Welcome to Pão de Açúcar
Lá estava Gorete, há quase uma hora, apoiado com os pés em duas fissuras, com a mão esquerda segurava numa minúscula fenda de um bloco rochoso de gnaisse-granito, tentando alcançar com a mão direita um ponto de suporte acima de sua cabeça. Ele dizia para si mesmo: “mantenha o corpo ereto, confie na sapatilha, dê impulso com a perna direita, não olhe para baixo, confie na corda de segurança”.
A cerca de dez metros acima, ancorado em um grampo fixado à rocha e dando segurança ao parceiro de escalada, encontrava-se Sidney Mar que naquele momento dizia:
— Vamos, Gorete, você consegue! Faça como eu fiz. Mexa com a cintura, é o lance do “rebola-rebola”, e num movimento pendular salte e segure na agarra superior.
— Camarada, tá difícil. Tenho quase certeza que não conseguirei alcançar. Você tem mais de um metro e oitenta, eu não chego nem a um e setenta. Tenho que arrumar outro jeito de vencer este lance. — respondeu Gorete com a voz cansada.
— Cara, já te falei. Não há outro modo e não dá para voltar. Tem que tentar. Qualquer merda eu tô na segurança.
Os dois personagens desta pequena narrativa estavam “agarrados” na face de uma montanha a mais ou menos uns trezentos e cinquenta metros de altura, já bem próximos de alcançarem o cume. De longe pareciam duas lagartixas grudadas na pedra. De perto pareciam dois escaladores profissionais.
A cena acima poderia ser vista por qualquer pessoa quem estivesse na Urca ou num barco na enseada de Botafogo olhando de binóculo para o Morro do Pão de Açúcar, o maior cartão-postal da cidade do Rio de Janeiro e um dos mais famosos do Brasil.
Para que se tenha uma ideia da visão do vazio que Gorete tinha quando olhava para baixo, é simples: basta se imaginar pendurado na parede externa do último andar de um edifício de cento e dezesseis andares, tentando alcançar com a mão direita à borda da mureta do terraço.
Como todos sabem, é possível se chegar a um determinado lugar por caminhos diferentes. E dependendo da escolha, no percurso, podemos encontrar rosas ou espinhos, ou ambos. Até mesmo não se chegar a lugar algum.
Gorete, ainda que conhecedor desse ditado popular, fez a opção de visitar o Pão de Açúcar por uma das vias mais difíceis. E agora está no meio dos espinhos tentando achar um modo de continuar na jornada, porque não tem mais como desistir e voltar.
Mas quem é Gorete? Esse homem de estatura baixa que não consegue alcançar a agarra acima da sua cabeça e continuar avançando na escalada. Será ele um aventureiro com pouca experiência ou um turista que escolheu o percurso errado para chegar ao topo do Pão de Açúcar? E Sidney Mar? Será o nosso herói que conseguirá ajudar o amigo a sair daquela situação, ou ele continuará subindo sozinho?
***
Dois Meses Antes...
Gorete tinha acabado de chegar à loja de material de esporte de aventura, “Escaladas e Trilhas”, na Rua da Alfândega, no centro do Rio. Enquanto examinava um novo modelo de mochila da “Deuter”, avistou uma pessoa parada em pé próxima à estante de cordas e mosquetões.
Tratava-se de um rapaz alto, talvez um pouco menos de um metro e noventa. Cabelos curtos e escuros. Não devia passar de trinta e cinco anos.
— Bom dia, amigo! Você pode me ajudar com estas mochilas? — disse Gorete, com uma Deuter cargueira nas mãos.
— Se eu souber, ajudo. Mas seria melhor perguntar a um vendedor ali no balcão. — o rapaz respondeu educadamente.
— Oh, desculpe-me. Pensei que você trabalhasse aqui.
— Não tem problema. Estou aguardando o Bira, o gerente da loja.
— Olá! Como vai? Chamo-me Luiz Sérgio. — disse Gorete, se aproximando e estendendo a mão para cumprimentar o rapaz.
— Tudo bem. Sou Sidney Mar. — ele respondeu apertando a mão de Gorete e continuando a conversa diz: — Eu tenho duas mochilas da Deuter específicas para escaladas, elas são realmente muito boas.
E ali, na loja de material de esportes, os dois, Gorete e Sidney, se conheceram e conversaram, por quase uns trinta minutos, não só sobre equipamentos e acessórios, mas também sobre escaladas e trilhas em montanhas.
