O Conto do Soldado
O Sol começava a nascer ao longe no horizonte de uma estrada de terra batida. O céu azul anil estava limpo e sem nuvens. Pela estrada um agrupamento militar prosseguia a pé. Cinco soldados trajando roupas escuras e pesadas, além de um capacete de metal em formato peculiar, cercavam dois homens trajando roupas brancas, porém sujas de terra, que tinham suas mãos acorrentadas. Mais atrás vinha outro homem com roupas mais leves, porém tendo as mesmas cores e características das roupas dos soldados, exceto pelo capacete, e consigo carregava uma bolsa de couro marrom desgastada.
O grupo seguia a pé sem cessar, os dois homens acorrentados estavam descalços e seus pés já mostravam feridas. Não era possível ver o rosto dos soldados, mas suas posturas demonstravam poder, ainda mais pelas armas robustas que empunhavam. Já o homem que vinha por último parecia fadigado e fazia uma pausa a cada vinte metros.
Em determinado momento da caminhada, quando o Sol já despontava no alto do céu, um dos soldados que acompanhava os prisioneiros de perto pôs o pé para que um deles tropeçasse. As correntes uniam os dois homens e quando o primeiro caiu o outro foi puxado para o chão instantaneamente, levando o soldado provocador da queda a gargalhar junto a outros dois.
Outros dois soldados que iam mais a frente pararam e um deles retrocedeu até o soldado que ria alto.
— Pare de perder tempo, seu imbecil. Temos ordens a cumprir. — Disse o soldado que retrocedera e em seguida socou o capacete do outro.
Após o soldado retornar para a frente do grupo, ele aparentemente tinha patente mais alta, o outro ergueu os prisioneiros com violência, já que ainda tentavam se levantar. O homem que vinha atrás apenas olhava toda a cena expressando estar com pena.
Algum tempo depois, quando o grupo se aproximava de uma ponte de madeira maciça, o soldado de patente mais alta parou. Os que vinham atrás continuaram andando a fim de alcança-lo, mas antes que conseguissem, uma saraivada de disparos os fez frear.
— Fiquem atrás das rochas! — Gritou o soldado superior, enquanto também se escondia.
Os soldados começaram a trocar tiros sem saber exatamente de onde vinha o inimigo. A ponte, que estava a poucos metros de distância, subitamente explodiu, deixando alguns com zunido temporário no ouvido. Estilhaços de madeira caiam por toda a parte, fumaça e poeira bloquearam a visão e até então o soldado superior ainda não havia atacado. Entre o grupo e os inimigos havia antes uma ponte, agora apenas um penhasco os separava. Contra-atacar parecia impossível, fugir sem saber onde estavam inimigos era suicídio. A troca de tiros continuava intensa.
O soldado superior refletiu por mais alguns segundos intermináveis e finalmente agiu. Com um sinal chamou a atenção de um dos soldados mais próximos, a comunicação foi rápida e objetiva, em seguida puxou algo preso em sua cintura e arremessou do outro lado do penhasco. Dois segundos depois uma explosão fez os tiros inimigos cessarem e uma fumaça violeta se espalhou.
No mesmo instante o soldado superior saiu correndo em direção ao sul, enquanto puxava o homem que carregava a bolsa de couro, o qual se tremia todo atrás de uma rocha. Logo atrás os outros os acompanhavam.
— Capitão, pra onde vamos?! Não podemos atravessar o penhasco! — Gritou um dos soldados enquanto corria.
— Não vamos atravessar, vamos dar a volta! Essa missão vai ser concluída de um jeito ou de outros! — Retrucou o capitão.
Segundos depois os tiros foram novamente ouvidos, mas nenhum sequer os alcançou.
A princípio correndo, depois a passos largos, o grupo seguiu percorrendo a beira do penhasco até alcançarem um grande bosque denso. Nesse momento o grupo decidiu fazer uma pausa para descanso, enquanto o capitão observava um mapa da região e tomava alguma decisão.
Sentado no tronco de uma árvore caída, o homem que carregava a bolsa de couro não parava de escrever num papel, mesmo ainda estando com as mãos trêmulas. Aproximando-se dele, um dos soldados, segurando o capacete, indagou sobre o que escrevia.
— O que é tão importante para ser escrito uma hora dessas? — Perguntou ele.
O soldado era jovem, tinha cabelos escuros, barba por fazer e uma cicatriz extensa bem no meio da testa.
— É o relato completo da missão. — Respondeu o homem quase gaguejando, ainda estava assustado. — A minha missão é contar para os superiores tudo sobre a missão de vocês. Se eu fizer isso com perfeição posso ganhar um cargo melhor. — Após uma curta pausa ele continuou. — E não vou precisar passar por isso de novo.
— Uhm, entendo. Já que não nos veremos mais, pois o capitão Nautus é o melhor que já ví e fará da missão um sucesso, diga o seu nome. — Falou o soldado.
— Sou Artur Faccino. — Disse o homem.
