Príncipe
Dedico este conto à pequena Malu e à sua vovó coruja. Sintam nele meu carinho pelo dia de Natal!
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Numa terra não tão distante daqui, reinava um poderoso rei. Seu palácio era vistoso, dominando o horizonte ao sul da capital com suas grandes torres, muros, inúmeras bandeiras e vitrais coloridos, e grossos portais de madeira de lei entalhados com belas figuras. Este rei possuía muitas terras e uma família muito bonita e numerosa, graças à benção dos Céus e de sua portentosa rainha.
Os corredores do palácio eram animados pela vida dos herdeiros: crianças que corriam para lá e para cá, divertindo-se ruidosamente em sua deliciosa juventude. Recebiam muita atenção e virtuosa educação de seus pais, especialmente da rainha, e admiravam-os muito, mesmo sem se aperceberem disso.
E, desta forma, os anos se passaram e os meninos cresceram, tornando-se fortes e valorosos rapazes. Já adultos, para espanto de seus pais, que não haviam se dado conta de que aquele dia chegaria, cada um deles partiu para dar rumo às suas vidas de homens feitos; e, assim, um após o outro, eles deixaram o palácio para ganhar o mundo lá de fora, que pouco conheceram em seu desenvolvimento.
Quando finalmente o mais novo da casa real despediu-se emocionadamente de seus chorosos e envelhecidos pais, tomou seu belo e forte mangalarga prateado e ultrapassou os espessos portões da muralha principal, ganhando as ruas da cidade e do reino, para espanto dos transeuntes, que pouco o conheciam. Tinha a firme convicção em sua mente de viajar pelo mundo procurando uma forma venturosa de edificar uma família tão bonita e harmoniosa quanto a de seus pais, e, para tal, carregava consigo apenas o que bastasse para conseguir seu próprio sustento, além de suas armas. E, dali, partiu sozinho para os confins do vasto reino, a fim de encontrar aquilo que ambicionava.
Sem rumo certo, vagava pelos caminhos reunindo tudo que pensava ser necessário para completar sua missão: conversava com o povo, seguia pistas e rumores, ouvia histórias e as guardava em seu coração, pensando sobre tudo o que via, ouvia e sentia segundo sua carga moral e emocional adquirida na criação palaciana. E, desta forma, seguiu esperançoso por incontáveis estradas e trilhas, descobrindo um mundo amplo que lhe fora vedado por tantos anos.
Assim foi adquirindo experiência empírica de como era o mundo, e isso foi tornando-se um choque complicado de digerir. Aprendia que as histórias que sua mãe lhe contava e aquilo que vivia dentro de casa, quando muito o que via através das delgadas vigias das torres do palácio, estavam muito distantes da realidade. A pobreza e aspereza das coisas e da vida abordavam-lhe pela primeira vez, e quão brutal foi aquela experiência…! O trabalho duro, os pequenos ganhos, a tristeza, as decepções, a malandragem e os vícios que se contrapunham às belas virtudes que acostumara-se por sua vida inteira, golpeavam-lhe o espírito todo dia - famílias empobrecidas que nem sequer a segurança do alimento do dia seguinte tinham; crianças famintas que faziam pequenos biscates e trabalhos degradantes por algumas porções de pão e sopa; rumores de tesouros que o levavam a travessas sombrias, apinhadas de ladrões; histórias furadas de cativos necessitados de socorro em torres desertas e decrépitas; contos de bosques encantados que nada mais eram que matagais degradados… O mundo real parecia duro demais, e isto abrandou-lhe as chamas de esperança que aqueciam seu peito até que lhe restasse apenas um paviozinho bruxuleante de pequena chama.
Mas que permanecia teimosamente acesa.
