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Saindo do metrô de São Paulo. Mariana observa as pessoas diferentes dela. Nascida e criada em apartamento. Mais precisamente no 12ª andar. Andava de bicicleta na perigosa avenida do bairro. Viu muitos acidentes, como uma vez que viu um senhor sendo atropelado por um ônibus. Quer dizer, ela não viu precisamente, foi como um flash de luz muito forte que a gente fecha o olho na hora. Ela jogava bola com os meninos do condomínio dela. Uma vez um menino tentou beijar ela, e ela deixou. Só que ele foi mais adiante e tocou o seio dela. O garoto não deixou ela jogar bola no campinho deles. Então ela começou a jogar videogame. Fez alguns amigos assim, mas não se apaixonou por ninguém.
Saindo do metrô de São Paulo ela é abordada por um velho com aparência suja. E fedia. Parecia que não tomava banho a mais de anos. Mariana não imaginou como ele estava dentro do metrô em baixo da terra, ele fedia muito. Ele falou com uma voz rouca e meio louca:
-meenina bonita, não tem um trocadinho? é pra comprar um livro pra minha sobrinha.
Ela olhou espantada:
-o senhor tem sobrinha?
-sim, ela se chama mariana, ela mora num condomínio aqui perto.
Entusiasmada que a sobrinha dele tinha o mesmo nome que ela, ela fala:
-que legal! eu também moro por lá.
-sim, eu te conheço desde criança, mariana.
-ai caralho!
O despertador toca. Chove na janela do 12º andar. Mariana olha para seu quarto como se ainda fosse sobrinha daquele velho no metrô. Seus livros não foram presente de nenhum tio. Ela não havia tomado chá com ele e seus pais, nem nadado na piscina do condomínio. "Será que ele viria aqui se eu chamasse? Porra era só um sonho. Que dia é hoje? Terça-feira! Merda! Hoje eu tenho aquela reunião do estágio!" Se enrosca nas cobertas por um tempo. Levanta meio tonta.
-bom dia filha!
Diz a mãe sorrindo por baixo do jornal de hoje. Ela dá bom dia de volta.
-bom dia mãe. como que tão as mentiras do jornal?
-hoje é só coisas boas- forçando uma risada.
Após um silêncio, a mãe fecha o jornal e o coloca ao lado da torrada mordida.
-filha, precisamos conversar. sobre a mudança.
-mãe, não precisamos. eu concordo totalmente com vocês. pra mim podemos ir pra qualquer lugar.
-não querida, sei que você só fala essas coisas porque acabou de acordar, mas a questão aqui é séria. o lugar que vamos é outro mundo, você nem imagina as notícias saíram sobre aquele lugar uns anos atrás.
-mãe, os jornais só mentem.
-de qualquer jeito, quero saber se tudo está bem. poderíamos pegar um apartamento só pra você.
-não mãe, nem tenta. eu quero independência, não sugar seu salário. acho que vou ser promovida hoje, então daí posso pagar um apartamento logo e te deixo no romance com esse teu namorado.
-filha, (grunido), não é isso!
-tenho que sair mãe. beijos!
Mariana tinha que pegar 2 ônibus para chegar ao seu estágio. Era num bairro novo da cidade. Uma autoestrada e vários prédios enormes e chiques com estilos arquitetônicos muito bonitos. Ao redor, postos de gasolina e concessionárias. Atrás dos prédios, casinhas de alvenaria e mais pra baixo do barranco alguns cortiços. Ficava a 1 hora do centro de São Paulo. Mas ela demorava 40 minutos pois pegava o ônibus com o motorista mais surtado de São Paulo. Mariana acreditava que ele cheirava cocaína antes de dirigir o ônibus. Talvez pra ficar acordado aquela hora da manhã. Talvez nem tenha durmido. O ônibus chegou mais cedo do que esperava. "Ontem deve ter sido uma noite e tanto."
Passou na roleta no condomínio empresarial que trabalhava. O chão tinha um brilho ofuscante, e tudo tinha cheiro de shopping. Menos o escritório de seu chefe, que tinha cheiro de lavanda e outras coisas exóticas.
A reunião foi logo cedo na manhã. Na sala de reuniões. Essa sala tinha cheiro de carro novo. Todas as poltronas eram de couro. E havia uma televisão consideravelmente grande num dos cantos da sala. Passava Ana Maria Braga.
-bem vindos estagiários. não vou demitir ninguém, então fiquem tranquilos. apenas quero que vocês peguem esses envelopes em cima da mesa. cada um deles contém uma missão e um documento importante. a missão de vocês é levar o documento importante para o local que prescreve o envelope. vocês vão em duplas até certo ponto, isso eu garanto, mas depois terão que se virar sozinhos. não vou emprestar o carro pra nenhum de vocês. vão embora.
