No que consiste deste livro vir parar nas suas mãos. 
Não porque tenha sido uma obra do acaso.
A sua ação o fez procurá-lo.
Este é o seu cavalo, passando selado
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Master Coach Franklin Rodrigues

Prefácio
Não morrerei com uma ideia fixa!”. Cheguei a essa conclusão depois de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis enquanto cursava letras na faculdade nos meus quarenta anos de idade. As coisas teriam sido diferentes caso eu tivesse lido antes? Minha dúvida não mais importa agora. O que vale é chegar a essa conclusão a tempo de perceber a intenção e qual era a mensagem de Machado: pessoas não podem deixar de realizar seus sonhos! A frustração de não se ter desejos, metas e sonhos realizados, ainda em vida, causa muita dor de consciência. Conquistar sonhos faz de você uma pessoa mais feliz, realizada, desfrutando de um belo conforto existencial; mesmo que essa felicidade seja aquela da hora do leito da morte; Brás Cubas não desfrutou disso, morreu com um emplasto pregado a sua mente e levou consigo dores de consciência. Por isso caro leitor, não destrua o seu sonho. Não morra com uma ideia fixa sem que a realize! Eu, pela terceira vez início outra meta, um desafio a mais, mas com a sua ajuda o terminarei. Será como minha redenção, meu resgate e você faz parte disso.
Todas as minhas formações em coaching, e outras tantas, relacionadas com o meu crescimento pessoal, profissional e financeiro me mostraram desde o início qual seria o caminho das pedras: aonde eu deveria pisar para chegar até a minha primeira meta. Ressignifiquei todos os meus valores e conceitos, meus mapas mentais. Passei a acreditar que tudo é possível; desde que nos disponhamos a alcançar tudo com a devida coragem, a honestidade, a hombridade e a autorresponsabilidade, o autocoaching. Tudo alinhado com a autenticidade e a solidariedade.
Este primeiro volume inicia o meu sonho maior: ver os meus leitores de todas as partes e de todas as classes felizes e em crescimento enquanto o leem. Realizando metas, partindo para as ações e com o foco na direção de seus sonhos realizáveis.  Convoco vocês leitores a serem meus cumplices e conhecerem mais dessa minha conquista. Tudo isso tem um propósito para mim. Tenha o seu propósito também; um que fará com que você possa sentir o mesmo que eu: estar relendo este livro, sentado confortavelmente à beira de uma janela observando o céu enquanto chove, numa sensação de tranquila realização.
 Este primeiro volume é o embrião “Das Crônicas de Thor Grael e a Flauta Mágica, Aventuras e Processo em Coaching”. É dividida em três volumes: “Quando os Anjos Não Dizem Amém” e “O senhor dos Vidros e a Flauta Mágica”; que serão lançados posteriormente. Todas com a mesma proposta.
Quando se fala em processos em coaching pairam dúvidas, mais pela falta de conhecimento que pelas centenas de tipos destes processos que apareceram nos últimos 17 anos no mundo e, especialmente no Brasil, causando confusões — cada qual com a sua proposta; temos espaço para todos —. Mas uma coisa é certa: quando passamos por um processo em Coaching mais científico e ortodoxo, percebe-se mudanças; essas acontecem a cada semana e, fazendo do uso correto das ferramentas aqui propostas, orientadas por mim, mesmo que subliminarmente, aprenderemos a mudar de comportamento, buscando novos desafios sem medo. É gratificante ir buscar e alcançar a nossa tão sonhada primeira meta; sem que para isso, tenhamos que destruir nossos sonhos. Assim, estejam conectados com essas crônicas como se fosse suas personagens, leiam com bastante atenção cada sessão de cada capítulo: elas serão como sessões em coaching. Os parágrafos foram elaborados para uma leitura de fácil entendimento; tudo pensado por mim. Enquanto vão se passando as sessões contidas nos capítulos, adquire-se conhecimento e, percebe-se, aonde, a cada instante, esta obra faz de você uma nova pessoa, através de suas personagens, que estarão sempre focados em atingir o que desejam. Use dos exemplos deles.  
As crônicas mostrarão como se deve proceder diante dos desafios da vida e ter fé no que se deseja; encontrar o melhor caminho e escolher as pedras mais seguras para pisar e seguir adiante — cruzar o riacho das adversidades sem desistir jamais —. Os personagens o ajudarão nessa mudança comportamental, basta que siga seus exemplos, repito. Adquirindo esse seu primeiro volume, tenha em mente uma meta, aliada ao seu desejo, clara e realizável, não para o mês que vem, mas para daqui há um tempo; tempo esse, no qual, você saiba que será possível alcançá-la. Faça isso e anote, paras que você a leia todos os dias. Acredite na sua mudança comportamental e leia cada sessão de cada capítulo deste primeiro volume sabendo que estará adquirindo as melhores ferramentas em coaching, aprendidas e aplicadas por mim, nesses seis anos como Coach e, posteriormente, como Master Coach. 
   
Estas crônicas surgiram como uma meta minha focada num futuro próspero e realizável. Não foi uma explosão de ideias, coadas e transformadas numa única ideia genial; daquelas que nos aparecem depois que se lê um bom livro. Foi o meu maior sonho, o meu suor, o meu desejo, o meu planejamento para a vida, meus insigths. Assim, como uma mágica o desejo se realiza e, esse vem suspenso numa nuvem: é só copiar e colar. Essa ideia permanecerá para sempre na minha vida; porém, como uma ideia fixa realizada; eu poderia morrer tranquilo. Este é mais um triunfo meu, carregado de êxitos.

Se você está lendo este prefácio agora, saiba que tudo se iniciou numa vontade minha de mudança, numa visão de mundo transformada em crônicas,  muita leitura e aquisição de conhecimento na área — que é ação —, os cinco anos de cursos em coaching e outros tantos mais, o primeiro título, outros dois títulos, um instrumento musical, uma melodia, uma partitura, a mágica, um herói protagonista, suas aventuras e os personagens que o cercam, seus significados.  Três histórias e uma centena de situações que, depois de digeridas pelo leitor, seja este jovem ou adulto, o alimentará, sem corrompê-lo, pois, a finalidade é a de provocar mudanças comportamentais; pelas suas vontades próprias, dos exemplos e dos conhecimentos que os personagens trarão até o leitor. Cumpra com coragem a sua tarefa; aquela que determinou para si e seja permanente na execução, entenda, compreenda até aonde quer chegar. Realize a tão sonhada meta e alcance a tranquilidade de se ter conquistado, com êxito, o seu sonho, daqui há uns anos, uma vez que esse é o maior te todos os desejos de um ser humano.

Desde de que comecei a escrever — e não tem tanto tempo assim — procurei ser confortador para com cada linha, frase e parágrafo; rebuscar e enevoar de dificuldades a trajetória do leitor não eram meus desejos e isso se tornou, também, uma ideia fixa. Produzir algo que traga justamente o que expus anteriormente: felicidade, prazer, paz e tranquilidade, conforto, desejos de conquista, cumprimento de ações, conhecimento e sonhos realizados. — mais uma vez: esses nunca poderão ser destruídos —. Estado de sublimação, isso mesmo, sublimação... é deixar mais leve o leitor depois de um dia tenso no trabalho, é relaxar seus ombros tesos com humor e lazer, enquanto aprende sobre si mesmo. Ocupar a mente com o que realmente interessa: aquisição de conhecimento interior sem pressão; fazer do passar de páginas um exercício despreocupado, transformando o ato de ler num flutuar sem gravidade e, com a minha boa intenção oferecer ao  leitor algo útil; uma maçã colhida na árvore do mistério para que a morda e sinta, desde então, um dos prazeres que lhe foram tolhidos no paraíso: o de imaginar seu mundo, sua própria criação mental em imagética — imagens fixas ou em movimento em cento e oitenta graus — , numa projeção. A fanopéia, como diria Ezra Pound, do seu sonho, a sua realidade mental tangível, que acontecerá todas as vezes que se dispor a ler as sessões contidas aqui.
Nesse processo o tempo é nosso melhor amigo e aliado. As nossas conquistas dependem do foco que temos para cumprir nossas ações. Somente assim, alcançaremos nossos sonhos, nosso estado de desejo futuro e nossas tão sonhadas abundância e tranquilidade e a felicidade de se ter, pelo menos, um dos nossos desejos realizados.
Três livros robustos com suas mil duzentas e quarenta e oito páginas, divididas em três volumes de quatrocentas e dezesseis páginas, não são três corvos sombrios, pousados no braço esquerdo de uma cruz numa tempestade noturna com ventos e raios. Coragem, não os espante! Deixe que eles gritem. São apenas livros.
O ato de pegar e folhear as primeiras páginas deste primeiro volume, além do que se espera é um ato de libertação. Um célebre encontro dialético entre o leitor e a obra, entre o criador e a criatura. Liberte este livro e eu serei, não somente liberto, mas salvo; e você também. Ajude-nos um ao outro; estou sendo solidário. Tenha coragem! e o leia  até o final, para que o processo e a mudança comportamental aqui propostos façam as novas conexões cerebrais, permanentes e necessárias que levam o leitor a se comportar como deve na direção de sua meta; afinal de contas não é isso que todos procuramos, subir para alcançar o topo em nossas vidas, nossa prosperidade, nos sentir super-humanos? Isso é o que vale a pena. Isso é o que proponho.
Creio que posso oferecer ao leitor um bom livro. Fonte de alimento regulatório, permanente e transformacional. Um dispositivo que desperte a curiosidade de começar e terminar de ler; seja essa leitura com o interesse de passar por um processo em coaching, que é a proposta maior dele, ou, o de ler uma aventura. As duas formas talhadas em crônicas são válidas. É liberdade para com os leitores, para decidam em que parte do mundo se quer viver. Isso é proposital, uma ambiguidade, na qual a forma não interessa. Elas moldarão o seu comportamento, mudarão seus conceitos, os seus valores ficarão mais latentes prontos para uma autoavaliação permanente.
 Obrigado.
 
Existem as Flautas Mágicas de Mozart e Dickson, agora publicou-se as Crônicas de Thor Grael e a Flauta Mágica. Esta obra, assim como aquelas é única.
Master Coach Franklin Rodrigues
 
 
 
 
 
 CAPÍTULO PRIMEIRO
A Coragem e o Medo
SÉCULO IV d. C.
"Em toda parte a covardia é desprezada, em toda parte a bravura é estimada. As formas podem variar, claro, assim como os conteúdos: cada civilização tem seus medos, cada civilização suas coragens, mas o que não varia, ou quase não varia, é que a coragem, como capacidade de superar o medo, vale mais que a covardia ou a poltronice, que ao medo se entregam. A coragem é a virtude dos heróis; e quem não admira os heróis?"
 André Comte-Sponville

