979-O TESOURO DE MANÉ GATO
1ª. Parte - Mistério no Jardim Novo
Se fosse um menino aborrecido, há muito já teria se revoltado com as constantes recomendações do pai, sempre atento à sua postura encurvada, com os olhos pregados no chão. A qualquer momento, sem que ele esperasse, lá vinha o pai com o conselho que soava como uma ordem:
— Olha pro céu, Toninho. Andando desse jeito,vai acabar ficando corcunda.
Contudo, era de boa índole e procurava obedecer ao pai. Bem que tentava olhar para o alto. Quando se lembrava, ia observando as copas das árvores ou os beirais das casas. Quando passava pela praça central, mirava a imagem do Cristo de braços abertos, no alto da torre da igreja Mas por conta dessas fugazes olhadas para o alto, já havia levado tropicões fenomenais, num dos quais quase perdeu a unha do dedão do pé esquerdo.
Tendo aprendido o significado do sobrenome de família, argumentava com o pai:
— Ara, pai, se ficar corcunda, tá de acordo com o nosso sobrenome. — E com uma certa petulância, perguntava: — O senhor sabe que Gobbo em italiano significa corcunda?
O pai não se deu ao trabalho de responder.
Aos doze anos, freqüentava o ginásio enquanto o ano de 1946 corria lentamente. Gostava de acompanhar os colegas e amigos (todos maiores e que não o levam muito a sério, pois era um catatau de garoto) nos brinquedos e jogos.
Era depois das quatro, a turma andava pelas alamedas do Jardim Novo, procurando um lugar para fazer tocas e jogar bolinhas de gude. O terreno estava úmido, devido às últimas chuvas. Passam sob a frondosa gameleira. Toninho tropica numa tira de couro, enterrada no chão, que o faz saltar de dor.
— Ai! Filho-da-mãe! Quase me quebra o dedo. — Sai pulando num pé só, qual um saci ruivo e sardento, enquanto os colegas gozam.
— É mesmo um toco-de-amarrar-besta!
— Olha por onde anda, seu caga-baixinho!
Ele não se incomoda. Acompanha a turma até mais embaixo, onde o terreno, limpo e macio, é propício para fazer as tocas de bilosca. Mas a dor no dedão não o deixava se esquecer daquele estranho pedaço de couro enterrado. Quando perdeu a primeira partida, voltou ao local e tentou puxar a tira de couro.
Parecia com uma cinta, bem mais larga, e tinha uma fivela, na qual Toninho tropicara. A fivela estava muito enferrujada e saiu nas mãos do garoto, assim que ele começou a puxar a correia.
— Sai, bandida, cê num nasceu aí. — Falava consigo mesmo. Tentou cavoucar ao redor, com o pequeno canivete, mas a tira entrava pelo chão adentro e não dava sinal de afrouxar. Desistiu quando ficou escuro e os companheiros se foram. Intrigado com o achado, guardou no bolso da calça a fivela. Voltou para casa chateado por não ter podido desvendar o mistério.
Sim, porque para ele, leitor inveterado de livros de aventuras de piratas, de índios, de Tarzan e de heróis espaciais, aquela tira de couro irremovível com uma fivela enferrujada levava direto a algo muito importante que estaria enterrado ali no Jardim Novo.
2ª. Parte - A mudança do cemitério
No começo do Século XX, mais precisamente, no ano de 1905, aconteceu na pequena cidade do sul de Minas, um fato jamais registrado nos anais oficiais ou nas páginas literárias: a mudança de local de um cemitério. Os cemitérios são locais respeitados, quase sagrados, e por isso, intransferíveis.
O cemitério de Paraíso ocupava uma área maior do que os quarteirões que o circundavam. Aos poucos, a cidade foi crescendo e o Cemitério Municipal foi cercado pelas construções e ficou no centro da cidade.
— Não fica bem esse trambolho no centro . Além do mais, é um local perigoso e assustador. Se eleito for, vou mudar este cemitério.
