. Você precisa largar a corda, folgar o prusik e descer para o mesmo local que estava quando enfiou o pé na fissura. Entendeu?

— Entendi, mas estou com medo. Não consigo puxar o pé e não tenho coragem de soltar as mãos da corda.

— Você está segura. Lembra? Mostrei-lhe isso diversas vezes nos treinos na varanda. O escalador está sempre seguro pela fita, ele pode a qualquer momento ficar com as mãos livres. Você fez isso.

— Caramba, Tom! Que comparação absurda! Na varanda, eu estava com os dois pés no chão. Aqui é muito diferente. Não consigo me mexer e não enxergo o chão.

— Ok, querida. Descerei de rapel para lhe ajudar.

— Tenho certeza que daqui a pouco estaremos no cume. Você está indo muito bem.

Tom alcançou a esposa, abraçou-a e, depois de folgar o prusik que a mantinha segura à corda, empurrou o nó o mais para baixo que pôde e inclinando o corpo ajudou-a descer uns dois metros. O pé saiu da fenda facilmente e sem lesão.

Em seguida, pouco a pouco, com uma crescente sensação de segurança, por estar sendo guiada de perto por Tom, Nina voltou ascender no paredão.

Cerca de quarenta minutos depois, os dois estavam sentados numa pedra, no topo da Carrasqueira. Enquanto enrolava a corda e guardava os acessórios da escalda, Tom elogiava a esposa e dizia que ela havia vencido muito bem a Carrasqueira.

Nina, um pouco mais tranquila, olhava para o horizonte onde o céu tocava suavemente o mar e balbuciava:

— Achei que fosse o meu fim. Pensei na situação vivida pelo montanhista Aron Ralston que, quando trilhava pelos cânions de Utah, nos Estados Unidos, ficou com o braço preso por uma pedra após cair dentro de uma fenda. Sozinho e isolado do mundo, ele lutou pela sobrevivência por cinco dias. Essa aventura foi narrada no livro “127 Horas”. Lembra, querido?

E Penina, que não ouvia os elogios do marido, continuava sussurrando:

— O espaço abaixo de mim era horripilante. Eu, presa na aresta, via o chão muito distante. Quase entrei em pânico. Não paro de pensar que na volta teremos que descer este precipício.

— Querida, posso imaginar o susto e a dificuldade que você teve que enfrentar. — disse Tom carinhosamente, enquanto segurava a mão da esposa e a beijava suavemente nos lábios.

— Agora vamos continuar! O cume está nos esperando!

— Sim o cume! É claro, vamos!

— Quanto tempo de caminhada? — perguntou Penina já de pé e pronta para acompanhar o marido.

— Não, não falta muito. Uma hora e meia, não mais do que isso.

Depois de vencerem mais dois pequenos trechos, considerados difíceis para quem não pratica escalada, e caminharem aproximadamente por duas horas, eles se viram frente a frente com um platô rochoso que proporcionava uma vista fabulosa do litoral do Rio de Janeiro.

— Vá à frente, querida. Vou tirar algumas fotos sua chegando ao cume.

Lá, no topo, permaneceram por um bom tempo curtindo o visual deslumbrante, não só das praias cariocas, como também de alguns bairros da zona sul e oeste do Rio de Janeiro. Aproveitaram o silêncio e admiraram o imenso vazio da visão de quem está sentido o vento no rosto a quase mil metros acima do mar.

Era o momento mais desejado por Nina que tantas vezes, da varanda de seu apartamento, sonhara com aquele dia.

Depois de uns trinta minutos, que o casal desfrutava sem companhia a sumidade da Pedra da Gávea, chegou um grupo de “trilheiros” formado por três brasileiros e um canadense.

Durante o papo informal e as apresentações, Tom e Nina ficaram sabendo que os brasileiros, um casal de namorados, com idade entre trinta e trinta cinco anos, e uma moça bem mais nova, talvez vinte anos, não mais que isso, eram descendentes de imigrantes italianos e residiam em Porto Alegre.

Tom, que estava acomodado bem próximo da esposa, olhando para o infinito e com a voz baixa disse:

— Acho que conheço esse gringo de algum lugar.

— Realmente, ele não é estranho. — ela respondeu no mesmo tom de voz, sem virar o rosto para o marido.