1ª Sessão: A Coragem

Cercanias de Adrianópolis, região da Trácia, Europa, 378 d. C.
Bradam gritos de sessenta mil cavaleiros ostrogodos vindos do alto de uma colina. Dessem cavalgando velozes. Chegam a tempo de socorrer os quinze mil homens do exército visigodo numa batalha sangrenta contra cerca de quarenta mil soldados das legiões romanas comandadas pelo imperador Valente do Império Romano do Oriente e pelo seu sobrinho Graciano, imperador do Ocidente. As legiões romanas lutavam juntas e eram compostas pelos dois impérios que foram divididos há algum tempo. Os Ostrogodos desciam das colinas, nessa região nas cercanias de Adrianópolis, vindos por dois flancos. Suas cavalarias eram imbatíveis e surpreenderam desagradavelmente os imperadores romanos.
Fritigerno, o comandante godo, que já esperava por essa ajuda dos ostrogodos, mesmo antes que essa batalha começasse mandou que seus homens queimassem tudo ao seu flanco de defesa. Um flanco em forma de círculo; confundir e atrasar os romanos era essencial até a chegada inesperada dos aliados ostrogodos. Fora uma estratégia estupenda de pura perspicácia. Sem muito esticar sobre como tudo isso iniciou, serei breve em dizer que essa foi uma das maiores e mais sangrentas batalhas do século IV d.C. Um lamaçal de sangue que envermelhava todo o campo de batalha por uns três quilômetros. Eram provações indescritíveis aonde homens gritavam e cavalos relinchavam num pisotear de corpos, que dificultava as investidas tanto de um lado como de outro. No entanto, com a chegada das duas cavalarias ostrogodas o quadro de guerra inicial, a favor romanos em maior número mudou. Cercados pelos dois flancos, direito e esquerdo, e pela retaguarda, sendo impedidos de subir pelas colinas íngremes, as legiões romanas iam sendo sufocadas, massacradas, sucumbindo rapidamente além do esperado. Com a chegada da imensa cavalaria inimiga os soldados romanos se desmantelavam em tentativas de vitória. Já não tinham a firmeza estratégica de um exército que passava por cima de tudo e de todos; dispersos, desorientados; nem de longe tinham a excelência, a força e a bravura, marca registrada dos exércitos romanos, que davam medo em qualquer exército adversário.
Valente, vendo seus homens sendo dizimados teve que tomar uma decisão, contudo, essa não estava à altura de um imperador vitorioso. Volveu à segurança de seu ponto de observação e procurou socorro em Graciano, mas este e o que restara de seus homens já se havia retirado em fuga. Ao invés de recuar, o que seria mais inteligente e menos arrogante, Valente puxou pela sua espada, colocando-a ao alto e conclamou os paladinos, sua guarda pessoal. Eram cerca de quinhentos homens e eles aguardavam ansiosos pelo conclame. Posicionados num local estratégico à retaguarda. Assim que viram a espada de valente brilhando em acenos intermitentes, também puxaram de suas espadas ao alto. Em gritos de viva o Império Romano, descambaram em formação com seus cavalos velozes de encontro a empreitada suicida. Quando chegaram no campo de batalha se misturaram aos milhares de corpos e cavalos que jaziam embebidos do sangue que escorria para todos os lados pela terra sulcada de insensatez.
Valente, protegido por todos os lados pelos seus melhores paladinos, cavalgou subindo pelos corpos. Usando de sua espada com a destreza que as usam aqueles que foram bem treinados em lutas desde a infância escolhia cortar cabeças e enfiar a espada entre o pescoço e a escápula dos inimigos. “Assim, morrem mais rápido”, certificava-se a cada estacada. No entanto, a essa altura dos acontecimentos, suas habilidades marciais não foram suficientemente eficazes para suplantar as forças e a coragem dos soldados inimigos. Quase todos os paladinos, seus protetores, foram asfixiados; mortos pelo contingente adversário em maior número. Em consequência disso e vendo que tudo estava a se perder, muitos soldados, do que restava das legiões romanas, se dispersaram, corriam subindo as colinas laterais sem eira nem beira, feito loucos. Desertavam. Os godos observavam aquela fuga já em alaridos retumbantes de vitória.
Valente ainda continuava vivo, mais sete de seus paladinos também, ainda o protegiam, continuavam a fazer estragos cavalgando e escorregando sobre corpos, quando de repente! Um lanceiro visigodo, aparecendo do nada com a fúria de louco no rosto e tensão nos gestos, enfiou sua lança no cavalo do qual montava o imperador e transfixou o pobre animal pela ponta da espádua até a cernelha. O valente animal decaiu, morto instantaneamente. jogando o imperador sobre aquela cama de cadáveres e patas enrijecidas de cavalos que pareciam sustenta-la. Valente, após cair de boca aberta, bebeu daquele sangue dos seus próprios homens. Estava meio tonto, não conseguia se levantar, se colocar em prumo. Sorte não ter perdido a espada segurada firme em sua mão direita. Ainda poderia lutar, entretanto, assim que se levantou, olhou para os lados e viu ao seu redor toda aquela cena de horror: milhares de homens e cavalos amontoados, ensanguentados, jaziam. Os feridos tentavam sobreviver agonizantes. Nesse instante, teve a revelação do tamanho que era a carnificina, e ainda teve tempo de concluir que não haveria como remover esse horror dos escritos para a história.
O mesmo soldado visigodo veio atacar Valente com toda a sua cólera e o imperador, horrorizado com tudo aquilo, sem forças para continuar, deu alguns passos para trás cambaleante. Atacou, conseguiu dar com um golpe com a espada na altura do ombro esquerdo do homem, mas escorregou, caiu de costas, largando a sua espada naquela piscina de sangue.  O soldado visigodo se aproximou, pisou-lhe sobre uma de suas coxas, levantou com as duas mãos sua espada má forjada e a apontou para baixo, na direção do tórax do imperador. Valente ainda viu brilhar o elmo que ele usava. Ali, naquele instante, considerou estar numa situação muito difícil. O brilho do elmo inimigo queimava as suas retinas; fechou os olhos. Morreria com essa imagem no seu subconsciente: aquela espada sorrateira empunhada por um visigodo trespassaria seu tórax. Seu corpo nunca mais seria encontrado no meio de tanta carnificina. 

 2ª Sessão: O medo

— Droga! Reclamou consigo Valente. Não estou sonhando. Continuou reclamando. Estou bem acordado. Certificou-se beliscando a um de seus braços. — Por que então essa espada sorrateira não sai da minha mente? Se perguntou. Prefiro fazer parte de uma multidão de almas pedintes no Hades, nas profundezas, por toda eternidade; deve ser menos sofrível que ter que ficar com essa arma a flutuar a minha frente todos os dias e noites com esse godo a segurando e seu elmo brilhando. Os gregos sabiam sofrer. Refletiu absorto. Esse produto dos meus medos me perseguirá até que chegue o momento em que irá me dilacerar. Se eu fosse, pelo o menos, um crente! Pelos trezentos e sessenta e cinco deuses romanos! Pelo Deus dos Cristãos! Eu sou cristão agora! Protejam-me! Implorou levantando os braços pedintes a cima de sua cabeça. — Que eu tenha forças para suportar os desígnios e caminhos do meu destino, contextualizou.  — E esta espada má forjada ainda a flutuar à minha frente? Perguntou-se novamente. — Que me venham outras imaginações que a retire dos meus dias e noites por vir. Vociferou redundante, continuando a suplicar sozinho: — Posso até senti-la, bruta! Uma arma grosseira, obra desses ferreiros visigodos indolentes. Seus vincos, limados sem o devido capricho e seu peso serão suficientemente adequados para que o serviço seja feito, ou seja, perfurar meu tórax. Depois de trespassa-lo pelo meu gorduroso abdômen, cortará todas as minhas vísceras adjacentes, partirá minha coluna ao meio. Não sentirei mais as minhas pernas, os meus braços e minhas funções respiratórias entrarão em colapso; entrarei num estado de lentidão torturante, morrerei aos poucos, sofrendo, enquanto meus inimigos tomam dos meus melhores vinhos e executam meus soldados. Sucumbirei lentamente para que eu possa assistir o início do fim do Império Romano do Ocidente.  Valente berrou, perguntando-se o por quê. Esperançoso olhava fixo para o sol que acabara de surgir diante de si. Queria uma resposta.
Passara a noite inteira imaginando como faria para evitar esse triste destino que se aproximava do seu império e de si mesmo. Balançou a cabeça em um não duvidoso. Decidiu burlar os desígnios do destino. O medo faz isso, enfraquece e faz os homens se esquivarem dos acontecimentos mais importantes em suas vidas. Decidiu-se, enfim a respeito de uma saída, uma alternativa para enfrentar seus inimigos. Como poderia ser tão idiota a ponto de acreditar no sucesso de uma missão, que poderia ser uma mentira, de tão inacreditável que era? Gritou para as dezenas de colunas obesas que sustentavam a câmara imperial dentro do palácio. No fundo, mesmo sem deixar transparecer receou ter que ficar diante de uma verdadeira espada visigoda. Arriscar-se numa batalha surpresa? se perguntou. Poderia ser uma saída, sussurrou consigo. duvidando de suas alternativas, refletiu por mais um tempo enquanto se apoiava com as palmas das mãos sobre o reluzente mármore negro que servia de balaustrada naquela grande marquise meio circular que se sobre saía no quarto piso do seu Magnus palatium. Olhou para a cidade de Constantinopla a sua frente e veio-lhe o nome dela por umas duas vezes em suas conjecturas. Encheu os pulmões com o frescor do ar da manhã e os esvaziou lentamente até sentir aquele aperto no peito, do qual, sentem os aflitos. Procurou não se abalar mais com tudo que estava por vir; a ideia de burlar o destino o confortava sobremaneira. Repetiu suas respirações umas sete vezes. Não era homem de se conformar e nem aceitar o que estaria por vir. Titubeou perante outras duas opções se perguntando: — O melhor seria recorrer àqueles avisos dos deuses que recebera em sonhos, ou acreditar no Deus dos cristãos? Mesmo não crendo em nenhuma dessas alternativas, resignou-se, pois tudo era desesperança, para não dizer: medo.
 Antes de terminar com as turbulências no seu subconsciente, das quais o incomodavam e muito, pensou no que viria a ser seu futuro. Quer queira, quer não, ele sabia que isso seria a premonição de um homem já derrotado. Os godos, os visigodos, estes bárbaros, chegariam aos portões de sua cidade daqui há um ano caso não fizesse nada para impedi-los. Buscou por mais alternativas, mas aquela ideia de burlar o destino era bem interessante para ele.  Uma magia africana, irrelevante. Seria? Questionou-se. Deu com os ombros. O imperador fez um meio rodopio calçado em suas sandálias que imitavam um gladiador romano, deu de costas para Constantinopla e esvoaçou-se em mangas e saiote brancos. Adentrou a enorme câmara imperial, caminhou por metros sobre um lindíssimo mosaico desenhado em granito greco-islâmico-romano, que o direcionava até o trono. Subiu os três degraus e sentou-se como se senta um imperador. Depois de alguns segundos em silencio gritou reverberante por Kazende, seu serviçal egípcio. Este apareceu vindo ecoando em seus tamancos de um lado qualquer daquela enorme câmara imperial e levou certo tempo até se aproximar. — Eu sou Flavius Julius Valens não sou? Perguntou o imperador ao serviçal. Quando este se aproximou balançou a cabeça e afirmou que sim. Valente, como determinara ser chamado, fez um sinal com o dedo indicador para que o mesmo se aproximasse. Este foi subindo aqueles três degraus e, quando chegou mais perto falou ao seu imperador com sua voz grave: Sim meu imperador! Esperou por ordens. O imperador, pediu que o mesmo se aproximasse ainda mais e, como se cochichasse, pois não queria que ninguém próximo se fizesse de ouvinte, ordenou ao egípcio que trouxesse até ele o seu oficial de maior confiança. Kazende desceu de costas aqueles três degraus em reverência. Atravessou aquela enorme câmara até chegar àquelas também duas portas enormes guardadas por dois lanceiros, que juntos e bem sincronizados as abriram, para depois fechá-las.

O general veio atender ao chamado do imperador cerca de duas horas depois. Estava a organizar umas manobras militares fora das muralhas da cidade. Adentrou cavalgando em ecos pelo jardim de acesso ao palácio destinado às autoridades. Desmontou auxiliado por dois cocheiros árabes e, enquanto subia por uma escadaria, olhou para trás observando os dois; imaginava quais seriam as consequências de tanta mistura de povos na sua cidade.
Quando o general entrou por aquelas duas enormes portas, que foram abertas por dentro por aqueles dois lanceiros, se dirigiu até seu imperador caminhando como se marchasse, agarrado a seu elmo, segurado entre o punho e o seu bíceps direito e com sua cara de oficial sisudo que lhe caia muito bem. Trajado em seu uniforme paladino-pretoriano se aproximou do imperador ajoelhou. Respeitava-o por demais. Bastou isso, e nenhuma só palavra para que Valente se levantasse do trono, descesse daqueles três degraus e fosse até ele e o agarrasse por um dos braços levantando-o dizendo: — Mas o que é isso Sálvius, meu general preferido, e continuou falando:  — Acompanhe-me, tenho uma grande missão para você. Os dois andaram praticamente abraçados, íntimos, até que se aproximaram de uma antepara onde o imperador pegou uma botija e em dois cálices de ouro servindo vinho para ambos. Continuaram a circundar por aquela câmara e Valente gritou para todos que estavam próximos que deixassem o recinto. Os serviçais desapareceram silenciosamente por umas portas como se fossem espectros, que devem algo para mundo dos vivos. Um olhudo com os ouvidos de um tuberculoso ficou escondido, espionando por detrás de uma coluna obesa e estava atento a conversa dos dois, que reverberava sussurrante. Estava ali era para isso mesmo. Alguém o enviou para espionar..
  O imperador perguntou ao general como estavam seus soldados e como ia sua família, Sálvius respondeu-lhe em poucas palavras que tudo corria de acordo e que sua família estava bem, em segurança, numa de suas propriedades da cataluña. Mas o imperador não era homem de titubear ou enrolar com as coisas, lembrou ao general que ele era seu preferido e seu espião e, no que estava para lhe pedir em missão somente ele seria capaz de cumprir. — Somente você é o soldado capaz disso, enfatizou.