O prefeito Plácido Guerra, dinâmico, de visão, médico de formação e com vontade de melhorar a cidade, teve a idéia de mudar o cemitério, tirando-o da parte central, transferindo as ossadas para o Novo Cemitério Municipal, distante cerca de dois quilômetros, bem fora da cidade. Na área do cemitério removido, um jardim moderno seria construído, com nome homenageando um político de antanho, mas que ficaria sendo conhecido por Jardim Novo. Alguns protestaram. Os moradores da região acharam ótimo, pois morar em frente a uma praça ajardinada seria muito mais agradável, sem falar na valorização dos imóveis circunscritos.
A mudança constou da transferência das ossadas para o novo cemitério. No solo ficaram os restos de caixões, que foram cobertos por espessa camada de terra, sobre a qual construiu-se o novo jardim. As partes que não tinham ossadas (as passagens largas e sob as árvores) não foram revolvidas nem aterradas. Um monumento foi levantado, comemorativo do importante feito da administração municipal.
O Jardim Novo era circundado por uma larga calçada, e os canteiros foram inspirados em algum castelo francês. As alamedas, entretanto, não foram calçadas. Os locais onde havia árvores ficaram intocados. Principalmente sob a imensa gameleira, por si só um monumento vegetal.
O tempo passou e o Jardim Novo tornou-se local para passeios das famílias, para os footings dominicais, e muito apreciado para os garotos, que ali iam jogar bola, finca, bolinha de gude, ou soltar raias e papagaios. Embora tenha se tornado, com o correr dos anos, decrépito e velho (os locais também envelhecem), continuou sendo, para sempre, o Jardim Novo.
3ª.parte - A Lenda de Mané-Gato
Mané-Gato fora um dos mais famosos ladrões da região. Atuava no ramal da Estrada de Ferro Mogiana, que ia de Campinas, no estado de São Paulo, até Passos, no sudoeste de Minas. Diziam que fugia dos locais dos roubos — cidades como Mococa, Jundiaí, Guaxupé, Paraíso, Passos — escondendo-se nos vagões de carga ou deitado no teto dos vagões de passageiros dos trens que faziam quatro vezes por dia o trajeto. Talvez nem todos os roubos e assaltos ocorridos naqueles tempos tenham sido feitos por Mané-Gato. Porém a fama se espalhou e a ele eram atribuídos todos os furtos naquela região.
Ainda segundo a lenda, não tinha morada certa, ou domicílio, na linguagem policial e jurídica. Daí a dificuldade em prendê-lo, pois uma noite roubava em certa cidade, na noite seguinte outro arrombamento era registrado em outra, e assim por diante. Os delegados das cidades jamais tiveram o bom senso de se organizarem numa ação conjunta.para prender o famoso ladrão.
Mané-Gato assaltava joalherias, lojas de objetos de real valor, propriedades particulares (aonde ia direto às gavetas, esconderijos e cofres), fazendas onde sabia encontrar dinheiro guardado debaixo de colchões ou outros esconderijos. As lojas dos velhos italianos, ou dos turcos espertos, que não confiavam nos bancos e guardavam em baús e gavetas o produto dos negócios, eram os alvos prediletos do gatuno.
Nenhum ricaço, nenhuma madame proprietária de finas jóias, nenhuma relojoaria, nenhum comerciante próspero ou fazendeiro abastado estava seguro ante a audácia do assaltante misterioso.
Nunca deixou sequer uma pista, uma pegada ou um rastro. Jamais fora sequer visto. O nome tinha sido criado por aqueles que deveriam prende-lo e não o faziam. .O primeiro por se tratar de “um mané qualquer”, conforme afirmou um delegado de polícia, e “gato” por sua habilidade de entrar por aberturas impossíveis, e fugir por telhados e beirais altos, sem nunca ter se machucado, pois nunca descobriram sequer um pingo de sangue por onde fugia.
A lenda incluía a certeza de que o famoso larápio tinha um verdadeiro tesouro, constituído por objetos de ouro, anéis, colares e brincos de diamantes e outras pedras preciosas, relógios, correntes, cadeias de ouro e muitas notas de mil réis.
Tal fortuna em dinheiro e jóias, se existiu, nunca foi achada, tendo desaparecido como desaparecem os lendários tesouros.
4ª. Parte - Toninho procura um aliado.