— Certo, senhor Faccino. Eu sou Néssio, você já conhece o capitão Nautus. E os três alí infernizando os prisioneiros são Enio, Cavel e Citrio. — Disse o soldado.
A conversa foi encerrada quando o capitão chamou Néssio para mostrar os planos.
— Nós estamos cercados. — Disse o capitão para Néssio.
— O que? Mas já?! — Indagou Néssio.
— Eles provavelmente sabem que queremos concluir a missão. Então sabem que não recuamos, se não recuamos óbviamente demos a volta no penhasco. — Fez uma pausa e olhou para o mapa em mãos. — Já devem estar no bosque também, mas alguns também devem estar na estrada ao sul. — Concluiu o capitão.
— O que faremos senhor? — Perguntou Néssio.
— A noite já vem caindo, teremos melhores chances no bosque. Precisamos ser cautelosos, usar a mata como esconderijo. — Disse o capitão.
A noite caiu e, após andarem por mais algum tempo, o grupo parou. Não iriam muito longe se não dormissem um pouco, então escolheram um local cercado por vegetação densa e colocaram alguns colchonetes finos no chão. Sem fogueira e sem comida, o objetivo era claro, descansar sem chamar atenção e sair assim que possível. O primeiro turno da vigília ficou com Enio, um dos soldados que infernizava os prisioneiros.
Antes de Artur cair no sono ele resolveu fazer um questionamento a Néssio, que estava deitado num colchonete próximo.
— Por que seu capitão permite o tratamento cruel a esses prisioneiros? — Perguntou em voz baixa.
— Esse tipo de atitude não é vista como negativa pelo alto hierarquia. Isso está além do poder do capitão. Acredite, ele já teria dado uma lição nesses três se pudesse. — Respondeu Néssio ainda de olhos fechados.
— Você parece ter um maior apreço por esse capitão. — Disse Artur.
Demorou um ou dois minutos até que Néssio resolveu responder ao mensageiro.
— Esse homem salvou minha vida mais de uma vez. Além de ser um exemplo de pessoa. Na verdade, o único bom exemplo que já ví. — Disse Néssio e após isso caiu no sono.
Já era madrugada e agora quem fazia a vigília era o soldado Citrio, suas pálpebras teimavam em fechar, enquanto ele lustrava seu capacete com um lenço qualquer. Seus cabelos eram curtos e loiros, não havia barba alguma e seus olhos eram verdes. Súbito, algo pareceu se mexer entre as árvores e fez o soldados se levantar assustado.
O soldado olhou em volta empunhando sua arma e procurando por qualquer sinal de movimento. Nesse instante ele sentiu uma mão agarrar sua perna o fazendo saltar para trás e apontar a arma para baixo.
— O que você pensa que está fazendo? — Disse o capitão, que dormia alí em baixo sem o capacete. Seus olhos tinham uma cor amendoada e seu cabelo curto e barba farta eram bem escuros.
— Ah, o senhor me assustou. — Disse Citrio. — Eu pensei ter visto um vulto entre as árvores, não sabia que tinha se levantado.
O capitão Nautus, ainda deitado, encarou o soldado por mais alguns segundos.
— Mas eu não levantei. — Disse ele.
Repentinamente uma flecha zuniu até atravessar a cabeça de Citrio, de uma orelha a outra. Antes que o soldado pudesse cair sobre as folhas secas desfalecido, o capitão puxou sua arma e começou a desferir disparos para todos os lados do bosque.
O grupo todo se levantou assustado e logo o capitão ordenou a retirada imediata do local. Do jeito que estavam saíram, sendo seguidos por flechas que pareciam vir de todas as direções.
Em meio a escuridão noturna do bosque o grupo correu revidando o ataque com os disparos de suas armas apontadas para todos os lados. Vultos e sombras eram vistos de uma distância razoável.
No calor da correria o capitão, que como todos os outros deixara muitos pertences para trás, procurava algo em seu traje , mas não encontrava.
— Néssio! — Gritou o capitão. — Diga que ainda tem um dissipador!
Em resposta Néssio, que corria logo atrás do capitão, lhe arremessou o objeto.
— Esse é o último! O resto ficou para trás! — Exclamou o soldado.
— Onde vai jogar?! Nem consigo vê-los! — Gritou Enio, que vinha por último.
— Eles também não vão nos ver. — Disse o capitão mais para si mesmo.
Não houve tempo para se preparar, em questão de segundos Nautus arremessou o objeto no chão mais a frente e uma forte explosão seguida da fumaça violeta encobriu o caminho do grupo, os fazendo sumir no caos. Poucos segundos depois a saraivada de flechas cessou e apenas o som natural do bosque imperava.
Esse momento durou alguns minutos, até que finalmente a fumaça se dissipou, mas o grupo já havia sumido.
Mais distante dali o capitão e Enio se arrastavam entre as folhagens, subindo num terreno mais alto eles ganharam vista privilegiada do local e por ali permaneceram entre arbustos até o momento determinado.