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Os anos se passaram, e esta nesga de esperança e fé que ainda restava no príncipe errático o moviam pelo reino, e além até, em busca daqueles elementos milagrosos que o permitiriam construir uma vida e uma família tão maravilhosa quanto aquela em que fora criado. Após tantos invernos, veio até ele uma oportunidade que lhe parecia ímpar: um velho castelo da fronteira estava infestado por uma alcateia, e uma mulher estava presa lá dentro; os aldeões locais diziam que aquela era uma bela moça aprisionada pela maldição de uma velha feiticeira, e que nenhum homem tivera coragem, até então, de resgatá-la de seu triste destino.
O herdeiro, crente de que aquela era a oportunidade de ter o que queria, não pensou duas vezes em rumar para lá e resgatar a bela - ou morrer em gloriosa tentativa. Para tal, adentrou as enegrecidas muralhas através de uma estreita fenda, o que o obrigou a deixar sua fiel montaria do lado de fora. Espada em punho, contemplou o interior da edificação, que parecia completamente vazia. Desejoso de que não fosse apenas mais um alarme falso oriundo da superstição popular, penetrou os corredores e escadas buscando alguém; mas nada lhe aparecia.
Subindo a última torre, quase desesperado, ouviu um tropel de animais… E seu coração voltou a bater forte! Escalou apressado de dois-em-dois degraus pela estreita escadaria e, pouco antes do topo, deparou-se com… Três cães vira-latas velhos e amedrontados, que passaram espantados por ele assim que o viram, fugindo do perplexo cavaleiro.
Abaixando pesarosamente sua guarda, finalmente atingiu o final da torre: era um quarto pequeno de paredes escurecidas de pedra limoenta, munido de uma única vigia sem grades ou vidros e com o teto de madeira apodrecida caindo aos pedaços. No canto, havia uma mulher… Uma velha de olhar desesperado que lhe encarava fixamente, assustando-o. Maltrapilha e malcheirosa, se fora bela, esses dias se passaram já há muito tempo.
Receoso, resolveu interpelá-la:
- S… Senhora? Precisa de ajuda…?
- NÃO!
- Senhora… Você está bem? Eu posso lhe ajud…
- FORA DAQUI SEU MALDITO! FORA AGORA! DEVOLVA MEUS CÃES E MINHA PAZ! FORA, FORA, FORA…! - e, dessa maneira vergonhosa, a velha pôs o príncipe de reluzente armadura para fora à base de gritos e correria desvairada pelas escadas, com o homem disparando para longe dali, constrangido por mais um retumbante insucesso - o pior e mais vexatório de todos.
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Finalmente esgotado, o príncipe resolveu retomar a marcha para a capital, a fim de voltar à casa paterna. Cicatrizado pela acre experiência da vida como ela é, refletiu que fora criado com seus irmãos quase que exclusivamente intramuros, o que distorceu sua visão de mundo. A criação recebida dentro do palácio, aliada com o seu único exemplo de vivência familiar vindo daquele casal harmonioso que era o casal real, incutiu nos meninos a ilusão de um mundo mágico, repleto de beleza, glória e etérea felicidade, onde tudo daria certo. Viu, tardiamente, que não haviam tesouros escondidos, pedras filosofais, poções do amor, portais para o Céu, seres mágicos ou princesas adormecidas.
Não.
Não havia nada além de uma existência dura e difícil, com homens e mulheres comuns lutando contra os elementos para agarrarem-se ao pão de cada dia, e esquivando-se dos golpes desferidos pelos outros bichos-homens, o único monstro que ameaçava a vida daqueles que queriam construir alguma coisa real e bonita em seus simplórios lares.
A algumas jornadas da grande capital, sentia já o movimento nas ruas e os sons amplificarem-se dos ruídos simples da natureza e da vida interiorana para o vaivém cada vez mais frenético das pessoas e suas atividades laborais urbanas. Sentia uma grande tristeza em seu peito, atrasando o passo; não queria retornar daquela forma: mãos abanando e coração endurecido. Mas… Não tinha jeito… Não havia jeito.