O general agradeceu pela confiança nele depositada, mas deixou claro que outros também o eram. Valente não concordou e disse a ele que se ele não fosse o mais confiável de seus homens não haveria de se dar ao trabalho de chama-lo. Sálvius se redimiu e, como também não era de muitas palavras perguntou ao imperador em que poderia servi-lo. Valente o advertiu que era uma missão para evitar uma morte iminente, na qual envolveria a de seu próprio imperador. O general franziu a testa, deixando seu rosto com uma expressão preocupada e com um olhar severo. Estendeu-os para seu imperador e com uma expressão grave falou: — Então eu sou a sua escolha certa. Reportou-se. — Dê as suas ordens meu imperador e confie em mim. Disse decidido.

Valente fez rápida menção sobre os riscos de uma invasão visigoda e terminou dizendo que uma transformação em Bizâncio, do que fora um grande Império Romano estaria mais próximo do que se imaginaria. O general continuou a ouvir tudo com muita atenção,  não sem antes lembra-lo que era um de seus oficiais de patente mais alta e estava ciente de todas as manobras e movimentações que envolviam todos os exércitos que atacavam os romanos, inclusive os godos. Valente deu um sorriso de satisfação e umas tapas nas costas como fazem os amigos íntimos. Continuou falando e bebendo seu vinho até dizer-lhe que: — O segredo dessa missão é a chave para o seu sucesso, meu general e continuou falando, enquanto caminhavam em passos iguais, não revele a ninguém o que vou lhe ordenar. Ponderou. Sálvius logo compreendeu a seriedade da missão e continuou a escutar aquele colóquio sem  dar uma palavra. Valente ordenou-lhe ir até a África para trazer de lá um instrumento musical e que deveria fazer de tudo para que estivesse em suas mãos antes que os godos atravessassem os portões de sua cidade daqui uns meses; assim, o imperador pensava ser essa a estratégia dos godos.  O general assentiu com a cabeça, mas duvidou da sanidade de seu imperador perguntando-lhe: — Uma flauta, o que ela tem a ver com vencer uma revolta goda? O imperador com a cautela que carregam aqueles que incorrem em dúvidas de sanidade disse ao general ser a flauta,  talhada ou esculpida em osso de marfim, por um artesão mágico e essa informação ele recebera de seus espiões romanos enviados à África, meses antes dessa conversa de hoje. Orientou a ele que procurasse uma espécie de oráculo, num vilarejo comercial de nome Óio. — Seria este o único a saber como chegar até o artesão mágico das flautas! Advertiu. Continuou dizendo: — Sem as orientações desse oráculo você não saberá como encontrá-la.  Não lhe deu mais detalhes; as informações confidenciais eram sempre repassadas em poucas palavras.  O imperador entregou a ele um mapa, enrolado e amarrado, um baú com sólidus em ouro, moedas suficientes para toda a missão. deu no general um abraço apertado e esperançoso, desejando-lhe boa sorte. O general estava a par de todas as suas ordens e pediu autorização para levar dois lanceiros de sua máxima confiança; o que foi consentido pelo imperador. Sálvius saiu levando consigo o mapa e um salvo-conduto que lhe foram entregues também.  
 
3ª Sessão: O Objetivo

Três dias após esse encontro, Sálvius e os dois lanceiros recrutados por ele estavam a postos com seus cavalos e se ajeitavam próximos a um dos portões de saída que dava para o lado oeste da cidade. Providenciaram três bons cavalos e mantimentos e vestiram roupas civis que sugeriam serem eles uma espécie de viajantes, daqueles mal chegavam à uma cidade e já partiam logo. A noite já chegara havia umas quatro horas passadas e com tudo pronto os três fizeram montada. Atravessaram pelo portão de controle apresentando seus salvo-condutos. Passaram sem mais dificuldades pelos guardas, estes, nem sequer reconheceram seu comandante maior. Circundaram a muralha pelo lado direito do Estreito do Bósforo e, como o objetivo era manter a maior discrição possível na missão, trotavam silenciosamente disfarçados em velhos panos.

Cavalgaram pela parte ocidental do Império que os levaria até a Itália, passando sem paradas pelas cidades de Tessalônica, Salonae e Aquiléia. Levaram doze dias. As condições do tempo não eram as das melhores, muita chuva se aguentou e o lamaçal com atoleiros, além de cansar muito os animais, atrasaram a viagem em dois dias.
Quando adentraram a Itália pelo Norte, resolveram fazer parada numa estalagem em Revena por uns dias. Aguardavam a melhora das condições do tempo. Foram quatro dias e noites de mulheres e vinhos. Todos os viajantes do Norte eram bem-vindos àquela localidade qualquer. —Estes do Norte sempre têm mais moedas que os outros. Dizia uma das mulheres.
Partiram no quinto dia, quando o tempo firmou, e continuaram a jornada na direção ao sul. Não tive ram mais problemas com chuvas e iam passando despercebidos pelos vilarejos que encontravam próximos à Roma Cristã. Incansáveis, montaram por dias, fazendo poucas paradas, pois a providência da viagem exigia rapidez dos três.
No crepuscular de um dia qualquer, chegaram na cidade portuária de Réggio de Calábria na ponta da bota da Itália. Lá embarcaram a bordo de um barco para trinta tripulantes, comandado por um Noel caolho. Zarparam. Nem cogitaram desembarcar na ilha da Sicília. Contornaram-na com bons ventos. Navegaram observando as estrelas por todas aquelas noites frescas de poucas nuvens. Nessas primeiras noites Sálvius se punha de pé por muito tempo próximo ao velho caolho. O experiente navegador, sabe-se lá como, se orientava pelas estrelas. O general era um homem curioso e até aprendeu alguma coisa dessa técnica astronômica. Sabia que essa orientação o serviria em terra, pelas noites no deserto.

Sálvius, em adiantada hora, acomodou-se como dava recostando-se em uma biga com dois cavalos em arreios,  que ocupavam um espaço considerável no pequeno convés. Olhou para os lados e com cuidado abriu o mapa que o imperador havia confiado a ele. As setas enegrecidas indicavam todos os caminhos a serem seguidos quando de seu desembarque na cidade portuária de Léptis Magna, um porto discreto a uma boa distância da cidade portuária de Trípoli. Notava-se que aquelas setas o levariam por trajetos vicinais até uma localidade entre os vilarejos de Ifé e Oio, cidades próximas ao norte do centro-oeste do continente africano. O general guardou o mapa e com aquele olhar fixo, no qual não se vê e não se pensa em nada ficou absorto por um tempo. Entretanto, no seu subconsciente, estava claro que estaria se dirigindo a um lugar onde possivelmente nenhum romano pisara antes. Procurou relaxar se recostando ainda mais na roda da biga, sem deixar de observar um dos viajantes, vestido de preto dos pés à cabeça. Viu que ele tinha afixado, no centro frontal de seu turbante, um escudo com espada e cruz transfixados; o que sugeria ser ele uma mistura de islâmico com um cristão novo, mais do que isso, observando melhor esse homem era uma aberração. Ao olhar  com estranheza fixamente para os olhos claríssimos do viajante o general viu que o mesmo tinha um olho azul e o outro verde; numa espécie do que conhecemos hoje como heterocromia. Os mesmos eram realçados por sobrancelhas de taturana e um nariz pontudo como o bico de um corvo. Com a discrição, Sálvius voltou a olhar umas vezes e mais outras, sem se deixar ser percebido. Até deu umas risadas sutis com o canto da boca antes de cochilar, atento,  por uns minutos.

Atravessaram o Mediterrâneo com certa tranquilidade e bem rápidos, comemorava o Noel caolho.  No desembarque, quando do atracar na cidade de Léptis Magna, observou-se que o porto fervia em homens estivadores. — Se esse lugar é discreto, não sei mais o significado dessa palavra. Disse o general aos lanceiros. Os estivas carregavam de tudo em suas cacundas, subiam por centenas de degraus por várias escadas em pedras e em todas as direções possíveis. Após o porto, a cidade ainda estava numa interminável construção; misturavam-se viajantes, comerciantes, religiosos e todo e qualquer tipo de gentes com suas diversas cores de roupas e peles.
Após desembarcarem caminharam se esquivando das centenas de cestos carregados nas cacundas pelos estivas, que se entrelisavam sem deixar espaço algum para quem subia por aquelas centenas de escadas com seus milhares de degraus. Subiram e, quando chegaram lá em cima do paredão que dividia a cidade do porto, viram com seus próprios olhos a magnitude das centenas de  colunas que estavam sendo construídas há anos, dispostas matematicamente em linhas retas ladeadas por tímidas palmeiras do deserto. Por um instante ficaram sem saber o que fazer ou para onde ir. Sálvius sabia que teria que providenciar camelos e mantimentos para a travessia do deserto e isso era uma preocupação. No entanto, os minutos de preocupação com os acontecimentos cessariam quando um dos lanceiros foi abordado por um negro árabe com vestes branquíssimas. Este o puxou pelos braços e o lanceiro sem entender deu-lhe um safanão. Outro árabe veio correndo esbaforido em socorro do amigo e agachou. Pôs as mãos sobre os joelhos dobrados e abaixou a cabeça em turbante; esse era o sinal de que dali em diante estariam a serviço deles. O lanceiro se acalmou e em seguida um dos árabes, o que levou o safanão, entregou a ele um papiro enrolado num toco.  O lanceiro, para fazer tipo, o desenrolou e mesmo sem saber ler deslizou os olhos sobre o papiro. Enrolou-o novamente e, rapidamente o levou até o general. Sálvius desenrolou o documento e o leu atento, vendo que eram instruções do próprio imperador, que orientava eles a seguir com os dois árabes até o destino desejado. Enrolou então o documento e fez menção aos lanceiros que acompanhassem ele e os dois árabes.
Aqueles dois levaram o trio até uma viela arenosa, com habitações baixíssimas, de alvenaria branquíssima e com as suas janelas minúsculas. Os esperavam cinco dromedários devidamente apetrechados em enfeites e cestos com odres e mantimentos. O imperador já deixara tudo devidamente arranjado. — Alguém já viera antes arranjar tudo isso. Disse o general aos lanceiros. Teve a impressão que havia alguém em que o imperador confiava mais do que nele. Fizeram montada e saíram pelo lado oeste da cidade, onde era mais rápido desaparecer por entre as dunas.

4ª Sessão: Descanso, reflexão e desafios

 A tarefa não é fácil para quem não tem o costume de atravessar um deserto inteiro. Era o caso dos três romanos.  Os árabes, por vezes, desciam do lombo de seus dromedários e caminhavam por horas poupando os animais, mas os três romanos sequer cogitavam essa possibilidade. Seguiram por três dias até chegar num oásis; longe de tudo e perto do nada.  Minúsculos arbustos pontilhavam as dunas que cercavam uma lagoa azul, na qual, refletiam os cintilares de um sol inclemente. Tímidas palmeiras tentavam cobrir de sombras as únicas duas tendas que repousavam rastejantes em uma das margens daquele oásis. Uma delas era para refeições, a outra, para descansar. Os três romanos não se fizeram de rogados e assim que chegaram já se despiram e caíram nas mornas águas da lagoa. Lavaram de suas peles a secura petrificada da sede. Nadaram sem preocupações e gastaram todo um tempo boiando em pacientes relaxamentos de músculos, queimando suas caras branquelas, até que a fome lhes bateu às portas dos intestinos o que fez com que saíssem da lagoa, da qual, os guias nem sequer olharam para ela. Entraram na tenda de alimentação enrolados em poucos panos e comeram pães de trigo embebidos em cumbucas contendo chás. Encheram seus buchos. Após essa hospitalidade inicial, e do bom atendimento feito pelos seus anfitriões, Sálvius os pagou com três moedas, o que os deixou reverentes durante toda a estadia quando passavam por ele. Os cinco ficaram por ali, sem nada para fazer entreolhando-se sonolentos.

