A Lenda de Zaffyra: O Espírito do Ermo
A Lenda de Zaffyra: O Espírito do Ermo
Era uma tarde chuvosa como de costume. O céu desabou assim que as nuvens pesadas haviam chegado e enegrecido o horizonte transformando-o numa mistura de branco e cinza. Os pássaros voavam para os ninhos e os animais pequenos refugiavam-se em seus antros. E como uma dança sutil a precipitação veio caindo anunciada por trovoadas estrondosas, baixando a poeira da terra e pesando as gotas nas folhas das árvores e plantas. A paisagem da Floresta do Ermo outrora silenciosa e tranquila converteu-se num ambiente caótico com terreno incerto, mas eu estava determinado a encontrar Tobias e Leco nem que precisasse arrancar toda as árvores daquele lugar. Recusava-me a pensar em voltar pra casa sem o menino.
Tobias era uma criança animada como qualquer outra. Gostava de me acompanhar até a floresta no intuito de colher ervas para sua avó e brincar com o Callejero (vira-lata) Leco perto do riacho enquanto eu cortava lenha e material para reforma. O inverno seria rigoroso naquele ano e precisávamos nos aquecer. Como Marcos e Jonas não puderam vir tive mais trabalho e por isso perdi o garoto de vista ainda à pouco. Eu lhe disse para não ir muito longe, pois o tempo costumava pregar peças, mas...sabe como são as crianças.
Ouvi latidos similares aos de Leco próximo dali e corri. Para meu alívio avistei o garoto abaixo de uma ribanceira perto do rio que estava com suas correntezas intensas. Tobias estava ao que parecia resgatando Leco do rio pois estava próximo à margem segurando o animal molhado no colo quando eu o gritei "Tobias! Rápido moleque, suba aqui a chuva vai apertar!". E assim o menino começou a subir desajeitado. Mas o cão começou a latir e se debater muito escapando de seus braços miúdos.
Foi quando de repente algo súbito esbarrou em mim e eu caí ribanceira à baixo. Fiquei atordoado ao chegar lá embaixo, mas pude ouvir Tobias me gritando e correndo ao meu encontro desesperado quando algo o pasmou e pulou por cima de mm tapando minha visão que se embaçou com a lama. De relance eu vi algo que não era humano. Muito longe disto. Uma espécie de besta corpulenta e quadrúpede escarlate e opunha entre mim e Tobias. Sua carne estava carcomida e repleta de ferida e pústulas que emanavam um forte cheiro de carniça. Suas patas dianteiras possuíam garras enormes que mesmo em meio àquela chuva era visível devido seu tamanho. A pelagem era rala e possuía uma longa calda com um esporão na ponta maior que minha perna. Sua presença sufocava o ar ao redor e me fazia tremer os ossos com o peso de seus passos. Aquilo me trazia agonia e seu desejo por morticínio era bestial.
Tal criatura só podia ter brotado dos confins do abismo! E quando bem menos pude perceber ela avançou rumo à Tobias para devorá-lo. Eu não podia deixar isso acontecer e ainda diante meus olhos e mesmo temeroso pus-me de pé, peguei meu facão (já que meu machado havia deixado na clareira) e uma pedra e a arremessei contra a besta que voltou sua atenção a mim e om sua calda golpeou-me fortemente como um coice de cavalo me atirando numa árvore com tanta força que quase desfaleci. O facão se esvaiu de mim e num rápido movimento a besta já estava bem na minha frente.
Estava tudo turvo e só me lembro de seis olhos amarelos e sua boca babando nodoas entre as presas enormes e ao longe ouvia Tobias vociferar meu nome inutilmente. Vi ali meu fim diante daquele monstro e me partia o coração imaginar o pranto de minha mulher e filha ao saber do ocorrido e pensar em Tobias. A besta sutilmente se aproximava de meu corpo inerte e parecia caçoar de mim cruelmente, exprimindo guinchos que mais pareciam risos macabros. Eu seria estraçalhado como um cervo. Ali sabia que a qualquer movimento brusco só estaria adiantando meu fim, mas era a única coisa que poderia fazer para tentar evitar uma tragédia maior.
Reuni o pouco de fôlego que me restava e gritei a plenos pulmões para que o garoto fugisse o mais longe dali e fechei meus olhos esperando o bote. Então abruptamente ela avançou num atassalhar direto em minha cabeça quando de repente ouvi um zunido por cima de mim e algo acertou a criatura que pulou para trás e soltou um rugido mais forte que os trovões, logo mais cinco zunidos alvejaram a criatura que se contorcia de dor, mas resistia e loucamente avançou para cima de mim novamente, quando de repente alguém caiu bem na minha frente. Um manto verde escuro lhe descia no encalço encobrindo tal figura e seu arco curto, alvo como o tronco de uma castanheira. E golpeando o chão com uma espécie de cajado, fez uma forte onda ou moinho de vento lhe envolver arrastando-me para trás e impelindo a besta violentamente nas árvores, mas a mesma se recompôs e logo voltou a avançar, mas dessa vez no desavisado Tobias que ficou em choque e não se movia. Foi quando a figura estendeu uma das mãos e deu um comando. Logo as gotas de chuva ao redor de sua mão pararam em pleno ar e solidificaram em uma espécie de agulhas congeladas e com um giro só a figura as lançou contra o demônio ferindo-o em sua face diretamente aturdindo-o e evitando sua investida.
