UM SONHO CHAMADO SMITHS

"UM SONHO CHAMADO SMITHS"

Eu percebi uma garota, esquálida, pálida entre milhares de pessoas que destoava daquela imagem cinza, pois negro era toda sua aura. Parei e fiquei por um bom tempo observando o transe contemplativo daquela pessoa; com seus cabelos enlinhados pelo suor que seu corpo respondia, percebi em seus lábios balbucios mudos, como aqueles que se fazem ao pé da cama, à noite, pedidos nas orações de proteção a Deus. Era exatamente isso o que ela fazia ali, como se tivesse recitando liturgias, antífonas... por todo tempo em que Morrissey cantava suas obras-primas, aquela garota encantada, parada em seu altar, rezada suas lendas e suas fantasias como se estivesse numa ligação telepática direta com aquele inglês loiro. Depois de algum tempo, já parecia a mim estar vendo em volta dela um halo mágico de luz; depois disso, orientei-me pela razão analítica, por uma visão comportamental, behaviorista, tentando traçar-lhe algum fator externo ou interno de dependência ao lugar em que ela estava, que pudesse explicar aquela isonomia de sentidos. Tentei relacionar aquele comportamento como objeto observável, mensurável da Psicologia. Mas, distante de todas essas ranhuras, deixo que a Psicologia seja órfã de tal demonstração de fervor religioso por deuses se é que eles existem.

Eu a percebi depois de uns 25 minutos de show quando a bomba atômica explodiu no recinto após a execução do hino “Half a Person”, todos os presentes se repeliam e convergiam ao mesmo tempo, se precipitando aos motes de turbas desordenadas como se estivessem num carregamento de animais, momento em que, num pequeno espaço vazio e solitário, eu percebi aquela linda garota pranteando a canção chaplinianamente com os olhos fechados e as mãos, como numa oração, cruzadas contra o peito. Eu parei de me concentrar no show e fiquei observando aquela cena divina em contemplação. Não me parecia uma garota com mais do que seus 17 anos, mas me intrigava um certo anonimato e misterioso ar de soberba, talvez por todo aquele despojamento com que se entregava àquele momento. Aos moldes clássicos e interioranos, quem sabe provincianos, era o que dispunha para uma possível aproximação para o objeto do meu fascínio, não que objetivasse algo impróprio, lascivo, pervertido, erótico, nada além do que uma natural querência de conhecer uma pessoa tão fã de Morrissey e dos Smiths como eu também era. Pois, pensar naquilo o que construía em matéria de música no início Do século XXI era trágico – nada mais do que uma geringonça eletrônica com uma vitrola do lado onde só precisa apertar play... (isso até uma criança de cinco anos faz).

Agmar Raimundo
Enviado por Agmar Raimundo em 06/01/2017
Reeditado em 15/01/2017
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