Naquela mesma noite, Toninho contou ao irmão mais novo, Roberto, o encontro da misteriosa correia de couro. A princípio, o irmão não acredita.
— Isto é invenção sua. Coisa que você leu nos livros.
— Mas lá no Jardim Novo tem alguma coisa enterrada. Nós temos de descobrir o que é.
Falou a noite inteira, enchendo o ouvido do irmão. Contou histórias de Long John Silver e a ilha misteriosa; de Tarzan encontrando a cidade perdida de Opar, uma verdadeira cidade de ouro. Falou da lenda das quatro bruacas de ouro, uma história tradicional no folclore de Paraíso; e outras histórias de tesouros enterrados. Acabou por contagiar Roberto com seu entusiasmo.
— Pois então amanhã mesmo nós vamos lá. Numa hora em que não tiver ninguém por perto.
— Combinado. Mas se a gente tem de cavoucar o terreno, é bom levar alguma outra ferramenta, além do seu canivete.
— Pegamos aquela pazinha que papai usa para esgravatar os canteiros.
Ao entardecer do dia seguinte, lá vão os dois garotos em busca de aventuras.
— Onde é que tá enterrado o tal couro? — Pergunta Roberto.
— Lá debaixo da gameleira.
— Será que num tem perigo? O jardineiro pode ver a gente e...
— Que nada. Ele pára de trabalhar às quatro horas. E a turma do jogo de bilosca já foi embora. Além disso, a sombra da gameleira faz um bom esconderijo. Já tive observando.
5ª. Parte - O esconderijo do tesouro
Eis que um dia Mané-Gato resolveu parar de roubar. Já tinha mais do que suficiente para levar uma boa vida, na ociosidade e no gozo de sua riqueza. Entre as diversas cidades da região, escolheu Paraíso para seu refúgio definitivo. Sem querer dar na vista, alugou uma casa modesta, lá pelas bandas do Bairro Operário.
Mas o volume do tesouro, que guardava numa mala de papelão muito comum, dava-lhe preocupação. Começou a ter medo de ser localizado, e se o descobrissem com o tesouro na mala, que conservava sob a cama, estaria no inferno e não no Paraíso. Poderia até ser morto por alguém que desconfiasse do seu segredo.
A única maneira de ficar tranqüilo seria esconder o tesouro. Guardaria na casa dinheiro suficiente para os gastos de, pelo menos, um ano. Quando precisasse de mais, iria ao esconderijo e tiraria mais jóias, venderia, e assim viveria tranqüilo até o fim dos seus dias.
Mas, esconder onde? Numa caverna? Numa grota com árvores?
Pensou, pensou e pensou. Nenhum lugar lhe parecia suficientemente secreto ou bastante seguro. Passou noites de insônia com a preocupação de encontrar um lugar seguro, de fácil acesso e que ao mesmo tempo fosse secreto.
— Ah! – A idéia estalou em uma madrugada de verão. — No cemitério! Que lugar mais desolado e, ao mesmo tempo, mais à mão? Escolho um local onde não haja perigo de ser feita cova e enterro meu tesouro. Aliás, devo trocar a mala por um baú de preferência de metal. Para não apodrecer.
No dia seguinte, mandou fazer um baú de latão grosso, reforçado com cantoneiras de ferro, com cadeado e amarrado com correias afiveladas. Como não queria dar na vista, viajou até a cidade mais próxima, onde fez a encomenda a um ferreiro. Este acertou o negócio e prometeu a entrega para daí a uma semana.
Tinha em notas de mil réis o suficiente para os gastos de muitos meses, mas resolveu fazer um teste: levaria um pequeno lote de jóias e relógios até São Paulo, onde conhecia comerciantes interessados em jóias sem indagar da origem. Havia tanto dinheiro em notas, que achou conveniente enterrar também a maior parte delas com o tesouro. Embrulhou em papel oleado algumas centenas das cédulas de quinhentos mil réis, que colocou dentro do baú.
Depois de perambular pelo cemitério, escolheu o local apropriado. Debaixo da enorme gameleira, cujas raízes se estendiam em largo círculo ao redor do tronco, seria o lugar ideal. O terreno ali nunca seria usado para fazer covas e enterrar ninguém. Numa madrugada de inverno, a névoa cobrindo o campo santo e escondendo túmulos, árvores, cruzes e anjos, enterrou o baú do tesouro.