Os lanceiros, Sempre dormiam mais rápido como as acompanhantes sem compromisso. O general, fazia pontas com um punhal, lascando pelos dois lados uma pequena vara por não ter mais nada o que fazer. Já era noite e ele observava o tremular ondulante dos tecidos, onde as luzes das tochas dançavam seguindo umas às outras, irritantemente intermináveis. Os ventos traziam o frescor das noites desérticas e muito frio nas madrugadas.  Deitado, o general, que não dormira, observava os dois lanceiros preguiçosos. Perderá o sono e procurou não pensar muito, porque isso também o descansaria um pouco. De repente, viu quando aqueles homens dos pães passaram apressados de dentro para fora da tenda. Ficou atento. Alguém chegara. Estava intrigado pelo fato de que esse caminho, escolhido a dedo pelo seu imperador não era muito usual. Por que tanto movimento assim? Se perguntou. Continuou deitado, desviou o olhar daqueles panos ondulantes e mirou a entrada principal da tenda. Viu que os camelos chagavam num total de uma dezena, todos montados com dois homens. Aqueles dois dos pães corriam feito baratas tontas a auxiliá-los no desmonte de seus animais e brotaram do escuro mais outros dois anfitriões para ajudá-los. Sálvius, arregalou mais os olhos e calibrou sua audição no intuito de colher mais informações a respeito daquele movimento todo. Aquelas duas dezenas de homens não entraram nas tendas, sentaram em círculos ao relento, sem fogueira mesmo, e, desde que chegaram, tagarelavam alto. Aqueles dos pães continuavam passando apressadamente pelo interior da tenda a providenciar alimentações para toda aquela gente. Quando não, Adentrou à tenda aquele homem do barco, aquele de preto e a primeira coisa que Sálvius viu nele foram suas sobrancelhas de taturanas, depois, seus olhos heterocromados e seu turbante e o nariz de corvo. Como era um observador treinado, Sálvius viu entre as vestes pretas daquele urubulino, uma saif, presa pela cintura no seu lado direito, o que sugeria que o mesmo era canhoto; outra aberração neste homem estranho. Concluiu. O general ficou mais atento. No entanto, para sua surpresa, o homem o cumprimentou com um leve balançar de cabeça e nada falou. Procurou acomodar-se distante, agachou-se  num tapete vermelho pintado, nas suas beiradas, com dezenas de torres de sinagogas douradas. O homem recebeu seus pães e seu chá. Comeu e bebeu com olhares de forasteiro desconfiado. Depois, jogou suas cumbucas para um lado qualquer e com um olho fechado e outro aberto, procurou tentar dormir, no entanto, durante toda essa noite ficariam os dois a vigiar mutualmente.
 A aurora trouxe mais frio que o da própria noite; é assim nos desertos, as manhãs são mais frias. O general levantou em silêncio absoluto. Esperto e, “com um olho no peixe e outro no gato”, vigiou de soslaio o homem de preto enquanto saia da tenda. Lá fora deu de cara com aqueles homens que vieram com o intruso e eles dormiam junto aos seus camelos. Acordou os dois lanceiros e foram haver com seus animais, certificando-se de que não haviam sido furtados. O general ordenou aos dois localizar os guias e  pagar por mais água e mantimentos; seguiriam viagem imediatamente. Aqueles que estavam fora da tenda continuaram dormindo. Como sempre faziam os cinco, deixaram o oásis desaparecendo silenciosos, escalando e descendo pelas dunas.  Os rastros das patas  de seus camelos, logo seriam apagadas pelos ventos e, não se saberia em qual direção poderiam ter se destinado nossos viajantes. Trotaram sazonais, por mais dezessete dias desviando-se das gigantes dunas do deserto do Saara, parando somente mais uma vez em outro oásis com tendas, para outro descanso. Seguiram viagem em direção ao centro-oeste do continente até se depararem com capins rasteiros, que vazavam comprimidos por uma areia alaranjada, num prenuncio do fim de um deserto, de uma jornada quase mortífera, devido a sede e males causados pelos delírios de uma insolação.
Continuaram trotando no ritmo dos guias até avistarem uma montanha há umas três horas de viagem. Animaram-se. Aceleraram os animais para chegarem antes do anoitecer. Sentiam umidade no ar; o que fez com que lhes arrepiassem os coros cabeludos. Quando lá chegaram, a montanha era sem graça, a sua vegetação era pobre e na terra batida sobravam pedregulhos acinzentados.    Quanto mais subiam a dita cuja, percebiam que nada mudava aos seus redores, a vegetação continuava rasteira, quase morta, agonizante. Era tudo o que se tinha para contemplar dali por diante.
 Em dois dias estariam no vilarejo de Óio. Disse um dos guias ao general. Isso fez com que Sálvius sorrisse discreto pela primeira vez até agora. Chegarem no topo dela, numa planície que não oferecia visão nenhuma de uma descida. resolveram montar acampamento por ali mesmo.
Nada daquele deserto deixou um pingo de saudades neles. No contrário dos do deserto, os ventos de agora sopravam mornos e eram úmidos e em nada incomodavam. Acenderam uma fogueira para espantar animais indesejáveis, principalmente as cobras.  Assaram umas carnes de caça que os dois guias trouxeram.  Sálvius, depois de terminar com sua lenta ruminação, se levantou e ascendeu uma tocha e foi caminhar pelas redondezas. Aproveitou e levou consigo o mapa e as instruções das quais lhe confiara o imperador. Sentou num rochedo e procurou lê-las novamente certificando-se de que não se perdera. Depois de consultar seu mapa e gravar o que tinha de gravar, levantou-se. Ficou ali de pé a estudar as estrelas como tinha aprendido com o velho caolho:  aquele da travessia do mediterrâneo. Quando cansou de ficar olhando para cima, contemplou o horizonte platinado de uma lua branquíssima e perpendicular que se poria em algumas horas da noite mesmo. Olhou fixamente para um único ponto luminoso lá longe, que lhe parecia estar posicionado bem no caminho pelo qual eles vieram. Ficou intrigado. Mas qual será o motivo de tanto movimento por essas bandas? Perguntou-se. Concluiu que aquela minúscula luz amarelada que flamulava desaparecendo às vezes, só poderia ser uma fogueira. Seriam eles outros viajantes ou aqueles mesmos da parada no primeiro oásis? Questionou-se. Mas enfim, estavam muito distantes para trazer qualquer tipo de preocupação quanto à missão confiada a ele. Concluiu, voltando-se para o acampamento de onde saíra. Procurou um local para se acomodar, conquanto os outros já roncavam.

Sálvius não perdeu tempo. Despertou cedo da noite mal dormida como despertara de todas as outras, exausto. Levantou-se dando com chutes nos outros para que levantassem rápido e ordenou a eles de imediato levantar o acampamento. Desconfiava daquela fogueira vista na noite anterior, cauteloso, queria se adiantar o máximo, para que eles não os alcançassem. Partiram rápido correndo com seus camelos seguindo por uma trilha abandonada, sinuosamente aberta por viajantes de outrora.
Depois de dois dias montados, trotando incessantes, o cansaço que sentiam acumulavam, também, enjoos, sede e fome. Os guias nem se incomodavam, nem se mexiam, deitavam-se preguiçosamente entre as corcovas confortáveis de seus animais. Estavam acostumados às grandes jornadas e vinham descendo um declive de centena de metros, seguidos pelos três entediados. A monotonia dessa longa e interminável jornada foi dando lugar a altivez provocada pelas boas novidades, porque a uma distância de  uma pequenas que como um reflexo tremulante, devido aquela evaporação que surge do solo fervente, viram,  quase como se veem as miragens no deserto, centenas de tendas que lhes pareciam ser uma feira borbulhante. Mais para a direita, viram um enorme castelo, quadrado, que, pela sua cor suja, sabia-se ter sido construído com terras e argilas da região. O general e os lanceiros viram quando um dos guias indicou com uma vara aquelas tendas e berrou, como berram qualquer um que seja bárbaro: Óio! Animaram-se, após verem o árabe rir sem seus dentes.

Aceleraram seus animais e desceram até a entrada daquela comunidade, que era guardada por três mouros que se portavam como abutres, com seus olhos fixos nos intrusos e, pousados em duas torres em estacas, meio capengas, muito mal construídas. Daquela altura, fincavam mesmo era seus olhos nos três branquelas do Norte. Os guias como estavam ficaram e, deitados preguiçosamente naquelas corcovas passaram despercebidos. O general deu uma olhada naquelas três sentinelas, mas logo desviou o olhar, para não se meter em alguma encrenca, logo na entrada. Os dois lanceiros não estavam nem aí para uma abordagem encrenqueira. Olharam mesmo e se não gostassem do que viam que viessem haver com eles. Eram dorminhocos, não falavam muito, mas eram bons matadores, não dispensavam uma boa briga e, era certo que sempre deixavam um bom estrago por onde passavam. Pararam uns metros daquela entrada dos abutres e desmontaram já se espalmando, livrando-se da poeira pousada em suas vestes.
Era interessante e curiosa aquela mistura de gente de várias tribos com seus animais domésticos e selvagens. Esse povo entrava e saía daquelas centenas de tendas de comércio que eram dominadas por mercadores árabes. Junto com os poucos ventos vinha um odor estranho de condimentos e ervas, que ali eram vendidas, deixando no ar um cheiro verde de incenso. — Que confusão! Exclamou o general. Os lanceiros concordaram. Sálvius, que durante a viagem lera todas as instruções do imperador, sabia que teria que pedir aos dois guias que os levassem imediatamente até o oráculo, aquele, que lhes ensinaria como chegar até o local secreto onde se escondia o suposto mago das flautas, mas esse detalhe, o general não falou aos guias. Era um segredo guardado a sete chaves e Sálvius falou quase que cochichando no ouvido de um deles, que fez aquela expressão de quem não entendia uma palavra, mas adivinhava o que o outro queria dizer. Eles amarraram todos os animais e fizeram sinais para que os três os seguissem e, estes os seguiram. Caminharam apertados entrando por várias daquelas ruelas as direitas e as esquerdas, dando com os ombros naquela gente e escutando aquele burburinho ininteligível de toda a espécie de dialetos possíveis e os diferentes grunhidos de animais exóticos. Alguns já conhecidos também.

Numa última virada a uma direita qualquer, depois de tantas esquerdas e direitas, contornaram e se deram com uma ruela sem saída e com enormes tendas; no final desta, pousava a tenda do oráculo; defronte a mesma uma centena de pacientes esperavam sentados por uma chance de uma consulta com o adivinho, pois, assim o chamavam.
 
Os guias fizeram sinal para que o general e os outros dois esperassem por ali perto e adentraram a tenda, ficando lá uma meia hora, pois o adivinho atendia um cliente. Quando saíram, empurraram o general para dentro, impedindo a entrada dos lanceiros que receberam um olhar do general indicando que tudo estaria bem. Ficaram os dois ali, colhendo a mesma paciência dos pacientes de fora, que em nada reclamaram pelo fato de o general ter-lhes passado a frente. O adivinho deveria saber o que estava fazendo. A maioria deles pensou.


Sálvius já vira de tudo neste mundo. Como homem de guerras, degolou bárbaros de todas as espécies e navegou sobre rios de sangue de seus inimigos, nada disso lhe causava estranheza ou compaixão, mas, nunca! Nunca vira nada tão estranho e bizarro, como aquela criatura decrépita, à qual, todos respeitavam como um sábio que a tudo revelava aos seus curiosos clientes. Era pequeno, magricela, só o osso e o coro; pele pigmentada num verde que não florescia, com certeza só comia folhas, assim concluiria qualquer um que se consultasse com a criatura. Sua cabeça diminuta pendia-lhe para frente e isso fez esculpir em sua coluna protuberâncias típicas dos dragões de komodo. Posava-lhe na cabeça, duas enormes orelhas com alargadores amadeirados que sugeriam muitos anos de vida para o mesmo. Pesavam-lhe no enrugado pescoço de tartaruga um monte de colares em contas, cozido em ossos de pequenos animais, viam-se cabeças, pés, rabos e costelas. Sobrava-lhe em muito uma tanga que usava e, se aquela aberração resolvesse levantar, ela cairia por entre suas pernas sem obstáculos. O general viu quando aquilo fumou uma espécie de enrolado de ervas que sustentava em uma enorme piteira entre os também cabeçudos dedos de suas mãos e, em seguida, baforou uma fumaça verde fluorescente. Essa recendia um cheiro de azedo pelo interior da tenda. Seus olhos eram escuros, enormes e suas ventas consumiam muito do ar do recinto. O general se aproximou, sentindo um certo asco, porque fedia; mas como já sentira muito o cheiro de cadáveres, não se fez de rogado e logo se acomodou bem na frente da criatura. O oráculo fixou os olhares esbugalhados no general a pesquisar quem era o cliente e de imediato disse três palavras: — homem do norte, em seguida baforou novamente. Apontou com um dos dedos cabeçudos para um cesto onde Sálvius deveria depositar moedas. O general tirou de um saco de estopa encardida umas três em ouro e as jogou lá dentro. A criatura, que sempre analisa até as entranhas de quem está a sua frente, apenas com um gesto, pediu que todos os seus auxiliares saíssem da tenda, menos o general e um dos guias e continuou a falar perguntando ao general se o que ele queria mesmo era ir até lá, naquela montanha, onde reside aquele mago, o das flautas mágicas.  O general incrédulo sacou de um punhal e na intenção de degolar aquela monstruosidade, esbravejou, cuspindo-lhe opressivas ameaças, quanto ao fato de ele saber tanto a respeito de um segredo de Estado. Nesse instante o guia que ficara implorou para que o general não fizesse aquilo, e, num latim de poucas palavras, fez com que Sálvius entendesse que deveria escutar mais do que agir, enfim...  só aquele adivinho poderia lhes informar o caminho correto para chegar até o mago das flautas. Após se recompor, o general, inteligentemente sacou mais três moedas em ouro e as jogou naquele cesto. A criatura, que até então não esboçara nenhuma reação arregalou ainda mais seus enormes olhos negros e, pelas moedas, como se nada estivesse acontecido continuou a falar, não sem antes tragar seu enroladinho de ervas. Falou rouco e sem ser interrompido que o general deveria seguir pelos caminhos dos quais o sol se punha pelas suas costas e nascesse diante de seus olhos. Deveria seguir atravessando pela “floresta que mata os homens” e também pela “savana dos dentes de sabre”, aonde, se não fossem espertos o bastante, serviriam como refeição do dia. Se conseguissem atravessar, ilesos, todos esses perigos ao amanhecer de alguns dias de viagem avistariam a montanha azul, da qual, ele, o general e, somente ele deveria escalar, escutando e seguindo as pedras falantes. Sálvius perguntou que pedras eram essas e a criatura respondeu a ele com uma espécie de parábola: — Você descobrirá por aquela que grita, por si próprio, preste a atenção no som do tambor! Advertiu o general.
 Pacientemente a aberração enrolou outra palha com ervas, afixou-a na piteira de bambu, baforou de novo e, continuou dizendo que quando chegasse ao topo veria uma espécie de pedra, num formato de trono, com uma lápide como encosto, ladeada por dois enormes totens carrancudos. Ali o general deveria sentar, se acomodar e relaxar. Esperar, esperar e esperar... com toda a paciência possível. — Mesmo que não queira, disse o oráculo tossindo, terás que se sentir como uma oferenda aos deuses, sejam lá quem eles forem. terminou.
Aquela fumaça verde embebedara ao guia e ao general e o oráculo se aproveitando disso apontou novamente para o cesto, Sálvius sem se dar conta, depositou mais três moedas, deixando um total de nove moedas de ouro para a criatura; uma fortuna.
 