"Porra, pensou mariana. logo hoje que eu stou podre de cansada. espero que não seja muito longe." abriu seu envelope num canto, virada pra parede. levantou devagar a página e viu o envelope com o documento. só havia isso no envelope. "que merda!" olhou mais uma vez o envelope. dizia PACOTE SEGURO -NÃO ABRIR- mais em baixo dizia: ENTREGAR EM: tal lugar. era do outro lado da cidade. na verdade era do outro lado da cidade que fica do outro lado da cidade quando acaba a cidade. "mas nunca acaba a cidade..." pensou Mariana.
Pela janela do ônibus Mariana não chegou a ver o fim da cidade. Lhe disseram que era logo ali. "Olha moça, logo ali tem o parque industrial e a usina lá, e depois tem a rodovia, aquela lá sabe? E aí depois é só plantação e algumas casas." "Não era o fim da cidade..." pensou Mariana. Decidiu parar de se preocupar com essa lenda urbana e seguiu procurando o endereço da sua missão. Era uma área da cidade que nem sabia que existia. O dia estava chuvoso e cinza, e por isso assim ficou aquela parte da cidade nas sua memórias "Um bairro bem cinza." Era de fato, a rua que ela tinha que ir era uma avenida com corredor de ônibus, e um enorme shopping velho como ponto principal da paisagem. O resto era só casas, algumas bem simples, e o bairro era muito tranquilo, tirando aquela parte onde tinha a aveninda, que era caótica ao extremo. O chão tremia com a passagem dos ônibus. Achou que era por isso que havia mais de um prédio em ruínas muito perto um do outro.
A rua que ela deveria ir era uma transversal da principal, mas não era uma rua tranquila, era uma via de alimentação. Se passavam alimentos aí, não tinha como saber. Tinham carros zero e importados e algumas pessoas de terno e óculos escuros. Como se aquilo fosse uma armadura para enfrentar o caos da avenida em uma transversal. Isso fez Mariana pensar na sua armadura. Olhou para baixo, viu seus pés. Apenas um tênis normal, um pouco gasto. Suas calças apertadas mas de cor sóbria. Vestia uma camisa larga com um casaco de chuva leve por cima. "Pelo menos me serve contra a chuva." E olha pra cima tentando sentir o ataque furioso daquela força da natureza, só para poder sentir seu poder de defesa naquela ambiente hostil. Mas a chuva era garoa, e apenas embaçou seus óculos. Um homem de terno e óculos escuros passa por ela, quase trombando arrogante em seu ombro enquanto ela tropeçava numa raíz de árvore que havia destruído o concreto.
-Olhe por onde anda menina!
-Sinto muito, desculpa.
-Da próxima vez vê se presta atenção ô besta - e vai embora como quem bate uma porta na cara de alguém.
"Filho da puta". Ela nem pensou isso. Estava atordoada da quase queda, de quase sentir a chuva molhando seu rosto, de quase achar o endereço certeiro. Ela para e olha novamente o número. 2456. Ela olha ao redor. " Ali. Finalmente achei essa merda! Porra!" Era um prédio "guardado" por duas árvores enormes. Elas estava verdíssimas e dava flores. As flores caíram todas, deixando o chão mais escorregadio e sujo. Naquela chuva qualquer vão era lagoa. Olhando para a porta no meio das duas árvores enormes, estas lhe pareceram relamente guardiões, e duvidou de que a deixariam entrar. No primeiro passo em direção à entrada já voltou a realidade. Para Mariana, isso significava revirar o estômago quase cheio quase vazio. Como não concluiu nada, nem concluiria sobre a sua atual situação, conclui que deve ignorar esse peso. Como menina inteligente, solta um cuspe simbólico no gramado em frente à entrada. Menina inteligente...
O porteiro estava impassível, cara de dia chuvoso até o interior de seu coração. Ela também. Mas sua face jovem demonstra poder. Poder ser mais volátil e maleável do que esses velhos homens que já desistiram de tanta coisa que só lhes resta sobreviver e achar que são estrelas brilhantes num mundo de luz. Sua garganta, a de Mariana, se fecha como se fosse uma doença instantânea, desenvolvida para matar nossa voz. Ela põe o envelope em cima da mesa. O velho olha. "Ele nem é tão velho." Aponta para uma porta de vidro e diz, sala 45. "Ele é bem jovem na verdade."