Isto feito, lá foi ele para São Paulo, pelo mesmo trem que usara em um sem-número de vezes para suas fugas. Apenas com uma diferença: viajou de primeira classe, ao contrário de seu tempo de aventureiro, quando se escondia em cima dos vagões, agarrando-se como podia para não resvalar e cair.
Se tivera sorte, muita sorte, em suas fugas noturnas, viajando precariamente, muitas vezes sob chuva e tempestade, a sorte, parece, se cansara de proteger o lendário gatuno. Pois na viagem de volta, os bolsos recheados de dinheiro, estirado sobre o banco macio e fumando um legítimo Havana Gold, não teve tempo para perceber a Foice Fatal descendo sobre o trem em que viajava. Numa curva da ferrovia, o trem, em velocidade excessiva, descarrilou. Os vagões desengataram-se. O vagão da primeira classe desabou por uma pirambeira profunda e chegou ao fundo completamente destroçado. Nenhum passageiro escapou com vida.
6ª. Parte - O Tesouro no Baú
— Vamos, cavouca com força!
Os dois garotos esforçam-se para encontrar a ponta da misteriosa tira de couro, onde, segundo Toninho, está um tesouro fabuloso. Já anoiteceu.
— Espera aí. Bati nalguma coisa dura. — Toninho raspa uma superfície metálica, plana. — É uma tampa de metal.
— Acho melhor a gente voltar pra casa agora. Papai e mamãe vão zangar com a gente...— Roberto está assustado.
— Tá certo. — Concorda Toninho. .
— Mas e o buraco? Se a gente deixar assim, vão descobrir.
— Vamos entupir tudo. Amanhã a gente volta e vai ficar mais fácil.
Rapidamente, os dois, com as pequenas mãos, devolvem ao buraco toda a terra escavada.
— Tamos no caminho certo. — Diz Toninho. — Amanhã a gente acaba de cavoucar e descobre o tesouro.
No segundo dia da aventura, bem de tardezinha, lá foram os dois. Roberto apenas segue o irmão, não mostra entusiasmo, mas também não quer ficar de fora da história. Toninho se prepara como se fora uma expedição.
— Vamos levar sua lanterninha. Se a gente tiver de trabalhar no escuro, ela pode ajudar.
— Mas se alguém ver a luz, vai desconfiar. — Objeta Roberto — Pode até descobrir a gente.
— Vou usar só dentro do buraco, se for preciso.
Levaram a pequena pá e mais uma enxada de afofar canteiros. O chão, úmido pelas últimas chuvas, estava fácil de ser cavoucado.
Rapidamente removem a terra fofa, já cavoucada na tarde anterior. Com a pá e a enxadinha, limpam o tampo do baú, e se põem a escavar pelas laterais, cada um trabalhando de um lado. Agem com presteza. Roberto se anima, pois agora sabe que o irmão está certo, com seu palpite de um tesouro escondido.
Quando fica noite fechada, terminam o serviço de escavação.
— Vamos, força!. Deve tá cheia de ouro e diamantes. — Toninho anima o irmão. A caixa é pesada, e só com muito esforço os dois conseguem arrastá-la para fora do buraco.
Toninho tenta abrir a caixa, usando o canivete, e a pequena pá. Não consegue nada, a não ser quebrar a lâmina do canivete.
— Que porcaria! — Fala mais para si mesmo.
— E agora? Que vamos fazer? — Roberto está desorientado.
— Primeiro, vamos entupir o buraco. Depois, vamos levar o baú pra casa.
— Está muito pesado.
— Ora, cara, a gente vai arrastando. Já está de noite, ninguém passa por aqui. Até lá em casa são só dois quarteirões.
Entopem o buraco. Arrastam o baú com dificuldade.
— Lá em casa, a gente entra pelo portãozinho do corredor e leva o baú pro fundo do quintal.
— Papai vai descobrir. — A voz de Roberto é lamuriosa.
— A gente tampa com aqueles panos velhos que estão na dispensa do quintal.