Sálvius e o guia se levantaram e assim como quando entraram não sabiam se saiam andando para trás, de costas ou reverenciando aquela aberração. Enfim, saíram e foram de encontro aos outros que esperavam afastados daquela gentalha lá de fora. O fato agora era o de que teriam que trocar seus dromedários por cavalos e isso fez com que o general ordenasse aos guias que fossem providenciar as trocas. Enquanto isso, os três foram descansar e se alimentar em uma tenda qualquer. Algumas horas mais tarde, há exata uma hora antes de o sol se pôr os guias chegaram com cinco cavalos que não agradaram muito, mas serviam. O general sabendo que deveria esperar até que o sol, avermelhado, iniciasse sua descida, montou e foi seguido pelos outros até saírem de Óio. Se posicionaram fazendo parada numa colina próxima. Esperou o sol inchar, esfriar dos ânimos e, pôs-se de costas para ele. Todos os outros fizeram o mesmo. No horizonte as suas frentes, viram, por entre a vegetação mediana uma trilha sinuosa que desaparecia, estancada por aquele verde-alaranjado das plantas que os confundiam. Mas era o único caminho possível. Desceram de novo, pois, tudo nessa jornada era descida e subida o tempo todo. Seguiram por aquela trilha acreditando, como de início, ser ela a única alternativa disponível. O anoitecer chegou com os cinco cavalgando, sempre silenciosos, sem parar para descanso algum. O adivinho não falou quantos sóis eles teriam que ver nascer e se pôr até que vissem a montanha azul, mas, confiantes, seguiram em frente. Na terceira manhã, depararam com a “floresta que mata os homens”.  Diante dela ficaram parados. A observaram densa, tenebrosa, com uma entrada que mais parecia uma enorme boca aberta, pronta para engolir a todos eles, com seus dentes de galhos retorcidos. Além disso, zilhões de insetos zuniam com muita sede de sangue.


Adentraram-na sob o protesto de seus cavalos, que se recusavam ir adiante, empacando e relinchando, mas entraram, foram literalmente engolidos por aquela boca de folhagens e galhos retorcidos que mais parecia uma fornalha inclemente; tamanho era o calor lá dentro. Apesar da manhã clara, a escuridão dentro da floresta dava a sensação amedrontadora de que algo de ruim sempre estaria por acontecer e, os insetos eram impiedosos e todos tiveram que se cobrir dos pés à cabeça com o que tinham. Os cavalos também sofriam e enquanto cavalgavam não paravam de empinar para escapar dos galhos retorcidos e pontudos. Continuaram assim até serem digeridos lentamente pela floresta. Além disso, ainda escutavam urros e berros de animais que mais pareciam arrotos de dragões, sentiam os movimentos espectros que flutuavam pelas suas costas, mas nada viam. Era de arrepiar o couro cabeludo até do próprio general, que, com muita coragem, também ordenava coragem aos seus homens e aos guias.
 
5ª Sessão: Acontecimentos que Podem Atrapalhar o Caminho no Futuro.

Enquanto isso em Óio acontecia um evento inicial que viria a colocar em perigo a missão confiada ao general. Chegara naquele vilarejo aquele homem de preto, meio cristão, meio islâmico, meio sabe-se lá o quê, com suas sobrancelhas de taturanas e com heterocromia. Ele tinha espiões na cidade e teve informações privilegiadas sobre as andanças do general. Com seu turbante e seus doze homens seguiu até a tenda daquele adivinho e, sem pedir licença, se desfazendo de todo o sagrado respeito ao local, mal educado mesmo, bruto, como daqueles que derrubam uma porta e depois pedem licença invadiu com truculência a tenda. Esse era um de seus maiores prazeres: garantir uma entrada triunfal, deixar a sua marca, mesmo que fosse a favor do mal. Jogou fora o cliente que ali se consultava. A criatura não se mexeu e como se nada estivesse acontecendo não esboçou nenhuma reação. Sendo uma divindade, continuou serena, apenas observando. O homem de preto fez a ele perguntas a respeito do destino do general. A criatura não respondeu. O urubu de um olho verde e outro azul sacou de sua saif e fez um corte superficial de baixo para cima até o peito do adivinho.  Mesmo assim, ele continuou não cedendo àquela tortura provocativa. Viu seu sangue escorrer, pela sua tanga, esquentando suas virilhas com uma enorme tranquilidade; o que irritava ainda mais o espião ostrogodo. O oráculo fumou, tragou novamente seu cigarro de ervas e soltou aquela fumaça verde bem na cara nariguda do intruso. Este ficou possesso, mas sabia que não poderia matar de imediato aquela coisa horrenda, antes de arrancar dela as informações que queria. Como não gostava de ser afrontado ordenou a quatro de seus homens, que pegassem suas cordas e amarrassem o oráculo pelos membros, mãos e pés, respectivamente. Cuspiu na criatura dizendo sarcasticamente: — Vou conseguir a informação que quero de uma ou outra forma, de qualquer jeito! Enfatizou. Aqueles guardas abutres que estavam pousados guardando a entrada da cidade foram avisados dessa invasão por alguém que esperava por uma consulta. Desceram das torres capengas e vieram em socorro do adivinho. No entanto, antes que chegassem à tenda aqueles quatro homens já esticavam pelas cordas a criatura. Puxavam e puxavam com mais força a cada vez que o urubu fazia as perguntas e a coisa não respondia. Uma outra solução brotou das ideias malévolas do torturador. — Vou arrancar um de seus braços sua criatura nojenta! Rosnou furioso. Assim o fez o homem de preto: Utilizou de seu saif e, com um só golpe, amputou o braço esquerdo do oráculo. O sangue jorrou, embebendo tapetes, palhas e se  misturando à areia no interior da tenda. Nesse instante, os três abutres entraram pelos fundos da tenda em socorro e lutaram como gladiadores contra nove dos homens do inimigo. Os três foram mortos. Nesse instante finda essa luta, o narigudo, que não esperava uma reação qualquer do adivinho, viu quem realmente aquela criatura era. Esta fez forças com os três membros que lhe restaram e derrubou os outros três homens que ainda o esticavam, avançou como um demônio sobre aquele que o ameaçava e, com um golpe no ar ainda conseguiu arrancar uma das sobrancelhas de taturana do urubu. Os três homens o puxaram de volta. Deram um jeito de amarrá-lo e com muito trabalho prenderam-no numa estaca ao centro da tenda. O Homem de preto se aproximou dela sarcasticamente, passou a mão em sua testa e descendo viu que perdera uma de suas maiores referencias de descrição, uma das sobrancelhas. A raiva que sentia por isso o fez dar uma boa bofetada na criatura deixando-a tonta e arrancando-lhe mais sangue por um dos lados da face. Este sacou de algum lugar, de dentro de suas vestes, um pequeno recipiente com um elixir; o da verdade. Um alucinógeno que faria o oráculo se sentir feliz, rir de tudo, contar o que ele queria saber. O homem de preto apertou com seus fortes dedos o maxilar da coisa e o fez abrir a boca seca com sua pequena língua vermelha retraída. Derramou todo líquido fazendo engasgar a criatura sem resistência e o fez engoliu todo o líquido negro e oleoso, escorrendo-o goela abaixo. Por algum tempo o oráculo tremeu dos pés à cabeça, se debatendo ao toco no qual estava amarrado, suou, se enojou-se de tudo; como era de se esperar não foi capaz de resistir. Após a tremedeira se acalmou e se sentiu protegida, sem receios. Estava embebida de uma calma bondosa, daquelas que acometem os bebês. Ria... ria... e ria de tudo, era só a felicidade enquanto o narigudo arrancava dele as respostas que queria. Agora, o adivinho respondia a tudo sem adivinhar nada e o espião ostrogodo teve todas as informações que desejava obter a respeito do destino do general e seus dois lanceiros.   

O urubu carnicento, depois que obteve o que queria, jogou de lado a criatura abobada, sorridente e feliz e ainda chutou seu magro traseiro como se chuta,  só pela maldade, um vira-latas sarnento. Saiu com seus homens da tenda e deixou lá os três abutres assassinados e aquela aberração decaída sem um dos membros superiores. Assim como entrara gostava de deixar as suas marcas por onde estivera. Ordenou aos seus homens queimarem aquela tenda dos horrores. — Com todos dentro! vociferou. Assim foi feito.