O canadense, que se chamava Calvin, um sujeito simpático, era de Toronto. Estava casado com uma brasileira e há quatro anos morava com a esposa em Jacarepaguá. A mulher era professora e lecionava inglês em um colégio estadual próximo de onde residiam. Ele, apesar da formação em engenharia elétrica, estava desempregado. Vendia doces caseiros em um quiosque no Terminal Alvorada, sendo o destaque um bolo típico de seu país que ele mesmo preparava.

Quando Calvin falou do quiosque e do bolo canadense, Tom e Penina, quase que ao mesmo tempo, o perguntaram se ele não vendia seus produtos aos domingos na Praça do “O”, ao lado da Praia do Pepê.

Era de lá que eles conheciam de vista o canadense dos doces caseiros.

Logo em seguida, a conversa foi naturalmente direcionada para aventuras em montanhas. Falaram do Vale do Pati na Chapada da Diamantina, de Aparados da Serrada, dos Picos da Bandeira e do Cristal no Parque do Caparaó, das travessias da Serra Negra em Itatiaia e da Serra dos Órgãos de Petrópolis para Teresópolis.

A despeito das experiências em trekking e terem buscado informações na internet sobre a trilha da Gávea, os quatro trilheiros se surpreenderam com as dificuldades da Carrasqueira. Disseram que quando já tinham decidido por voltar, dois rapazes que estavam descendo de rapel se dispuseram a ajudá-los no paredão com apoio de uma corda, caso cada um aceitasse pagar cem reais. E, para não perder a oportunidade, eles concordaram.

Enquanto tiravam fotos, a jovem do grupo se aproximou de Penina e com a voz baixa, quase em sussurro, perguntou:

— A senhora sabe se há outro caminho para descer, sem passar pelo paredão vertical?

— Acho que não, mas vou perguntar ao meu marido. Eu também adoraria se tivéssemos uma via alternativa¬. — respondeu Penina.

Ao ser indagado sobre descer à Gávea sem passar pela Carrasqueira, Tom, que estava arrumando o material para o rapel e retirando a corda da mochila, disse que não conhecia nenhuma via alternativa.

—Não, não há. Se existe eu desconheço. Sempre desci de rapel.

Um pouco antes de iniciarem a descida, Calvin, que havia escutado a conversa sobre as opções da volta e visto Tom preparando a corda, achegou-se ao casal e iniciou o papo sobre os doces que vendia, disse que se lembrava deles como bons clientes. Mas poucos minutos depois chegou ao assunto que, naquele momento, mais interessava às pessoas que lá se encontravam, ou seja, a descida na Carrasqueira.

— Tomás, como já foi dito por um dos meus amigos do sul, chegamos aqui porque aceitamos a proposta de ajuda de dois jovens. Agora, nós gostaríamos que você aceitasse a nossa proposta de, pelo mesmo preço, nos ajudar a descer no paredão. Você aceita? — perguntou o canadense em um português compreensível, apesar dos erros de concordâncias verbais e de gênero.

Antes de responder, Tom, que estava sob o olhar dos quatro trilheiros, virou o rosto na direção de Nina e, sem nada pronunciar, usando a expressão facial perguntou a opinião da esposa. Ela, também sem dizer uma palavra, sinalizou que ele deveria ajudar.

Aproveitando que estava no centro das atenções dos quatro turistas e também da esposa, o meu amigo escalador não respondeu diretamente ao vendedor de bolos, mas iniciou uma rápida explanação de como seria a descida do paredão vertical utilizando a técnica de “rapel assistido”.

— Atenção, pessoal! Seguiremos juntos e, se não houver objeções, eu conduzirei a descida. Todos entenderam como faremos o rapel? Se alguém ainda tiver dúvidas, posso repetir os procedimentos. Primeiro, farei uma descida sozinho para que vocês possam ver como deve ser feita a aproximação para o ponto de início do rapel. Como todos sabem, desescalar uma montanha muitas vezes causa mais tensão do que escalar. E o risco na Carrasqueira é bem maior na descida do que na subida.

— Por mim, tudo bem. O senhor poderá ser o guia. — disse a jovem do grupo.

O canadense e o casal de namorados apenas levantaram as mãos sinalizando que concordavam.

— Alguém, por acaso, já praticou rapel? — perguntou Tom, já falando como líder dos cinco integrantes do grupo, incluindo a sua esposa.