Não sabia quem era aquele ser, mas sua presença ali fazia com que a natureza e suas forças sentissem seu impacto. Logo ela se pôs em pé, armou-se com seu arco e encarava o demônio que igualmente lhe afrontava como se já houvessem digladiado em outras épocas.
Naquele dia meus olhos presenciariam um embate além do natural e tal evento ficaria ressoando em minha memória enquanto eu me conhecesse por gente...
Foi então que a besta começou a circundar em torno arrastando suas mortais garras no lamaçal e a figura, ainda agachada só mexia seu pescoço acompanhando os movimentos impaciente da criatura. Nesse momento um silencio se instaurou entre ambas as partes onde só se ouvia o som da chuva caindo e dos trovões mesclados com as lentas e pesadas passadas do monstro e minha respiração entre cortada e aflita.
Então o primeiro movimento: A besta avançou ferozmente com um bote pra cima da figura que rápida e habilmente se desviou com um rolamento, mas o monstro não ficou parado e rapidamente desferiu uma patada, contudo acertando o vento pois a figura deu com o cajado no chão dessa vez a impulsionando para cima livrando-a do ataque e mesmo no alto armou seu arco e disparou 3 setas, destas 2 atingindo a criatura que grunhiu mas voltou a avançar ainda mais agressivamente. Ao retornar para o chão a figura se deparou com a fera que lhe aplicara uma investida com seu corpo avantajado atirando violentamente a figura no tronco de uma arvore caindo ao chão. Sem perder tempo a fera continua avançando novamente.
A pessoa estava atordoada com a pancada e sei que seria seu fim se não conseguisse se recuperar rapidamente. Usando o pouco de folego que possuía eu gritei “Cuidado! ” Na mesma hora em que Tobias fez o mesmo (ambos tivemos a mesma boa vontade a tempo) e isso fez com que aquela pessoa se recobrasse bem em cima do golpe mortal. Eu vi, mas meus olhos até hoje não acreditam ou minha mente de bruto pudesse entender no que ocorrera naquele momento.
No exato instante de um abocanhar da besta a figura apoiou-se em seu cajado, deu uma cambalhota usando a arvore como apoio por cima do demônio e do alto deu outro disparo com arco, mas dessa vez sem flecha alguma ao que parecia, vi uma grossa onda de ar sair naquele disparo e acertar em cheio a besta por trás jogando-a contra a arvore.
E nesse mesmo momento ao cair no chão, se agachou estendeu uma das mãos em direção a criatura e com um gesto de fechar as mãos a raiz e troncos da arvore que outrora havia lhe anteparado agora se abriam e contorciam como se vida própria tivesse agarrando e prendendo a besta que se debatia loucamente, os mordia, tentando se soltar sem êxito. E com mais outro movimento aquela figura, agora mais nítida (era uma mulher se meus olhos não deixam mentir) soltou seu cajado que parou em pé ao seu lado e proferiu serenamente “ Vox Fulgur Micans” e no mesmo instante um raio caiu sobre aquele lugar, sobre a fera esmigalhando aquela arvore que lhe aprisionava. Só me lembro de um clarão cegante depois de então e o forte estrondo que fez meu corpo estremecer e o calor corar minha cara. Tudo aconteceu muito rápido!
Ao me recuperar pude ver que a besta ainda estava de pé, mas cambaleava e guinchava de dor totalmente ferida eu via fumaça subir de seu corpo e que estava queimado em carne viva e viçosa. O cheiro de carne queimada e podre inundava o lugar e irritava o nariz, parecia enxofre puro com vinagre, meus olhos ardiam. Logo tão súbita foi a chegada da criatura assim foi sua fuga. Foi-se recuando encarando a seu algoz (que, agora de pé lhe ameaçava somente com uma postura impetuosa) com um amargo olhar de derrota e impotência ante tal força, ainda mostrando as presas como uma má perdedora tentando manter intacto seu orgulho arrogante e em frangalhos saiu tropicado mata a dentro. Fomos salvos! Não viramos janta!!! Meu coração se alegrou, eu podia ouvir os risos de minha filha novamente e ouvir Tobias brincando com o cão. E falando no garoto o mesmo veio ao meu encontro choroso junto do inseparável cãozinho.
A essa altura a chuva pesada tinha dado uma trégua e diminuído. Estávamos sujos, desnorteados, mas vivos e não me lembro da vez em que respirei com tamanha leveza e felicidade o ar para meus pulmões e como isso era bom. O cheiro de morte e carne podre haviam se extinguido no ermo fazendo me lembrar do agradável cheiro de terra encharcada.
Aquela figura estranha veio se aproximando de nós lentamente. Tobias estava estupefato e falava loucamente “Seu Hananias! O senhor viu só! Viu o que ela fez, ela salvou a gente!!!”