6ª Sessão: Perigos e Adversidades

As histórias sobre aquela “floresta que matava os homens” eram iguais numa coisa: “todos que lá entraram, nunca retornaram”. Mas isso era óbvio, pelo fato de ninguém ter tido coragem para ir até lá e resgatá-los. Nunca, se deu por certo o que matava os homens. Só estando lá para ver e, para isso, ninguém tinha a devida coragem. Não valia o risco se certificar disso, diria qualquer um naquela região. Sálvius seguia cavalgando à frente dos lanceiros e logo atrás vinham os guias. Os da frente assim como os de trás sabiam que eram observados por algo estranho, sentiam uma presença quase espiritual e não estavam nada confortáveis com essa situação, por que isso gelava nas suas espinhelas.  A densidade das folhagens, os insetos, tudo isso, aumentava-lhes a sensação de que aquilo nunca acabaria. Assim como eles, seus cavalos iam sendo incessantemente picados por aqueles zilhões de insetos, arranhados por milhares de galhos retorcidos. Todos, pouco a pouco, lentamente, iam sendo digeridos por aquele estômago verde-escuro de densas folhagens. Nas florestas há uma sensação de muito calor, mas nesta, tudo era exagerado, inclusive o mormaço ofegante. O general adiantou-se forçando o trote de seu animal para que os outros o seguissem. Estavam demorando muito dentro dela; o tempo passava e os riscos aumentavam. Algum tempo depois, não viram quando o guia desapareceu, como desaparecem as sombras que vão de encontro a outras sombras maiores. Depois que o outro guia deu-se pelo sumiço do amigo, interrogou aos berros sobre seu paradeiro, o que alertou os outros e todos pararam. O general deu meia volta e se dirigiu até onde aquele último infeliz sumiu. Sua coragem era a maior entre resolveu se embrear naquelas folhagens com a finalidade de encontrar e resgatar o infeliz. Ouviu em uma direção uns gritos de pavor do homem, seguiu seu instinto auditivo e continuou cavalgando rápido. Arranhou mais ainda a si e a seu cavalo, não se importou, continuou seguindo seus instintos. Os gritos cessaram e o general escutou uivos incessantes que aumentavam a cada vez que se aproximava embrenhado numa direção qualquer daquela floresta; diminuiu seu cavalgar quando viu um pouco mais a sua frente, observando por entre as folhagens, enormes gorilas brancos, como fantasmas, albinos mesmos, uma aberração.  Rascavam como papiros, ou seja, muito facilmente, os membros do corpo do guia raptado. Viu quando eles lhe arrancaram a cabeça e ficaram jogando a mesma de um para o outro, para os lados, de baixo para cima. Se divertiam, enquanto comiam as outras partes de seus membros. Eram gorilas carnívoros, uma dezena deles, gigantescos, fortes. Uivavam e gritavam divertidamente, enquanto um ou outro continuava a jogar a cabeça deste outro infeliz, ainda em branco turbante. Quando a jogavam, batiam forte nos peitos, era o mesmo que o rufar de enormes tambores. Boa sorte será a minha que não me vejam, desejou Sálvius. O general, silenciosamente deu à marcha ré, fez uma meia volta e saiu em câmara lenta, torcendo para que seu cavalo não relinchasse e, se conduziu numa fuga espectral. Chegou onde estavam os outros e sem parar gritou: — Se quisermos sobreviver, melhor sairmos daqui o mais rápido possível, e berrou mais ainda: — Não temos nenhuma chance contra eles! Os outros não titubearam, partiram em arrancadas aos saltos com seus cavalos e o que mais queriam era sair logo daquela catacumba de folhagens verde-escuras. Sálvius ficou para trás, no entanto, como era bom montador, logo assumiu à frente. Eles e os cavalos sangraram muito durante a escapada. Os gorilas vinham rápido, se aproximavam dependurados as árvores gritando. Muito velozes, por pouco, não agarraram o outro guia, que, em pânico, cavalgou atropelando tudo à sua frente, passando até o general. Conseguiam escapar por pura sorte se esquivando das garras deles. Sálvius e os lanceiros estavam concentrados em escapar, saltavam em zigue-zagues e mantinham-se agachados o máximo que podia ao dorso de seus animais, o guia se esvoaçava em medos e gritava horrores chamando mais a tenção dos famigerados gorilas que o persseguiam mais que os outros, o que fez com que este se borrasse todo nas tangas. Depois de tempos de uma agonia em fuga, quando já não via chances de escapada, viram clarear uma abertura naquela verde escuridão. Por incrível que nos pareça, o guia foi o primeiro a endereçar-se fugindo arredio daquele arrebatamento. Foi seguido pelos outros. Foram expelidos daquela floresta monstruosa como excrementos de um vômito. Os gorilas albinos, decepcionados, ficaram lá, dependurados nas árvores, observando sua diversão ir em fuga. Por uns instantes ficaram gritando, logo depois, desapareceram sem deixar vestígios.
Sálvius e os outros pararam exaustos, seus cavalos estavam feridos. Não haviam percebido que depararam com uma planície, com capinzais ondulantes, que mais pareciam as ondas azuladas dos mares gregos. Era uma linda savana. Eram homens toscos, mas sentiram apreensivos a perda trágica daquele guia. A beleza da savana ficou de lado, nem a observaram. Afastaram-se galopando rápido. Queriam estar o mais longe dali o possível.

Depois de longa cavalgada estacaram e desmontaram num lugar qualquer. O general disse para acampar ali mesmo. Cuidaram dos seus ferimentos e dos de seus cavalos com as águas de uma mina que os próprios cavalos haviam encontrado. Demorou as horas de uma tarde inteira esse descanso e o general esperou para levantar acampamento à tardezinha, bem à tardezinha mesmo. Quando o sol estivesse se pondo pelas suas costas. Partiriam. Seguiriam adiante seguindo as orientações do oráculo.
A savana oferecia certa tranquilidade e uma visão distante no horizonte crepuscular. A noite era clara e estrelada. O general aproveitou para reconhecer os caminhos pelas estrelas novamente. Durante toda a noite uma chuva de meteoros líridas maravilhou a todos os quatro riscando intermitentes por entre estrelas. Logo a noite ia desvanecendo e ao cristalizar lento do amanhecer eles passaram tranquilos por uma centena de manadas de espécies de animais quadrúpedes, cavalgaram cochilando por entre famílias de girafas soberbas, ruminantes, nas alturas. Essa viagem, numa savana, em campo aberto, depois de uma noite tão agradável, proporcionou neles todos um relaxamento na atenção; principalmente com relação à segurança. Seguiam tranquilos, achando que o pior já havia passado.

O leão não é um predador de hábitos noturnos. A fome lhe aperta pelas manhãs.  Quando despertado por um faro diferente, se estiver dormindo, mexe com suas orelhas procurando pelos sons de animais até que acorde, se levanta rápido e ruge.  O cheiro de carnes frescas despertou toda uma família antes do despontar do sol; um bando de seis felinos, dois machos duas fêmeas e mais dois filhotes. O faro é um bom despertador matinal. Resolveram todos seguir com as leoas indo de encontro à brisa, que os direcionava até seu café da manhã. Perseguiam há horas nessa manhã os quatro homens e seus cavalos. Enquanto isso, despreocupados, os quatro trotavam por aquelas paragens. O mesmo vento leve que batia em seus rostos era o que levava seus cheiros até os felinos alguns quilômetros atrás.

O guia, desde que saíra da floresta que mata os homens, cavalgava somente atrás do grupo. Isso porque, depois das orientações do oráculo, não havia mais a necessidade de um guia; bastava que o sol estivesse nas suas costas e nascesse as suas frentes e seguir adiante. Quer queira quer não o destino o deixou ali, estrategicamente como isca. Os outros eram soldados e não precisavam dizer a ele ou avisá-lo sobre isso, bastava que o mantivessem à retaguarda e pronto! Era uma presa, um alerta aos demais. Dessa maneira, enfileirados, seguiram em frente.
À medida que as horas passavam a fome dos felinos aumentava e eles aumentavam suas velocidades. Sálvius cavalgou com os outros a noite inteira e não tinha a intenção de parar para nada. Montados, comiam, bebiam água nos seus odres e até urinavam cavalgando. Nada, nada de atrasos, determinou o general.
Quem também não queria perder mais tempo eram os felinos. Nesse instante já farejavam forte o odor dos cavalos e de seres estranhos ao seu habitat natural. Avistaram suas presas a uma centena de metros de distância; essa se encurtava cada vez mais e rápido. Os felinos eram mais velozes e pacientemente esperavam que suas presas estivessem exaustas.  Venceriam pelo cansaço de sua caça, assim, teriam mais sucesso no ataque fatal. Diminuíam suas velocidades e a aumentavam instintivamente. Presas cansadas era tudo o que queriam.
Com o general à frente os outros não perceberam a aproximação soturna dos felinos, os cheiros e os sons estavam a favor deles que, depois de analisar o ambiente e hora propícios se aproximaram tão rápido, por detrás do cavalo do guia, tão repentinos e velozes, por trás o cavalo do guia, que de um zapt! O maior deles, deu com a pata em garras sobre as ancas do cavalo do guia, cravando suas garras no animal com um só golpe. O bucéfalo desabou e, junto a este o guia. Os felinos caíram de boca no animal e os lanceiros, dando meias voltas, foram em socorro dos dois, mas suas lanças não foram suficientemente eficazes e eles mesmos correram riscos. Um dos cavalos dos lanceiros foi arranhado profundamente no pescoço e o sangue jorrou. Assim que viram, quando uma leoa saltou de encontro ao pobre guia,  abocanhando-lhe pelo pescoço,  cravando seus caninos em suas jugulares, os dois tentaram, mais uma vez, ir em seu socorro, porém, quando viram a facilidade com que a leoa escapou carregando o seu corpo dependurado, desistiram. Volveram a proteger seu general.  Os lanceiros usaram de toda as suas experiências em guerras montando animais e fizeram rodopios e cravaram esporas nos cavalos para que estes dessem coices, escapando dos ataques das leoas que ainda os ameaçavam. Sem mais o que fazer vazaram em galope olhando para trás e vendo o pobre do guia e seu cavalo sendo devorados pelos felinos com seus dois filhotes. Com dois a menos, resolveram sair logo daquele descampado; ali eram vulneráveis e seus animais estavam feridos e exaustos. Galoparam acelerados escoltando o general, rumo a um local seguro naquelas savanas.
 
Estas viagens na antiguidade eram cansativas, perigosas mesmo. Eram muitos os dias e as horas de cavalgadas não passavam. O cansaço reverberava pelo corpo dia-a-dia. Tinham que parar novamente; caso era que se não o fizessem, não chegariam ao seu destino com seus cavalos vivos e isso atrasaria ainda mais a jornada. Mesmo assim, cavalgaram correndo esse risco e deixaram para armar acampamento ao anoitecer a alguns quilômetros adiante.


7ª Sessão: O que consiste de como os eventos começam a conspirar a favor.

Já era madrugada de outro dia quando resolveram parar. Descansaram por apenas umas duas horas. Sálvius observou que estavam numa região de planície muito alta, por isso, estava tão frio. Mas, o sol se levantou rápido e no alaranjar da aurora o general resolveu dar umas voltas na esperança de saciar sua sede, estavam sem água e saiu a procurar por uma mina qualquer. Subiu uma colina e se dirigiu até onde viu uns arbustos amontoados; pareciam daquelas oliveiras médio-orientais que conhecia, mas não eram e, lá também não havia mina alguma. Desanimou, sentou na relva e respirou o ar rarefeito do frio que não enchia os pulmões. Enquanto o sol emergia agora lento começou a observa-lo. Olhou para o horizonte. Concluiu, pela sua posição, que estavam cavalgando em círculos, desde que escaparam daqueles malditos felinos. Ficou sentado lá imaginando de como faria para não desistir da empreitada. Não desistiria, era o que sentia.
 
Um dos lanceiros estava de pé lá onde eles pararam e resolveu urinar ali mesmo, regar a relva. Enquanto alijava seu liquido morno, avistou uma águia que sobrevoava acima de sua cabeça. Esta ficou planando em círculos como quando os urubus ficam voando aproveitando-se das térmicas. Lembrou das instruções militares e resolveu esperar para aonde ela seguiria voando no intuito de a seguir, pois, aonde havia uma águia ou um gavião, também haveria um exército ou, o mais provável por aquelas paragens, uma montanha perto que era o que eles procuravam. Seguiu a ave e ela voou na direção oeste, lá onde o sol se poria. O lanceiro foi correndo, subindo, olhando para cima para não a perder de vista. Subia por um aclive e cada vez mais a águia voava mais alto no horizonte ao longe. Subiu mais e mais e quando começou a chegar no topo da colina percebeu a ave ir descendo rapidamente, mergulhando, e desaparecendo por uma altíssima e larga muralha de pedras acinzentadas, escarpadas, riscadas em encaixes mal caprichados de uma natureza singular. Uma muralha quilométrica. Um paredão enrugado, que, o lanceiro até duvidou que existisse. Era diferente de tudo que já havia visto antes. O que vira há dias era somente planícies intermináveis. — Que rochedos esquisitos. Falou consigo.  O lanceiro desceu mais que depressa a colina até chegar à base daquele rochedo e se assustou com a sua altura da mesma vista de perto. Fincou sua lança ao chão de uma cal fofa. Iniciou uma subida. Subiu pequenino e com dificuldade por uma rachadura que lhe cabia era muito vertical, íngreme e quase não se tinha onde se agarrar ou pisar. Depois de um bom tempo de peleja aos escorregões conseguiu chegar lá em cima a cerca de uns cento e onze metros. Procurou pela águia e a viu voar indo desaparecer na direção de uma enorme montanha azul-claro e reluzente. Enfim, ali estava ela, aquele objeto do desejo do seu general — E porque não seu desejo também? —. Ela estava lá, bem à sua frente, mas, ainda, há uma boa distância. Contemplou-a vendo cintilar dela, milhões de pontos luminosos dançantes; ilusão causada pela distância na qual se encontrava e, à medida que o sol se movimentava a mesma ficava cada vez mais azul. Ele, então assoviou forte, como se assoviam nas guerras e o general e o outro vieram rápido, subiram aquela colina correndo e a desceram até os rochedos onde viram a lança do soldado fincada a cal. Algo no general dizia que o momento era de uma boa descoberta; ele sentia isso, tinha cumprido suas ações até ali com coragem, não procrastinou e nem deixou de acreditar em nenhum momento que achar aquela montanha não seria possível. Assim, subiram aqueles rochedos como as cabras das montanhas, com muita habilidade. Quando lá chegaram, não acreditaram no que viram: A montanha finalmente estava lá, bem diante dos seus olhos.  repito aqui: a uns bons quilômetros de cavalgadas. Por um bom tempo Sálvius e os dois lanceiros ficaram contemplando a montanha azul. Sentiram o mesmo prazer de uma vitória importante em suas batalhas. Era isso mesmo; era a recompensa por nunca terem perdido o foco no objetivo.  Desceram agarrados um ao outro pelas rugas dos rochedos, levantaram acampamento, montaram seus cavalos, contornaram por toda a tarde  os rochedos e, finalmente, cavalgaram na direção daquela montanha dos seus desejos. 