Na conversa, Sidney Mar ficou sabendo que Luiz Sérgio, chamado de Gorete por seus familiares e amigos, era aposentado, mas continuava trabalhando na área de educação. Praticava, por hobby, corrida de montanhas e, junto com a esposa, Paula Maria, realizava trekkings no Brasil e nos Andes. Sobre Sidney, Gorete soube que ele tinha trinta e dois anos, praticamente a metade da sua idade, que era escalador profissional e, junto com o pai, administrava a empresa familiar “B7 Aventuras” que além de ministrar cursos sobre técnicas para subir em grandes alturas, conduzia escaladores em montanhas.
Gorete propôs continuarem o papo em outra oportunidade, porque já estava atrasado para um compromisso profissional em Botafogo. E antes de se despedir, disse:
— Anote o meu celular.
Digitando o número diretamente no smartphone, Sidney respondeu:
— Eu moro na Barra da Tijuca. Onde poderemos nos encontrar? Fiquei bastante interessado em continuar o nosso papo sobre a sua experiência de trekking em altas montanhas?
— Ótimo. Também moro na Barra, ligue-me para acertamos um local. — Respondeu Gorete já na porta de saída da loja.
Na terça-feira à noite, na semana seguinte ao encontro dos dois montanhistas no centro do Rio, Gorete, como de costume, depois de jantar e ajudar a esposa a lavar os pratos, dirigiu-se para o quarto de hóspedes que usava como escritório, um “home office”.
Na tevê da sala, o jornal das oito divulgava a notícia de mais uma fase da “Operação Lava Jato”.
Assim que entrou no “escritório”, ligou o computador para fazer uma pesquisa na internet sobre uma trilha que estava planejando fazer nos Andes bolivianos.
Naquele dia havia se lembrado do encontro que tivera com o escalador que também morava na Barra. Por mera curiosidade acessou o site da loja “B7 Aventuras”.
Ele adorou assistir aos vídeos, ler os conteúdos das aulas práticas e os relatórios das principais excursões e escaladas realizadas. Recordou-se das escaladas das quais havia participado na juventude e pensou na possibilidade de realizar um curso ou um treinamento com o novo amigo. “Vou conversar com a Paula e saber o que ela acha”, murmurou pra si mesmo.
— Querida, pode dar uma chegada aqui. — Ele gritou de modo suave, sem sair de frente do computador.
— Um instante. Estou terminando de preparar um café. — Respondeu a esposa no mesmo tom de voz.
Poucos minutos depois, Paula, com uma pequena bandeja nas mãos, serviu o café e sentou-se ao lado do marido. Ele começou a conversa falando como havia conhecido Sidney na loja no centro da cidade. Em seguida, mostrando e navegando no site da loja “B7” comentou que gostaria de fazer um curso básico de escalada.
— O que você acha? — Gorete, colocando a sua xícara na mesinha ao lado e recolhendo a da sua esposa, perguntou.
— Não sei. Tenho dúvidas. Você não é mais um jovem como deve ser esse seu novo amigo. Os riscos de acidentes em escaladas são bem maiores que nas trilhas.
— Sim, você tem razão. Mas eu gostaria de fazer apenas o básico, escaladas elementares.
— Sidney está muito interessado na nossa experiência de trekking em altas montanhas. Ficamos de nos encontrar, para um papo, aqui na Barra. Você não gostaria de ir comigo?
— Não, não gostaria. O assunto sobre escaladas não me interessa. Prefiro continuar no mundo das caminhadas e trilhas.
— E sobre eu voltar a escalar? Qual a sua opinião? — insistiu o marido.
— Gorete, você já viveu o suficiente para saber o que é bom e o que ruim. O que pode e o que não pode fazer na vida. A decisão é sua. Mas não pense em me envolver nessas aventuras. — disse a esposa se levantando e caminhando para sala de visitas.
De que serve a imaginação senão para visualizar e saborear a possibilidade de realizar algo na vida, de transformar um sonho descontinuado em realidade. Não podemos esquecer que sonhar é uma capacidade dos seres humanos. Foi com esse pensamento que Luiz Sérgio, depois de alguns cochilos, sentado à mesa da escrivaninha, foi para o quarto e adormeceu.
O encontro do escalador com o montanhista foi acertado por meio de troca de mensagens no WhatsApp. Combinaram uma pizza no sábado daquela semana, no “Frontera”, próximo à estação do metrô do Jardim Oceânico, no início da Barra.