Assim, resolveu ir para o alto de um monte a fim de passar sua última noite antes de chegar em casa.
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Neste monte havia um moinho abandonado. Amarrou seu cavalo do lado de fora e abriu ruidosamente a velha porta para o interior daquela construção. As paredes ruinosas de madeira exalavam um cheiro putrefato de decomposição, e a luz alaranjada do sol baixo do entardecer adentrava pelas suas inúmeras brechas e algumas janelas quebradas, criando inúmeros raios luminosos entrecortando o ar poeirento dali.
Indiferente àquela visão decadente - somente mais uma dentre tantas que vira naqueles anos - o príncipe pôs-se a procurar algum bom lugar para deitar-se e dormir, e foi checar se a escada estava ainda em bom estado para aguentar sua subida até o mezanino que ficava alguns metros acima da entrada. Pisou o primeiro degrau, testando-o, e o rangido que emitiu ecoou no interior daquele local abandonado.
Abandonado?
O príncipe sentiu que havia mais alguém - ou algo - ali. Daquele mesmo mezanino para onde se encaminhava, veio um som de alguma coisa acordando, provavelmente pelo barulho que a escada fez. O príncipe encolheu-se, sacando sua bela espada da bainha, colocando-se em posição de alerta. Fez silêncio absoluto, objetivando escutar mais alguma coisa.
Nada. Por fim, resolveu interpelar:
- Alô! Há alguém aí?
Nada ainda. Resolveu então gritar bem alto:
- ALÔ! HÁ ALG… - interrompido pelo que viu, sobressaltou-se, espantado: um ser fantástico, terrível, alçou veloz voo detrás do mezanino, lançando-se insidioso em sua direção, mas logo rechaçado pelo rápido reflexo do príncipe - também bem treinado guerreiro - que refletiu o avanço daquele ser com o lado cego de sua espada. Sendo arremessado ao chão, sentiu que aquilo que lhe atacava era pesado e forte. Levantou-se num salto e pôs-se em guarda para o próximo ataque, o que não tardou.
Mais uma vez defendeu-se, agora retesado, cônscio da força daquilo que se abatia sobre ele. Emendou logo um golpe ascendente, mas seu inimigo esquivou-se rapidamente, acertando-lhe um afiado e dolorido contragolpe no flanco, absorvido pela confiável armadura. Com um grito, o príncipe recuou defensivamente, tentando enxergar melhor o que se passava, pois o rápido anoitecer mergulhava o moinho em ameaçadora escuridão. Sem conseguir ver onde seu adversário estava, aguçou sua audição e pôde defender-se de um golpe traiçoeiro pelas costas, lançando-se ao chão, logo levantando-se com penetrante espadada, certeira nalgum membro do inimigo, que lançou aterrorizante berro no ar.
- Hahaha! Venha, maldito, VENHA! - o príncipe sentia o sangue correr pelas veias como nunca dantes, e a vida agora parecia fazer todo o sentido. Excitado pelo tão esperado combate, mal podia crer que seu maior desafio viria no final angustiado de sua derrotada jornada. Seus movimentos, ligeiros pela força quase sobrenatural que sentia fluir pelos seus músculos, estavam aguçados e esguios, o que rendeu um belo desempenho contra seu oponente.
Após longo combate, o príncipe pôde desferir o golpe final naquilo que lhe enfrentava, arrancando-lhe um urro bestial absurdamente alto que ecoou pela colina e por toda a região, sobressaltando o povo da cidade logo abaixo. Ofegante, o príncipe guerreiro ria-se enquanto fixava a espada em algum lugar no ventre do seu inimigo, finalizando-o em derradeiros suspiros nos quais esvaía-lhe a vida.
Jogou-se no chão na completa escuridão, ainda tomado pela tensão do combate. Não acreditava no que acabara de ser envolvido, e ficou ali, perplexamente realizado, enquanto sentia seu espírito abrandar-se. Por fim, levantou-se e logo acendeu uma pequena tocha com a mecha que carregava consigo, a fim de contemplar melhor o que enfrentou.