Tobias se deu conta de que Leco não estava por ali e não ouvia seus latidos e isso o receou “Leco! ” E de um buraco saiu o pobre e ensopado animal que mancava. No meio do embate o mesmo havia se ferido com as investidas abruptas da besta na tentativa vã de ficar perto de Tobias, ele fez o que estava em seu alcance para proteger seu fiel amigo, mas a dificuldade era maior que um vira-lata pudera enfrentar, mas não deixou de se apresentar (ainda que só no termino do embate). Aproximando-se de nós a mulher guardou suas armas, as mesmas se encolhiam cabendo na palma de sua mão e virando colares rústicos. Sacou um alforje e dele tirou algumas folhas de ervas e pós sobre o ferimento de Leco. Ficamos parados em silencio eu e Tobias e víamos a cena peculiar. Sentíamos uma certa paz ao redor daquele ser mesmo depois de tamanho enfrentamento. Ela começou a falar em uma língua estranha em tom baixo como uma espécie de mantra. Tobias curioso logo rompeu o silencio com sua enchiridice “Quem é você? Você tem poderes? O que era aquilo? O que está fazendo com Leco? ” E surpreendentemente ela parou e fitou os olhos em nós de forma amigável e disse em nossa língua: Quantas perguntas!
Ela permaneceu em silencio depois disso e dessa vez foi minha vez de quebrá-lo “Muito obrigado moça, você salvou vidas aqui hoje” Ela acariciou Leco e disse que só estava purificando sua floresta e que aquela besta não pertencia a cadeia da natureza e estava desequilibrando seu ecossistema matando animais e homens por puro prazer. Era uma criatura vinda das terras nebulosas e que a estava caçando.
Terminando sua breve explicação se levantou e me ajudou a ficar em pé, mas eu também estava ferido, então me deu algumas daquelas ervas e disse para colocar sobre minha ferida e me tratar com elas por um tempo. Ela disse que morava na floresta e a floresta nela, contudo até onde eu sabia aquelas regiões eram desabitadas desde minha mocidade. Logo ela me advertiu que existem coisas muito além do que conhecemos ou sabemos que coabitam conosco zelando acima de tudo a vida tanto nossa quanto da Terra em si e que a nós só competia vivermos nossa vida sem tais preocupações por isso eles existiam (falando como se existissem mais pessoas como ela).
Então ela saiu andando e disse para que seguíssemos para casa uma vez que a besta ainda estava viva, mas nos garantiu que tão cedo ela iria voltar a se emprenhar perto de nosso vilarejo. Escalou uma arvore com grande destreza e lá do alto nos olhava. No chão havia os cavacos da arvore que fora destruída pelo raio. Tobias pegou uma lasca que ainda estava com brasas mesmo em meio aquele lamaçal. A moça de expressão tranquila, cabelos ondulados e negros como piche e olhos opacos sorriu e tocou na arvore em que estava, e no chão cada pedaço daquela arvore estilhaçada ia se transformando em sementes, dezenas delas, e sendo absorvidas pelo solo do lamaçal dando origem a pequenos pezinhos de novas arvores. Aquilo era magico e assustador também. E quanto a lasca nas mãos de Tobias, a mesma também virou uma semente. O garoto sorriu para a estranha e disse que iria plantá-la e perguntou seu nome. A mesma assentiu com a cabeça, vestiu seu capuz e disse com um tom mais alto “O meu nome está no zéfiro dos ventos criança, Zaffyra a saber. ” E assim sumiu por entre as copas.
Ao chegarmos no vilarejo por mais que eu me esforçasse em explicar o ocorrido até hoje não entendo como eu vivi tudo aquilo e o tempo passou. Meus companheiros e até minha família ainda duvidam de minha sanidade e falam que foi tudo fruto de minha mente devido o ferimento, balelas como de pescador. Eu não os retruco pois sei que se estivessem em meu lugar eu também duvidaria como até hoje custo entender sobre o que vivi.
“Vamos lá Hanan, meu velho! Pare com essas histórias de anjos ou seres da floresta e tome seu gole de Rum! ”
Mas volta e meia me pego relembrando os olhos amarelados e sanguinários daquele demônio e do aroma célico daquela estranha e pensar que tais seres estão em nossas redondezas me causa temor, mas ao mesmo tempo uma seguridade. A certeza de que Zaffyra com seu poder nos acudirá e com tua floresta nós zelarmos.
“Vamos Tobias, conta pra gente como ela era…vai...!
Ela era muito rápida e forte, e bonita também! E soltava raios pelos dedos e tornados gigantescos com seu capote e carregava um pedaço de tronco pra dar na cabeça daquele bicho horroroso. E tinha um arco que disparava como uma bazuca sônica, é sim…. Ela explodiu uma arvore bem grande só falando umas palavrinhas magicas e curou o Leco.
Mentiroso! Você disse ontem pro Pedrinho que ela soltava raio pelos pés, você esta mentindo...
N-Não, eu não estou mentindo não! Vejam...ela me deu essa semente que eu vou plantar e chamar de...de…Ham...o ermo de Zaffyra! “
Autor: Denver Raven