Como era de se esperar, a conversa poucas vezes não tratou de escaladas, montanhismo e expedições de aventura. A esposa, que no primeiro momento disse que não iria, acabou acompanhando o marido e, de certa forma, curtiu o momento. Sidney demonstrou interesse e fez muitas perguntas ao casal sobre as trilhas realizadas nas montanhas do Peru e da Bolívia. Ele gostou de ouvir os comentários de Paula sobre as dificuldades de se chegar a cinco mil metros de altitude e dos momentos mágicos da expedição à Salkantay, que ela e Gorete tinham realizado há um ano nos Andes peruanos.
Depois de duas pizzas médias, cinco chopes e sessões de fotos nos celulares sobre as aventuras realizadas, a conversa mudou para assunto de grande interesse de Gorete: curso básico e treinamento de técnicas de escaladas. Após várias explicações e sugestões de Sidney, eles combinaram uma programação para um período inicial de dois meses, a ser realizada na Pedra da Gávea e no Parque Nacional da Serra dos Órgãos. O detalhamento dos dias, horários e locais das atividades foi realizado enquanto esperavam a conta do restaurante e anotado por ambos diretamente na agenda do celular.
Já na porta de saída do “Frontera”, Sidney disse:
– Putz! Esqueci-me de comentar um detalhe fundamental para facilitar o nosso treino.
— Diga! — Disse Gorete, passando o celular pra esposa e pedindo que ela concluísse a chamada para o “Uber”.
— É o seguinte: seria muito bom você ler o livro do Flávio e da Cintia Daflon. Se não me engano chama-se “Escale Melhor e com Mais Segurança”. É um manual fácil de entender e que traz informações atualizadas sobre equipamentos, nós, técnicas de escalada, segurança e muito mais.
Gorete, além de ler o livro recomendado, intensificou seu treinamento físico individual e, apesar da grande diferença de idade, acompanhou Sidney nas diversas atividades utilizando corretamente as técnicas de agarras de mão, de subidas livres, de fendas, de chaminé, de trocas de pés e mãos e de rapel, sem demonstrar cansaço ou falta de agilidade no corpo para se movimentar de baixo para cima, às vezes quase verticalmente, nos trechos das escaladas.
E tudo aconteceu como planejado e programado sem novidades, até que...
Ao concluírem a escalada da Agulhinha da Gávea, pela via Jorge de Castro, último evento da programação, na caminhada para o estacionamento, Sidney elogiou o montanhista pelo excelente desempenho no treinamento e propôs que eles fizessem mais uma escalada, ainda no Rio de Janeiro para facilitar à logística, mas em uma montanha com nível de dificuldade intermediário.
— O que você acha?
— Acho uma excelente proposta. Seria a nossa escalada de fim de curso. A prova final. — disse Gorete, que naquele instante colocava a mochila no banco traseiro do carro.
— Não! Não seria uma prova final. O teste da nossa fase de treinamento e do curso foi hoje e você tirou quase dez. Seria o seu primeiro evento depois do curso, digamos o seu “batismo” na modalidade de esporte radical de montanha. O Seu “welcome” à escalada tradicional.
— Ok, entendi. Vamos em frente. Eu topo. E qual seria o desafio?
Sem muito pensar e já sentado no banco do carona, Sidney disse:
— Dedo de Deus ou Pão de Açúcar?
Gorete dá partida no carro, manobra no estacionamento e inicia o percurso de saída do Parque Nacional da Tijuca pela Estrada das Canoas em direção à São Conrado. De repente diz pra si mesmo: “Dedo de Deus ou Pão de Açúcar. Caramba! Quase um dilema, as duas opções são fodas”.
— E aí? Decidiu? — disse Sidney, virando o rosto para o amigo e oferecendo-lhe uma maçã.
— Se você já confia em mim como parceiro para escalar essas duas montanhas de referências no Brasil, eu topo. Vamos iniciar pelo Pão de Açúcar. Ok?
— Tudo bem. Ótima escolha. Ainda esta semana lhe enviarei uma sugestão de data.
***
Dias atuais...
Era uma segunda-feira de setembro, conforme tinham combinado, às cinco e dez da manhã, os dois amigos, após deixarem os carros estacionados na Praia Vermelha, iniciaram a pequena caminhada pela pista Cláudio Coutinho em direção à trilha que os levaria ao ponto de início da escalada. O alvorecer do dia tornava o visual da montanha junto ao mar da Baía de Guanabara um cenário único. Apesar da experiência de Gorete e Sidney em montanhas no Brasil e no exterior, eles não resistindo àquela beleza natural interromperam a caminhada e tiraram diversas fotos, inclusive selfies.