E que espanto!
Era um DRAGÃO!
Não muito maior que um homem de elevada estatura, aquele ser de traços reptilianos, tal qual um absurdo jacaré com grandes asas de morcego, refletia o lume em sua pele escamosa e brilhante. Possuía garras afiadas como adagas e seus grossos caninos eram pontiagudos, o que explicava aquelas investidas cortantes e penetrantes que quase vitimaram o homem. Aproximando-se para um exame mais detalhado da face do dragão, sentiu esvair de sua boca morta um cheiro estonteante de enxofre.
- Que benção que este não cuspia fogo! - pensou alto.
- Amigo…? - alguém chamou, logo acima.
Mais uma vez pôs-se em posição defensiva, na direção daquela voz que o interpelava do alto do moinho. Mas… Logo sentiu-se um tolo assustado, pois a voz era tão doce que não poderia causar-lhe nenhum mal. Confuso ao perceber que havia mais alguém ali, elevou sua pequena tocha, mas a escuridão no alto era difícil de ser vencida, e não conseguiu ver nada nem ninguém lá.
- Aham… Com licença! Quem está aí? - redarguiu o príncipe, para o alto.
- Amigo… Vou descer e logo poderás ver quem sou! - respondeu uma melodiosa voz feminina, o que aqueceu o coração entristecido do matador de dragões.
A fraca luz de sua tocha foi iluminando aos poucos uma bela moça que descia pelas escadas do moinho, que rangiam levemente a cada passo delicado daquela donzela. Chegando mais perto, o príncipe viu que era uma jovem extremamente linda; porém estava com triste aspecto, provavelmente pelo isolamento que sofrera ali. Estudaram-se por algum tempo na solidão daquele silencioso moinho, onde se ouvia apenas o estalar da chama na tocha que ele portava.
Após isso, finalmente deram um passo simultâneo e abraçaram-se longamente - e como era maravilhoso para o príncipe sentir aquele corpo esbelto e tão frágil pressionando contra seu peito endurecido pela armadura e amargura! Suas luvas de malha de aço acariciavam os longos cabelos da moça que escorriam pelas suas costas curvilíneas e delicadas… A respiração dela era tão gostosa, tão profunda, tão emocionada… E puseram-se a chorar de alegria, cada qual pelo seu motivo secreto. Estavam agradecidos por terem um ao outro em seus caminhos tão tortuosos, e ali ficaram, abraçados, por um tempo que parecia eterno, imersos em profundo silêncio, apenas aproveitando a presença muda de um e outro num momento inestimável.
***
Pelo amanhecer, a capital parou para receber o mais jovem herdeiro da linhagem real, desaparecido há muito tempo, cavalgando seu imponente equídeo prateado, levando a bandeira da casa real no alto de sua lança e, abraçada atrás de si, envolvida pela longa capa do cavaleiro, uma bela jovem que ninguém dali conhecia. Arrastando o corpo do dragão pelas ruas através de longa corda amarrada às ancas do cavalo, aquela cena era absurdamente única para todos os que a testemunhavam, perplexos. E assim o casal se foi até o fosso do palácio, que teve sua porta baixada para dar-lhes triunfante passagem, recebidos pessoalmente pelo velho e exultante casal real, felicíssimos por terem seu filho mais moço de volta para casa.
A alegria do jovem herdeiro e sua donzela era radiante, e o povo nunca mais se esqueceu daquele dia. A saga do príncipe seria lembrada por muitos e muitos anos, cantada por belos cânticos, e seus feitos seriam exaltados em vozes e escritos. Sua alcunha jamais seria esquecida, sendo entronizada solenemente pelo imaginário popular: O príncipe errante, matador de dragões e salvador de donzelas!