 
Não passaram por mais perigos até então, e, só pararam quando chegaram à base da montanha azul, onde tinha um riacho de águas cristalinas. Era um presente e um convite para um bom descanso.  Lá foram eles para a sua margem. Pararam, num local plano e seguro, tanto para eles como para os animais, desmontaram. Não sem deixar de observar aquele lindo riacho que escorria por entre pedras angulares, perfeitamente justapostas para dar uma impressão de tranquilidade ao visitante que por ali passasse. Sálvius não queria perder mais tempo do que já perdera, achava sempre estar atrasado, queria salvar seu imperador, queria pegar logo essa flauta e voltar o mais rápido possível para Constantinopla; descansar por um bom tempo, rever sua esposa e filhos, queria não ver o Império, pelo qual tanto lutou, se transformasse num Bizâncio. Catou umas migalhas de pães e carne seca, encheu o odre com a água do riacho. — É o que tenho para hoje! Disse a si mesmo. Ordenou aos lanceiros que não ficassem a vista com seus cavalos. Desejava que retornassem juntos. — Meus soldados e amigos fiéis, conto com vocês. Disse aos dois, sem que os abraçasse. Voltou-se para a montanha, atravessou aquele riacho das adversidades escolhendo as mais seguras pedras para pisar. Seguiu firme, sem olhar para trás e iniciou sua subida por um aclive simpático, pois a montanha começava assim: subida leve, depois uma mais íngreme, logo depois, uma subida de cansar os músculos das coxas até que se alcançasse um outro paredão com centenas de metros, com centenas de rochas que mais pareciam cupinzeiros. Subiu muito até chegar nesse paredão e, ao chegar teve que escolher por onde melhor seria começar sua escalada. Não poderia se preocupar com a altura, não olharia para baixo. Escalaria lentamente até o topo, planejou. Com muita dificuldade encontrou umas raízes onde se agarraria e começou a escalada; lenta, demorada, se perguntando: Quantos rochedos terei que escalar para conseguir alcançar esse meu objetivo? Quantos mais? Nesse instante escorregou. Agarrou-se como dava entre as brechas que mal ofereciam os rochedos e, usando das forças dos dedos de uma só mão, puxou-se dependurado. Encontrou, nessa hora, uma energia inimaginável. Não sabia de onde ela vinha, mas tinha a certeza de que a conseguira da esperança de alcançar o que queria. Continuou escorregando e se agarrando e se puxando por dezenas de vezes até que alcançou a primeira daquelas rochas engraçada, que mais pareciam cupinzeiros. Agarrou-se a esta primeira rocha e procurou descansar. Agarrado estava, agarrado ficou. Começaria a jornada até o alto com mais energia, pensou. Olhou para aquelas centenas de rochas que pontilhavam a vertical até o alto mais alto que conseguia enxergar e, assim, elas iam sumindo. E as pedras que falam, lembrou-se, nada das “pedras que falam”? se perguntou. Sálvius não se lembrava da fala final do oráculo, sobre as circunstâncias que o fariam descobrir quais eram elas. Resignado, procurou recuperar as forças que lhe restavam agarrado àquela pedra. —Tudo isso por uma flauta. Resmungou, pois, ninguém é de ferro e reclamar também faz parte do processo. Procurou não pensar em mais nada e se aquietou. Ficou um bom tempo abraçado àquela rocha, que chamava de pedra, se sustentando também pelas suas coxas entrecruzadas. Procurou descansar ridiculamente naquela posição cômica quando, de repente!  Sentiu algo resvalando em suas costas... um vento fresco e, em seguida, escutou um bater de asas. Olhou para detrás de si e aquela águia gritou tão perto dele que por pouco o general não se soltou e despencou lá de cima. Sálvius também gritou, queria espantá-la, porque não queria servir de refeição a filhote de águia nenhuma. A ave voou dando rasantes pelas costas do general e depois de um tempo fazendo isso se afastou. Foi até o alto da montanha e despareceu. Sálvius decidiu que já era hora de continuar subindo. Nesse intervalo viu que a águia havia retornado e pousado numa daquelas rochas esquisitas. O general ficou observando a ave com cuidado enquanto pelejava para continuar subindo. Foi quando ela deu outro grito que chamou a atenção de Sálvius. Quando ele olhou fixamente para ela a mesma bicou, intermitente, a rocha na qual pousara e dela veio um som parecido com o rufar dos tambores de guerra de suas legiões. A ave fez isso outras vezes em outras rochas, que soaram iguais. Sálvius, então mudou de caminho; como muita dificuldade, claro. Seguiu pelas rochas que soavam mostradas antes da ave bater asas e desaparecer em ascensão na escuridão. O general, então, foi dando com murros em todas as rochas possíveis; escutava a cada uma delas e ia descobrindo por qual caminho deveria seguir, até chegar ao topo.

 
Horas se passaram, há muito já escurecera e o general ainda não atingira seu objetivo. Àquela altura o frio já congelava os seus dedos, quando respirava, congelava seus pulmões também. Sem se dar conta, pois a vontade nele era muita, chegara a uns quatro mil metros de altura. Não tinha mais forças humanas para continuar subindo e, quase despencou abismo abaixo por várias vezes. acometeu-se de desmaios, dependurando-se como podia. Não queria cair na escuridão, — não! depois de chegar até ali. Desconsiderou essa possibilidade. Fechou os olhos. Nada poderia fazê-lo desistir. Seria o mesmo que um ato vergonhoso de deserção. Procurou manter-se focado na sua missão para que encontrasse mais forças e continuasse com a coragem necessária para chegar até onde queria.

O frio congelava os dedos dos seus pés e os das mãos. Inspirava com dificuldade o ar gélido das alturas e espirava o ar condensado que saía de seus pulmões provocando uma pequena névoa que logo se dissipava.  À medida que as horas iam passando tudo ficava mais difícil e gelado. Já era madrugada e sua respiração já não estava como antes; seus pulmões congelariam em pouco tempo. Nunca lhe passou pela cabeça perder as esperanças. Não morreria congelado, estava certo disso, agarrado a outra rocha, lá no alto, quase no topo da montanha, nunca perdera a esperança. Abraçado a ela e de novo naquela posição ridícula ficou sem saber o que faria. Se não fosse tão trágica, poderia ser interpretada como outra cena muito cômica. Triste seria o fim de um homem que não poderia ser enterrado com as honras militares que lhe cabiam. Fechou os olhos e, por ums minutos acometeu-se de uma síncope.
Após fechar definitivamente os olhos, mas com um sentimento de que tudo daria certo, pois, afinal, se ele ainda não havia atingido a sua meta, era porque não tinha chegado até o final daquilo tudo, então, para ele, o  final só acontecia quando do sentimento de um dever ou uma meta cumprida e, isso ele perseguia desde que se conhecia por gente. Ficou esperando por algo que o tirasse daquela situação, daquele imbróglio sem solução.
Ficou por mais meia hora tentando se agarrar como dava e com as poucas forças que lhe restavam. Quando não sentia mais seus dedos que agarravam aquela rocha e com os seus membros inferiores congelados, quase que viu tudo ir por água abaixo; tudo seria engolido pela escuridão. Quase se soltou involuntariamente e até viu a sua vida inteira passando pelas suas lembranças num piscar de olhos. Chegou a sentir algo como uma corda a resvalar em seu pescoço, depois em sua cabeça e nos seus braços; onde podia senti-la, sentiu.  Duvidou daquilo achando estar delirando e aquilo ficou resvalando nele insistentemente, até que resolveu abrir os olhos e para a sua surpresa, não é que aquilo era uma corda mesmo? Instintivamente a agarrou, enrolou-a no braço direito várias vezes e se jogou ao ar ficando dependurado. Agarrou a corda com a oura mão e mesmo sem sentir nada dela, procurou fazer um nó pelos quadris, até que começou a ser içado lentamente, balançando como um pêndulo. Alguém lá de cima puxou o general lentamente.
Enfim, Sálvius chegou ao topo. A corda, nesse instante, se afrouxou e foi jogada no chão. O general ainda olhou ao seu redor para ver quem era aquele que acabara de salvá-lo. No entanto, nada viu, além do intenso e úmido nevoeiro que o cercava.
Despertou tarde da manhã naquele frio das alturas. Procurou sonolento pelo seu odre e, com muita sede tentou engolir água; mas, o que desceu pelo seu esôfago foi somente uma sensação amarga e muito desconfortável de sabe-se lá o quê. Levantou com dificuldade, cambaleando. A claridade do sol àquela altura era de incomodar muito, quase não conseguia abri-los enquanto a brisa continuava soprando gelada. Ainda, respirava com dificuldade. Deveria estar muito alto, pois, as nuvens correntes lhe passavam apenas à altura dos pés, dando ao general uma visão de uma de névoa em gelo seco infinita. Caminhou um pouco. à sua frente, viu um jardim caprichosamente podado e quadriculado, com centenas de caminhos que lembravam uma gigantesca cocha de retalhos. Eram limpos. — Quem se daria a esse trabalho? Perguntou curioso o general a si mesmo. Com o tempo, percebeu ser uma espécie de labirinto, simples, mas era. Aquelas lindas flores de toda espécie, aquele perfume, aquela névoa seca, tudo isso, embebia de uma embriaguez lenta, todo e qualquer visitante que caminhasse por entre aquele jardim do éden.

Com o esquentar do sol da tarde, as nuvens se dissiparam, trazendo um céu tão azul que, inacreditavelmente parecia poder ser tocado. Um pigmento suave, suspenso, inerte, brilhante, dava ao general uma visão de véu transparente e leitoso, que envolvia todo aquele topo de montanha. Para quem não era acostumado, tudo ali era magia. Continuou andando, abobado, seguindo seu instinto, que o levava para onde o seu instinto, naquele momento, o conduzia e, esse o levou para aquele trono, em pedras, ladeado por dois totens carrancudos e com um encosto em forma de lápide; como dissera o oráculo em Óio. Lá se sentou. Procurou não esmorecer, esperando qualquer som que lhe entrasse pelos ouvidos. Recostou na pedra em forma de lápide e se sentiu desconfortável. Enfim, a paz que tanto buscara sentir nesses dias todos de jornada apareceu. Descansaria de todo o esforço da noite passada. Dormiu por mais uma noite inteira até o outro dia.
 
 
 
 
 
 
 
 Aventuras de Thor Grael e a flauta Mágica
Segundo Capítulo

A Procrastinação

A procrastinação, desde os tempos remotos é a prima da letargia. São invisíveis. A essa lhe falta movimento, ação, asas nos calcanhares. Àquela que o vestirá de preguiças eternas o deixarão a bordo dum barco sem movimento; o barco da zona de conforto, longe de tudo e perto do nada. Barcos sem remos não navegam no deserto, não vencem dunas; não conquistam sonhos.
Master Coach Franklin Rodrigues

8ª Sessão: A Procrastinação, a Letargia e a Preguiça.