— Vamos levar uma surra.
— Ara, Roberto, deixa de ser cagão! Vamos, me ajuda a puxar.
O plano ia dando certo até a entrada pelo portão lateral da casa, que conduzia diretamente ao quintal. O barulho do metal arrastando pelo piso cimentado, é ouvido pelo pai, que lia na sala. De repente, seu perfil se delineia contra a porta aberta de chofre.
— Que vocês estão aprontando?
Toninho salta de susto, enquanto Roberto começa a tremer de medo.
— Não...não é nada...não é nada não, pai. É só um baú que a gente achou.
Seu Antenor desce os três degraus da escada e se aproxima dos dois. A luz que vem da cozinha ilumina um pedaço do baú.
— Que negócio é esse. Cês acharam o quê? Onde?
O homem se agacha para verificar o “achado” dos filhos. Passa a mão pela caixa metálica, suja de terra.
— Fala a verdade, Toninho! Qual foi a aprontação, agora? De onde vem esse baú velho?
A mãe, dona Zélia, também se aproxima, curiosa e intrigada com a zanga do marido.
— Nós achamos, sim, papai. Estava enterrada no Jardim Novo, debaixo da gameleira. A gente teve que desenterrar, mas fui eu que descobri a caixa. — Toninho tenta explicar.
— Mas o que tem aí dentro?
— Não sei. Não conseguimos abrir a tampa.
Em poucas palavras, o filho mais velho explica ao pai o que ele e o irmão fizeram nas duas últimas tardes, quando “desapareceram” de casa. Seu Antenor se torna curioso, mas acha que os meninos caíram num logro ou fizeram um achado sem importância.
— Pois então, vamos abrir este baú e ver o “tesouro” que tá aí dentro.
Levaram o baú para o pequeno telheiro no quintal, onde uma luz fraca iluminou a caixa de metal enferrujada e suja de terra. Seu Antenor pegou um martelo e, com pancadas vigorosas, destruiu a fechadura. Abriu o baú com certo receio.
— Vai que tem algum bicho aí dentro.
— Ô pai, esse baú deve ter sido enterrado há muitos anos. — Toninho fala em tom de gozação. — Que bicho iria sobreviver aí dentro tanto tempo?
Enfim, o baú aberto, viram um embrulho de papel oleado. Todos ficaram em silêncio. Imóveis. Ninguém tinha coragem de meter a mão para ver o que era o embrulho.
Seu Antenor cutucou o embrulho com o cabo do martelo, empurrando para um lado. Debaixo, faiscou o brilho de metais dourados.
— Olha lá! Olha lá! — Toninho gritou, retirando o embrulho.
Um brilho intenso chegou até os quatro pares de olhos. Mesmo parcamente iluminado pela pequena lâmpada, o tesouro revelava-se por inteiro: peças douradas, prateadas, pedras multicoloridas, diamantes.
— Eu num falei! Eu num falei! Achamos um tesouro! — Toninho gritava e pulava.
— Psiu! — A mãe impôs silêncio. — Fica quieto, menino! Isto tudo aí pode ser falso. Imitação.
Roberto pegou o embrulho e rasgou o papel com facilidade. Pacotes de notas saltaram de suas pequenas mãos.
— Estamos ricos, papai! Ricos! Veja quanto dinheiro!
Seu Antenor olha para as notas de mil-réis.
— Isto aí não vale nada! São notas velhas, de mil-réis. Perderam o valor em 42, quando a moeda virou cruzeiro.
— Vai ver, essas pedras, essas correntes, isto tudo aí é falso, não vale nada. — Dona Zélia é muito pessimista, sempre leva as coisas para o lado pior.
O baú não era muito grande. Os olhos de Seu Antenor, acostumados a avaliar medidas por força do ofício, achou que o baú deveria medir trinta centímetros de altura, por outros cinqüenta de largura e trinta centímetros. de fundo. Quando retiraram todos os objetos da caixa, estes fizeram um pequeno monte de relógios, correntes, medalhas, anéis, brincos, colares, de ouro ou de prata, engastados com pedras faiscantes que seriam na maioria diamantes.