— Tudo bem! Sem problemas. Sempre há uma primeira vez. Então, descerei a minha esposa e depois vocês. Recomendo que, quando estivermos chegando próximo ao paredão, se posicionem em fila indiana na ordem que farão o rapel. Ok?

Sem dúvida, Luiz Tomás gostava de liderar atividades em montanhas e se comprazia com a consciência de que ele não sabia se manifestar se não fosse por meio do exemplo.

Depois de tudo combinado, tiraram mais algumas fotos e iniciaram o caminho de volta.

A descida de rapel, conduzida por Tom, e todo o percurso de retorno até o início da trilha foram realizados sem contratempos.

No estacionamento do parque, eles trocaram informações de e-mails e de celulares. E quando se despediam com beijos e abraços como se amigos fossem de longa data, de repente, o canadense, um pouco sem graça, pegou a carteira na mochila e fez menção de pagar os quatrocentos reais que ele havia proposto.

Tom, com um sorriso no rosto e levando para o lado da brincadeira, disse:

— Calvin, como diz o comercial de tevê: “Ajudar o companheiro na montanha não tem preço!”.

Os quatro trilheiros, mais uma vez, agradeceram o apoio de Tomás e seguiram em uma van de turismo que havia acabado de chegar.

O dia estava terminando, mas ainda se enxergava uns poucos raios solares na montanha. Não fazia frio nem calor. A trilha tinha ficado para trás. Tom e Nina, ali no estacionamento, antes de entrarem no carro, se abraçaram e se beijaram como se fossem recém-casados curtindo a lua de mel.

Retornaram calados, nada comentaram da aventura. O silêncio entre Tom e Nina que era confortável e natural em seus momentos de intimidades, também existia quando terminavam uma aventura. O silêncio não os impedia de se comunicarem por meio dos olhares carinhosos e toques com as mãos.

Ao entraram no apartamento, eles foram direto para a varanda. Esse era o costume havia muito tempo, desde os primeiros trekkings. Lá continuaram calados por um bom tempo. Nina dirigiu-se ao canto esquerdo, próximo da murada, e, com um semblante de cansaço e felicidade, ficou admirando a Pedra Gávea e pensando na Carrasqueira. Tom sentou no chão e, enquanto retirava o material da mochila, pensava na próxima escalada...

***

Depois da Gávea...

Cerca de quatro ou cinco meses, após esta aventura de Penina na Carrasqueira, por motivos profissionais, retornei à Ribeirão Preto.

Quando nos encontramos para um jantar de despedida, numa noite de quinta-feira, no “Bar Urca“ onde, de vez em quando, eu me dava o direito de saborear o “Bacalhau ao Zé do Pipo”, Tom, com um leve sorriso no rosto e buscando evitar um ambiente melancólico comuns nessas ocasiões, disse-me que Nina tinha concluído o Curso Básico de Escalada homologado pela Federação de Esportes de Montanha do Estado do Rio de Janeiro e que eles estavam treinando e escalando juntos.

— Caro Professor. — assim ele me chamava desde que nos conhecemos.

— Você sabia que Nina deixou de ser “trilheira?” Agora é “escaladora”!

Ele disse aquilo enquanto abraçava e beijava a esposa que estava sentada ao seu lado.

— Putz! Não, não acredito que você tenha perdido o medo de altura. — eu disse, enquanto levantava e dirigia-me para cumprimentá-la com um abraço e um beijo na testa.

Ao longo dos anos que mantivemos contato, foram muitos os e-mails que recebi dos meus amigos cariocas contando suas aventuras nos picos de montanhas no Brasil e nos Andes.

Realmente Tom e Nina, no meu jeito de ver a vida, formavam um casal exemplar. Nos nossos primeiros contatos, nada percebi que os distinguia dos demais cônjuges que eu conhecia. Foi com o decorrer do tempo que passei a admirá-los profundamente e, com certa frequência, citá-los nas minhas conversas com amigos e colegas.

Eles chegavam frequentemente sem discussão às decisões que afetavam suas vidas. Quando discutiam sobre as responsabilidades do dia a dia ou de suas aventuras “outdoor", ajustavam-se como gatos enrolados e acomodados diante de uma lareira.

Entre eles havia paixão, afeto, cumplicidade, amizade, dedicação, amor e muito mais.