Um pouco antes das seis, Sidney, o número um da corda, também chamado de guia, iniciou a subida do primeiro lance da escalada. Segurando nas agarras e nas fendas, quase invisíveis de tão pequenas, ele se movimentava com leveza, parecia um calango na pedra. Gorete, o número dois, permaneceu junto ao solo controlando a corda de segurança que, no caso de um acidente, limitava a queda a dez ou quinze metros. Quando o guia alcançou um local seguro e montou o dispositivo de segurança, ele gritou para o parceiro subir. Agora era Sidney quem dava segurança à Gorete. Essa era a sequência que se repetia: o número dois dava segurança ao número um. Em seguida, invertia e o um apoiava o dois. Depois do primeiro lance vieram outros e outros. E tudo acontecia com certa adrenalina, mas dentro do previsto. Até que...
“— Camarada, tá difícil. Tenho quase certeza que não conseguirei alcançar. Você tem mais de um metro e oitenta, eu não chego nem a um e setenta. Tenho que arrumar outro jeito de vencer este lance. — Respondeu Gorete com a voz cansada.
— Cara, já te falei. Não há outro modo e não dá mais para voltar. Tem que tentar. Qualquer merda eu tô na segurança.”
Gorete olha para o relógio, sua mente não para de trabalhar em busca de uma alternativa: “Estou aqui há quase uma hora e ainda não decidi o que fazer. Sei que algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso desde o início, não por covardia, mas por sua própria natureza. Mas não aceito o insucesso. Não aceito ser retirado daqui por Sidney que é craque em técnica de resgate. Até agora venci os desafios do curso e do treino básico. Preciso agir e mudar essa situação. Tem que haver uma saída...”.
— Gorete, você está me ouvindo?
— Sim, pode falar.
— O nosso tempo esgotou, temos que avançar. Estamos parados há mais de uma hora, poderemos ter cãibras. Vou mudar o dispositivo da amarração e descer de rapel para te resgatar. Fique pronto para seguir as minhas instruções. Ok? — Sidney falou em voz alta, mas sem demonstrar estresse.
— Tudo bem. — respondeu o parceiro num tom sem ênfases, demonstrando que estava de certo modo conformado.
Em seu momento de reflexão, o nosso personagem, agora que todos já sabem não se tratar de um escalador profissional, tampouco de uma pessoa com experiência, e sim de um iniciante naquela modalidade de esporte radical, foi invadido por um forte sentimento de fracasso. Aquilo nunca havia ocorrido com ele em suas muitas aventuras de montanhas.
De repente Gorete muda o semblante, parece que se lembrou de alguma coisa.
– Ah, tive uma ideia! – ele exclamou.
– Sidney, quando você falou em resgate, lembrei-me do prusik. O que você acha de eu usar este nó para subir pela corda de segurança que poderá ser fixada num grampo aí em cima? Durante o curso você mostrou-me várias vezes no livro esta técnica para ascender em uma corda fixa.
– Sim, sim, existe este recurso, mas não tivemos oportunidade de exercitá-lo. Você lembrou-se da teoria e da figura do livro. Contudo, nunca praticou e agora ancorado na pedra, exposto a uma altura de mais de trezentos metros, não é o momento para executar tal manobra pela primeira vez. Prefiro descer e te apoiar nesse lance final.
– Sei que a segurança sempre está em primeiro lugar. Mas seguindo a sua orientação, acho que consigo realizar a manobra e subir pela corda com apoio do prusik. Vamos fazer uma única tentativa. Concorda?
– Ok! Mas não se deve utilizar a corda de segurança, eu tenho outra de quinze metros. Vou tirá-la da mochila, fixá-la no grampo e a lançarei para você.
Fizeram o que fora sugerido e deu certo. Logo chegaram ao final da escalada.
No cume, enquanto Sidney recolhia o material e enrolava a corda, Gorete, sentado em uma pedra, admirava o visual do Rio de Janeiro, comia uma maçã e tomava isotônico. Ainda não estava acreditando que havia superado o medo e vencido o último lance “prusikando”. Finalmente havia escalado o “Pão de Açúcar”.
Parando de arrumar o material e olhando diretamente para Luiz Sérgio, Sidney disse:
– Parabéns. Bem-vindo ao mundo dos escaladores. “Welcome to Pão de Açúcar.”
Antes de iniciarem a trilha que os levaria à estação do “bondinho” daquele ponto turístico, Gorete agradeceu ao amigo pela confiança e oportunidade de escalarem juntos
A descida não foi de rapel como costuma ser naquele tipo de aventura. Os dois amigos pegaram o bondinho e juntos com os turistas desceram confortavelmente até a Praia Vermelha.
No estacionamento eles se despediram e cada um seguiu para o seu carro.
Ao se afastar, Gorete disse por cima do ombro:
– Até a próxima escalada.