— Prepare sua mira, cada tiro tem de ser um acerto. — Sussurrou o capitão para Enio, enquanto apontava sua arma para algum lugar no bosque.
Em outra parte do bosque Nésseio também já mirava em algum lugar, estando oculto por arbustos, logo ao lado, escondido atrás de uma árvore, Artur se tremia de medo.
— Eu não quero morrer. — Disse gaguejando.
— Ninguém vai morrer, meu caro. — Disse Néssio ainda concentrado.
— Um já morreu! — Disse Artur, tentando falar baixo.
— Peso morto é peso morto, certo? — Concluiu Néssio com sarcasmo.
Ainda mais longe, ainda se arrastando, Carvel e os dois prisioneiros prosseguiam.
Nesse instante o capitão atirou a primeira vez, acertando um inimigo ao longe, em seguida Enio fez o mesmo e após ele Néssio. Ao mesmo tempo Cavel e os prisioneiros levantaram-se e partiram correndo. O tiroteio agora era intenso e as flechas voltaram a viajar pelo bosque, mas dessa vez sem alvos certos, exceto pelos três que corriam ao longe.
Um dilema instaurou-se entre os inimigos, atacar os alvos que não conseguiam enxergar ou atacar os que corriam, mas ao mesmo tempo se tornarem alvos certos dos que se escondiam. Finalmente os inimigos começaram irem ao chão na penumbra do bosque, um a um eram eliminados. Até que uma flecha atingiu a coxa de Enio, o fazendo urrar de dor.
— Calado! — Alertou o capitão.
— Argh! Eu não vou morrer aqui de graça seu idiota! — Respondeu Enio e logo em seguida empurrou o capitão para frente, que caiu do terreno mais elevado em que estavam, torcendo o pé.
Enio, que sequer esperou o capitão cair lá embaixo, saiu correndo do local. Quando Néssio viu Enio fugindo percebeu que havia algo errado, nesse mesmo momento ele ouviu o grito de dor ao longe. Ao olhar melhor percebeu que uma flecha havia atravessado o tórax de um dos prisioneiros, o qual desfalecia sendo arrastado pelo outro, pois os dois ainda estavam com os pulsos acorrentados.
— Não! — Disse Néssio.
Cavel e o outro prisioneiro ainda tentavam correr arrastando o corpo caído do prisioneiro morto, em meio as flechas que passavam assobiando em seus ouvidos.
— Eu não vou morrer por causa de vocês! — Gritou Cavel e virou-se para abandona-los.
Cavel não pôde dar nem três passos, pois súbito, um homem surgiu ao seu lado e atravessou a lâmina de um machado por dois terços do pescoço do soldado. Com a cabeça pendendo para o lado e o sangue jorrando para cima, Cavel caiu morto no chão e um disparo foi ouvido alí perto. Foi então que um projétil atravessou a testa do inimigo, caindo morto também.
Néssio e Artur se aproximaram do prisioneiro ainda agachados, logo o soldado pegou o machado ainda ensanguentado no chão e decepou a mão do prisioneiro morto num só golpe, libertando o outro.
— Vamos sair daqui, o capitão disse que a missão é a prioridade. — Disse Néssio.
Logo em seguida eles puderam ouvir o grito agonizante de Enio, mas cessou rapidamente. Os três correram rapidamente, agora sem flechas em seu encalço, a fim de sair do bosque.
O Sol estava nascendo no horizonte quando eles finalmente chegaram ao fim do bosque. Porém um rio de correnteza forte os separava dos destino final, e a ponte mais próxima estava muitos metros ao norte.
Nesse momento Néssio sentiu a dor de uma flecha atravessando sua mão, que segurava a arma, fazendo larga-la no chão. Mais atrás dois homens saiam da sombra do bosque, um grande e forte carregava um machado, outro menor empunhava um arco. Em seguida o homem com machado partiu em direção de Néssio, enquanto o outro preparava o arco com a flecha. Mas repentinamente um tiro atingiu o pé do homem com arco, fazendo-o virar na direção do inimigo mesmo com a dor.
O capitão Nautus apontava, com dificuldade e ajoelhado, a arma na direção de seu inimigo. Em um milésimo de segundo os dois dispararam. O tiro atingiu o olho do homem com arco e a flecha atingiu o peito do capitão. Os dois foram ao chão.
No mesmo instante o homem com machado alcançava Néssio, tingindo-o de raspão no ombro. Em um movimento curto e rápido o soldado conseguiu desviar do golpe do brutamontes e se posicionar atrás dele. Sem pensar duas vezes o chutou em direção ao rio violento, que estava logo a frente. O inimigo estava caindo quando rapidamente girou e agarrou o pé de Néssio, que ainda estava erguido. Segundos depois os dois já haviam sumido nas águas.
— Temos que ir. — Disse Artur, apontando a arma de Néssio para o prisioneiro. A expressão de luto ainda estava estampada em seu rosto. — Pessoas demais morreram aqui pra missão ser concluída.
Fim