Ao cruzar a porta de vidro, Mariana entrara num ambiente hermético. O cheiro de limpeza, ar condicionado e perfume barato (mas caro ao mesmo tempo (ou o contrário)) a fazem entrar em estado de hibernação. Não porque estivesse frio, e estava, mas porque tudo naquele lugar a alienava de forma tão brutal que ela nem pensou em resistir. Seus pensamentos não estavam mais em si mesma, mas sim nas idéias distantes que seu passado trazia como uma rachadura tectônica no fundo do mar. Isso fazia o mesmo que faz com os continentes: dividia ao meio lentamente. Sim. A América do Sul e a África estão lentamente se distanciando. E pensar que um dia foram um lugar só, e que os bichos cruzavam o mar e nem sequer o viam. Imaginem o alívio daquele pedaço de terra quando foi invadido da água violenta. Quando teve seu vazio preenchido de forma violenta e permantente, quando sua rachadura virou aquário.
-Pode entrar.
-Oi? Ah! Sim, vamos lá.
-Qual seu nome?
-Mariana.
-E você é estagiária né?
-Sim, vim trazer isso.
-Certo, entendi, deixe-me ver.
O homem abre o envelope, dentro há outro envelope. Ele olha especificamente o destinatário, ou seja pra quem ele vai. Arregala os olhos como se fosse atingido de súbita iluminação indesejada. Então ele encarcera o envelope numa gaveta e volta a expressão amigável. Sua transformação foi notável naquele momento. Deixou Mariana curiosa, e quando ela fica curiosa, seus olhos se arregalam de forma que não há como esconder que algo está passando pela sua cabeça muito fortemente naquele momento. O homem inclina a cabeça para esse interesse súbito, como se fosse indesejado.
-Então é isso. Avisarei a central que recebi tudo certo, tudo ok. Pode ir agora.
-Tá... Certo.
Ela sai do prédio e passa pelas duas árvores enormas para chegar à rua. Quando pisa na calçada com seus buracos e imperfeições inerentes, se sente como se tivesse saído de uma prisão. Lembrou de cenas de vários filmes. "O ângulo seria baixo, pra mostrar a imensidão dos muros da prisão. Um único movimento, que é a porta pesada de metal abrindo e a personagem sai. Ela fecha os olhos, como se não visse luz do dia por muito tempo. Tudo que tem nas mãos são seus pertences, uma maleta, duas fotos, e um casaco ipermeável.
Logo a exitação de sair da prisão dá lugar à uma brutal visão da realidade: a personagem acende um cigarro." Mariana acende um cigarro também. Coloca os fones de ouvido e caminha de cabeça baixa para onde imagina que seja seu caminho de volta, sem pressa. Ela quer ouvir Nação Zumbi. Andava fissurada pelo Chico Science. Nesses meses desde que terminou o ensino médio, só ouvia Nação Zumbi, cantarolava por aí. Era a época em que descobrimos quem são os carangueijos do mangue, e nos identificamos com eles. "Os urubus..." pensou, e num suspiro profundo, abandona o portal de árvores.
Planejava fugir. Seus planos não eram bobos, realmente aconteciam. Se fossem pra dar errado ou meio certo, preferia nem planejar.
Ia terminar o álbum do Nação Zumbi e daria um jeito de voltar, e voltando, decidiria pra onde.
Com um café na mão e um cigarro na outra, caminha em direção ao metrô. Teria que fazer alguma baldeação. Como ainda faltavam alguns minutos no álbum que tocava no fone de ouvido, decidiu ver o trampo dos artesãos na frente do metrô. Ficava fascinada com esses resistentes que viviam vendendo sua arte na rua. Realmente se emocionava em estar ali na sua presença estranha e deslocada do que deveria ser a paisagem normalizada das metrópoles. Queria conversar com todas aquelas pessoas que faziam da calçada movimentada uma vitrine suja. Parou na frente de um homem que sentado, parecia até durmindo, ou desmaiado. Não havia artensanato, apenas um chapéu com uma folha escrito: UMA MOEDA PRA COMPRAR UM PRESENTE PRA MINHA SOBRINHA. Mexeu nos bolsos para contar as moedas. Como se tivesse um compromisso marcado, apressada, mexeu nos bolsos procurando uma moeda. Só achou uma nota de cinco reais. Era sua passagem de volta pra algum lugar. Fica ali com aquela nota na mão, e o homem nem se mexia. Nem o vento que soprava balançava seus cabelos sujos. Pensou em ganhar um presente. Já era dezembro. Deixou a nota no chapéu e entrou no metrô. Pulou a catraca.