Tom e Nina, cada um com as suas peculiaridades, virtudes e defeitos, se complementavam para viver, como o oxigênio e o hidrogênio para a água existir.

Estavam juntos na maioria de suas atividades, desde as tarefas diárias de preparar uma refeição ou uma faxina no “quarto da bagunça”, até num momento difícil de uma escalada ou no texto final de um livro escrito por ele e revisado por ela.

E quando se aborreciam não se ofendiam mutuamente.

Faz mais de dez anos que recebi o último e-mail deles. Do mesmo modo que alguns trechos de um livro ou de uma poesia ficam gravados para sempre em nossas memórias, do último texto que recebi de Tom e Nina lembro-me de cada linha.

Na época, ele deveria estar com setenta e cinco anos e ela setenta e dois. O e-mail foi enviado de um hotel de Quito, no Equador, onde estavam hospedados para aclimatação e treinos finais para mais uma escalada, talvez a última, no Andes.

Assim estava escrito:

Caro Professor,

Como vai? Nós, Nina e eu, estamos bem.

Da última vez que nos vimos aí em Ribeirão Preto, uns dois anos atrás, você estava fazendo dieta, pois queria emagrecer pelo menos cinco quilos. Então, tornou-se um “viciado“ em saladas, legumes e frango?

Estamos no Equador, nos treinos finais para mais uma aventura nos Andes, hospedados no hotel Quito, na Avenida Federico Gonzalez Suarez.

Desta vez subiremos o Vulcão Ilinizas, enfrentaremos trekking em altitude e alguns trechos de escaladas.

Nós combinamos que, depois de mais de uma década escalando nos Andes, nos despediremos da Cordilheira no cume do Ilinizas. E no regresso da expedição, se tudo der certo, passaremos em um mirante aqui próximo do hotel, cuja grade de proteção, à semelhança do que aconteceu com uma ponte em Paris e também com monumentos de outras cidades, tornou-se um símbolo para os “cadeados do amor”, e lá deixaremos os cadeados que usamos nas viagens, para registrar e selar o nosso amor pelas montanhas andinas.

Daqui a quinze ou vinte dias estaremos no Rio de Janeiro. E com calma, mas ainda este ano, iniciaremos os preparativos logísticos e administrativos para o cume do Kilimanjaro, na Tanzânia. Será a nossa primeira escalada no Continente Africano.

Pra sempre vamos escalar, talvez até o mundo acabar ou...!

Um abraço fraterno dos amigos,

Tom e Nina – “ToNina"

Muitas foram as tentativas que fiz para obter notícias dos meus amigos depois desse relato por e-mail, mas nada consegui.

Eu tinha certeza que, há muito tempo, eles haviam alugado o apartamento da Barra e passaram a residir no chalé que possuíam na Serra dos Órgãos, no Rio, mas eu desconhecia o endereço.

Sem sucesso nas minhas buscas por contatos telefônicos e internet, mas não querendo aceitar que eles tinham me esquecido, no ano passado viajei para o Equador e hospedei-me no hotel Quito, o mesmo que eles sempre se hospedavam.

Na mesma tarde da minha chegada à Quito, após obter informações sobre o mirante dos namorados, para lá me dirigi.

A grade frontal do monumento tinha talvez quatro ou cinco mil “cadeados do amor”. Pacientemente, segui uma estratégia para olhar um por um.

Não mais do que uma hora e meia depois de ter iniciado a procura, encontrei o que tanto desejava encontrar: dois cadeados presos entre si e fixados à grade. Neles estavam gravados: “ToNina”.

Desde que voltei do Equador, vez por outra, pesquiso nos sites de agências de viagens especializadas em expedições nas montanhas da Tanzânia, na esperança de encontrar algum registro de Luiz Tomás e Penina.

Se eles seguiram para África, não sei! Mas não acredito que tenham tido o mesmo destino dos personagens Harry, um escritor amante das montanhas, e sua esposa Helen do livro “As Neves do Kilimanjaro”, de Ernest Hemingway, que Tom não se cansava de citar nos nossos papos.

As semanas, os meses, os anos passam. A vida segue.

E eu continuo, vez por outra, buscando informações do casal que conheci no Rio de Janeiro há trinta ou trinta e cinco anos.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 16/04/2017
Reeditado em 18/01/2018
Código do texto: T5972286
Classificação de conteúdo: seguro
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