A noite já ia avançada quanto chegaram à conclusão de que era, sim, um verdadeiro tesouro que estavam manipulando.
— Não é nosso. Deve ter um dono. — Seu Antenor falou solenemente.
— Ara, pai, este baú tava enterrado faz muito tempo. O dono de certo já morreu. — Toninho defendia “seu” tesouro.
— É, concordo. Deve ter sido enterrado no tempo em que o Jardim Novo era cemitério. Isto deve ter sido enterrado há mais de cinqüenta anos.
— Então, é de quem achou. Se o dono já morreu....— Toninho insiste na posse do achado.
— Vamos fazer o seguinte. Vamos colocar tudo de novo no baú e vamos dormir. Amanhã a gente pensa direito o que fazer com este tesouro. — Inconscientemente, seu Antenor já admitia que o filho encontrara, de verdade, um tesouro de valor incalculável.
Dona Zélia e Roberto dormiram bem. Ela, por não acreditar que aquilo fosse mesmo um tesouro, algo de valor. Roberto, por estar cansado e com a certeza de que não haveria reprimenda nem castigos.
Toninho virou e revirou na cama, a cabeça girando. Preocupava-o menos o valor intrínseco do tesouro do que o fato de ter sido descoberto, desenterrado por ele. Agora ele era um herói, igual aos maiores aventureiros que descobriam tesouros escondidos. Seu Antenor também passou a noite insone. Preocupava-o a origem do tesouro, o seu valor, e a possibilidade de estarem todos milionários com o achado de Toninho.
Na manhã seguinte, todos estavam alvoroçados. Tinham muitas idéias, as quais atropelavam-se umas às outras. A proposta mais sensata veio de Dona Zélia:
— Vamos procurar o Tio Teodoro. Ele já foi comerciante, tem muita experiência de vida, e sua palavra é de lei.
— Tá bom. — Concordou Toninho. — Mas se ele falar que o tesouro não é meu, não quero nem ouvir.
— O tesouro é nosso, não é só seu. Eu ajudei a desenterrar. — Roberto pula da cadeira, exigindo seus direitos.
— Calma! — intervém o pai. — Tá Vendo? Nem sabemos se é verdadeiro, e já estão brigando!
Visitaram o Tio Teodoro. Seu Antenor levou um relógio, duas pulseiras cravejadas de diamantes, anéis e colares. Roberto levou um pacote de notas, embrulhado em papel comum.
O velho italiano era tio de Seu Antenor por parte de pai. Fora comerciante e viajara muito. Em 1929 estivera até na Itália, revendo a cidade natal e os poucos parentes remanescentes ainda moradores de Firenzze. Prosperara na vida e agora, muito idoso, vivia da renda de muitos imóveis. Tranqüilo e sempre de bom humor, era o oráculo da família, sempre consultado nos momentos de dificuldades de todos os tipos.
Quando viu as amostras do tesouro, examinou-as com cuidado. Depois, falou de modo solene :
— São jóias de verdade. Muito antigas. Se foram encontradas como Toninho diz, devem ter sido enterradas no local do velho cemitério. Isso já vai pra mais de meio século. Quem enterrou o baú deve ter morrido com o segredo do lugar. Diz o provérbio que achado não é roubado, portanto acho que o tesouro lhes pertence, sim. Quanto ao dinheiro (que Roberto insistia em mostrar) não vale mais nada mesmo. É melhor vocês queimarem para não se comprometerem. Guardem segredo do achado e vão dispondo das peças bem devagar.
— Mas, como vamos vender tanta jóia assim, sem dar na vista? Aqui nesta cidade é impossível.
— Bem, se quiserem, posso levar para São Paulo e vender por lá. Tenho muitos conhecidos que gostarão de adquirir essas peças.
Desde então, Seu Antenor deixou de implicar com a postura de Toninho. Nunca mais mandou que ele olhasse para o céu.
— Mais vale um corcunda rico que um garboso pobre. — Explicava de modo maroto. E quando ele falava corcunda piscava para Toninho, como se dissesse:
Sim, eu sei que corcunda aqui e gobbo na Itália são a mesma coisa.
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Antônio Gobbo
Belo Horizonte, 18 de agosto de 2006