Procrastinavam, não cumpriam suas ações com...O sol quente. A falta de ventos agradáveis. A repetição incessante das tarefas. As mesmas ordens de todos os dias. As caras murchas, enrugadas; depósitos de sal marinho nos rostos destes marujos indolentes, que vivem somente para o mar e nada mais. Desde que chegaram do Brasil, neste ano de mil seiscentos e sessenta e três.  Homens sem fé, letárgicos, cheios das cóleras, causadas pela da falta de coragem e esperança; cá para nós, para se acometer dessas cóleras, basta não ter, pelo menos iniciativa, essa é necessária para quem está ancorado na Costa da Guiné na África há quase dois meses. comecemos a seguir em frente, mesmo que estejamos num cubículo qualquer sem poder nos movimentar. Partir pra ação, isso mesmo, sair desse estado letárgico. No entanto, aqui no nosso caso, fazer a diferença não se passava em pensamentos pelas cabeças destes homens sem instrução. Estavam longe de adquirir o conhecimento necessário e as informações que uma mudança de comportamento como essa exigiria, não que não fosse possível, caso o interesse pessoal fosse maior que a preguiça, pelo menos de um marujo gaiato, se conseguiria fazê-lo partir para a ação, pois, nada é impossível de se fazer nesse mundo. Basta que se tenha vontade própria e coragem.
Esses marujos gaiatos, beberrões e sem instrução ficaram a bordo desse navio negreiro e nada tinham a perder. No entanto, nada do assunto do parágrafo anterior iria caber nesse navio. Eles mal sabiam seus nomes e quem eram seus pais. Por que então procurar algo a mais em suas vidas? Eram homens com as obrigações repetitivas de limpeza e manutenção do convés, de encordoamento das velas e panglotis; era somente para isso que serviam e nada mais.  
Até eram pagos para isso, muito mal pagos; diga-se de passagem. “Mas e daí?” Perguntavam eles aos seus botões. Era isso ou morrer de fome em terras portuguesas e suas esperanças se resumiam em escolher entre duas opções: uma pobreza infeliz e faminta ou a mesma pobreza correndo riscos pelos mares sem fim. O que valia mesmo para eles era estarem vivos singrando pelos mares a bordo de  qualquer barco que os tirasse do risco de morte por inanição; nesses tempos de louvor a Dom Sebastião de Portugal. Agradeciam. Acreditavam nisso: comer uns charques, e com sorte beber uma caneca de rum. O tempo todo procrastinavam indolentes, sem culpas, mas, continuavam a ser marujos.
No convés, quando dos raros momentos de descanso, ficavam imaginando e discutindo de quando o capitão voltaria e por qual lado do paredão de barrancos, após a praia, desceriam pelas falésias. Nesses tempos nada era muito certo, nada planejado e, se o capitão falara que iria negociar escravos em terras da Guiné não era da conta de ninguém de quando ele voltaria; nem do seu próprio imediato, que por obrigação da função ficara a bordo. Alguém tinha que controlar aqueles infelizes maltrapilhos.  
O imediato, do qual o chamaremos assim, observou por dias a inquietude a bordo. Todos os homens começavam a se estranhar pela simples falta do que fazer. Já contavam com anos de trabalhos juntos nesse antigo navio negreiro e, mesmo assim, se estranhavam todos os dias. O imediato ficou ali do passadiço, olhando para o convés, se apoiando numa corda de mastro a punho cerrado, observando de como eles se comportavam. Presenciou várias rusgas e decidiu que já era hora de lhes dar um agrado; depois de tanto tempo ancorados, talvez, lhes fosse merecido.  
Tudo era muito escasso e fazer agrados era por demais muito dispendioso também. Resolveu que esvaziaria um tonel de rum dos médios. Isso garantiria uma boa diversão para acalmar os ânimos a bordo, concluiu o imediato.         
Eram dezesseis homens sem contar ele mesmo e um grumete, do qual, nem se importavam com sua presença, pois, para o menino não existiria nenhum tipo de pagamento e sua comida era a que sobrasse. Sorte seria se se conseguisse virar um marujo preguiçoso e indolente antes de morrer.   
Decidido o imediato chamou dois dos marujos de sua confiança, o Caolho e o Tartaruga e os incumbiu de descer até ao porão porque logo anoiteceria. Deveriam subir com um tonel de rum dos médios. Ali, naquele instante os dentes dos dois apareceram podres de felicidade. O sol se pôs e lá se foram eles avisando aos outros que arrumassem canecas para uma rodada com rum. Os maltrapilhos correram pelo convés a procurar pelas canecas de todo o tipo e sujeiras, correram pelos cantos, olharam dentro dos baldes que podiam encontrar. Uns e outros se estranharam, porque não havia caneca para todos, alguns pegaram cuias, odres e outros conchas e tudo se resolvera na expectativa de poderem todos, depois de semanas, se divertirem bebendo do rum do capitão. Era o néctar dos deuses. Para quem não tinha nada a perder, o pouco já era muito naqueles tempos.
O Tartaruga e o Caolho subiram pela estreita escada que saía do porão, abaixo da popa, arrastando o tonel médio, que já era grande para, apenas, aqueles dezesseis homens. Prudente e com receio de um motim, o imediato não beberia junto a eles.  
Todos se amontoaram estendendo seus recipientes na intenção de serem os primeiros a receber a primeira dose. Era uma ansiedade típica de quem não tem muito o que esperar pela vida e valia mesmo era o aqui e o agora e nada que viesse depois importaria. O interesse era o do momento: se deliciar com aquele rum antes de morrer. Assim pensavam. A felicidade era nos instantes presentes e o futuro era um destino traçado por Deus, confortavam-se em seus pensamentos letárgicos.
Não lhes faltava a ignorância, mas tinham o senso comum como aliado na sobrevivência de todo santo dia. Coragem para mudar, se instruir? Nem de longe tinham como prioridade, mesmo que fosse apenas para saber contar mercadorias. Somente isso já os colocaria a um passo adiante aos outros. Nas atuais circunstâncias era mais confortável saber que não iriam morrer amanhã do que criar a devida coragem na prática de uma ação diferente. Tudo que era diferente e desafiador os colocaria em mais riscos de morte. O desconhecido -e nosso maior inimigo, diziam.  
Começaram a distribuir o rum e todos se serviram à vontade, inclusive o Caolho e o Tartaruga, um luxo mesmo. Alguns se recostaram nas balaustradas do convés e outros se sentaram encostados as bases dos mastros e beberam. Enquanto degustavam seu rum as goladas, esperavam o velho marujo contador de histórias dos mares; era o que se tinha de melhor para fazer enquanto se embebedavam. O velho contador de histórias veio rodeando o convés e levantando por vezes a sua caneca com gestos gaiatos cumprimentando os demais. Todos o fitavam ansiosos e muitos queriam mesmo era ficar perto dele. Este se achegou de um balde em madeira emborcado e. quase tombando para trás, se sentou gemendo. Colocou a caneca entre coxas sobressaltada em ossos e acendeu um velho cachimbo com fumo, que guardava a sete chaves. Olhou o céu com aquela névoa seca. Nessa época, ela quase escondia as estrelas. Começou a falar sobre aventuras e tempestades; coisas que aconteceram lá pelas bandas dos mares das índias... coisas horríveis, sobrenaturais, histórias sobre monstros marinhos.
Entre umas e outras goladas, na medida do possível, todos eram ouvidos; até o imediato se interessava, mesmo sabendo que as histórias daquele velho desgrenhado e com um só dente eram, por deveras, história de marinheiros, ou seja, mentirosas.  
A hora foi passando e os marujos foram se decaindo bêbados. Os mais exaltados e com suas diferenças a bordo não se contentavam em ficar somente altos e alegres com o consumo da bebida. Assim que tiveram umas chances começavam a maquinar em suas mentes como poderiam resolver essas diferenças com seus desafetos. Tudo muito normal quando não se tem nada a perder nessa vida inútil.
Um e outro se levantaram e foram a boreste tirar satisfações com outros dois que estavam a dar risadas e se empurrar. Estes perceberam a chagada dos dois do outro lado e já puxaram de punhais a resolver de um supetão as ameaças que se aproximavam. Eles estavam certos que as dívidas antigas deveriam ser resolvidas com umas belas furadas nos buchos alheios.
Umas ameaças aqui, outras ali, investidas contra um e outro, safanões que chamaram a atenção dos demais em tumultos e do imediato, que interveio em tempo hábil e, os quatro, logo se contentaram as trocas de olhares com ameaças futuras. Depois disso, a gaiatice correu solta no convés e os desgraçados já tontos de tanto rum deram-se em risadas e conjecturas a respeito do acontecido, deixando o velho contador de histórias e com um só dente em reticências.
Com bebida o suficiente a noite não tardou em se adiantar nas horas e logo já era tarde; via-se pelo adiantar da lua no horizonte para o mar. Todos ali se amontoaram como podiam no convés. Nenhuma novidade. Era ali que eles dormiam mesmo. O imediato recolheu-se aos aposentos do capitão, aproveitando-se dele, enquanto podia.
No seu canto, recolhido no cansaço, ficou o pequeno grumete, frágil, desmilinguido nos seus onze anos de idade e com sua branquelice sardenta na cor de ferrugem. Seus cabelos avermelhados desciam até os ombros num caracolar oleoso; parecia estar o tempo todo molhado, mas não estavam. O pobre coitado, lembrado pelos outros somente nas horas de lavagem e de dar brilho no assoalho do convés... só passava fome. No entanto, nessa noite de bebedeira a bordo esperava ter um pouco de paz e descansar tranquilo, sem que lhe aporrinhassem as ideias ou algo mais. Não gostava de dormir, só tinha pesadelos. Sendo eles sempre os mesmos onde visitava a casa de seus pais, exatamente no dia em que o levaram até a cidade do Porto e o venderam a um negociante de grumetes. Nesses sonhos, recordava ter ficado preso numa espécie de casa baixa, úmida e, junto a outros dois meninos. Sofria de agonias por muitos dias até que fora negociado e levado ao navio, no qual, hoje, está a ensaboar e lustrar o convés sem descanso, por todos os dias, desde que zarparam. A sua primeira jornada foi pelo atlântico levando mantimentos, galinhas e gado para o Brasil, depois, zarparam na direção do continente africano onde se encontra ancorado até então.
Difícil essa vida de ser trocado por um punhado de moedas. É humilhante, mas fazer o quê? Seus pais, que vinham das regiões interioranas de Portugal iam sobrevivendo, fazendo filhos e vendendo eles quando faziam dez, onze anos de idade; não os interessava serem meninos ou meninas e, com o saco de moedas da negociata compravam sementes de sevada para plantar naquelas longínquas  terras de Vifeu, na Província de Beira. Naqueles tempos ainda esperavam pelos milagres de Dom Sebastião. Iam se mantendo como podiam vendendo os filhos ano após ano.
O pequeno grumete nunca se conformaria com isso. No momento, estava mais interessado era mesmo em sobreviver; comer alguns peixes quando conseguia pescá-los sossegado, uns restos de charque e alguma lavagem que sobrasse também era bem-vinda. Ia se mantendo como dava; era assim mesmo, sobrevivia como um peso morto num navio do qual nunca pediu para embarcar. Essa era a pior sorte que poderia ter um menino naqueles tempos. Se pelo o menos fosse uma caravela mercante a caminho das índias, de uma companhia qualquer, poderia até se tornar um marujo de verdade, sonhava acordado. Mas aqui, pensava, logo seria jogado ao mar como um defunto qualquer para não dar mais despesas. Assim entendia mais ou menos a sua ridícula realidade naquele navio dos infernos. Contudo, continuava a ter esperança, não de dias melhores, mas a de que algo viria acontecer para mudar aquela situação de puro flagelo. Continuou fingindo estar dormindo para que nenhum daqueles marujos sem escrúpulos o viessem a perturbar.
— Maldito barco dos infernos, resmungava o coitado.
Depois daquela bebedeira, seguiu-se a noite com certa tranquilidade e, o grumete, que tinha o nome de um deus, conseguiu dormir sem ser importunado.
 
9ª Sessão
 
Passaram-se mais sete noites depois daquela bebedeira e umas nuvens cirrosas lá no horizonte em terra insistiam em tampar o nascer do sol que aparecia em minúsculos  pedaços brilhosos. Os homens de bordo despertavam já procurando se embuchar com os charques crus e era isso que dava forças a eles para aguentar até a cesta do sol a pino.
Todas as manhãs o imediato ordenava ao Vermelho, um senhor albino de cabelos desgrenhados e magro de inanição, que subisse no mastro principal e se posicionasse no cesto da gávea a esperar por algum avistamento; — caso era que o capitão poderia retornar a qualquer dia, pensava o imediato sem falar. O velho subiu com muita rapidez pela rede de cordas até o alto do mastro; era uma lagartixa, comentavam e riam os marujos gaiatos. Quando chegou lá no cesto se acomodou e tratou de mascar uma goma de fumo e a pitar um cigarro de palha na tranquilidade que Deus lhe deu. Enquanto isso, aos gritos e cantorias iniciaram-se os repetitivos trabalhos no convés.
De quando em quando o Vermelho dava uns gritos de alarmes, mas eram todos falsos, os ventos fortes balançavam as folhagens da floresta ao longe, e, das bananeiras acima dos barrancos, brotavam alguns animais, apareciam do nada. Outros movimentos estranhos o enganavam. Foi assim por mais de três horas nessa manhã. O movimento em terra estava além do normal e lá no convés as gaivotas enchiam o saco dos marujos que pescavam algo para o almoço.
Apesar do sol já escaldante o Vermelho se recostou no mastro e pôs um dos pés na borda do cesto se achando um privilegiado. E, numa vacilada de preguiçoso, não viu quando saíram por entre as folhagens um marujo que fora com o capitão em terra. Daí saiu mais um e este veio acenar para o navio utilizando-se de um trapo de pano amarrado na ponta, ondulando para lá e para cá, esperava que alguém os visse. O vermelho continuou no solavanco do cochilo com a cabeça até que lhe jogaram algo do convés o que o fez olhar para baixo. Viu todos os homens a boreste a apontar para o continente. Somente depois disso, esfregou as visagens com as duas mãos e olhou na direção da terra onde viu os dois marujos. Deu-se por si, apontou e começou a gritar: Homens em terra! Repetidas vezes.  Foi um burburinho só de amontoamento de um lado do navio de onde o imediato, imediatamente ordenou baixar duas panças, botes, e escalou seis homens para leva-los em terra; ir de encontro ao capitão para ajudá-lo com a empreitada. Remaram até a praia com ondas e ventos a favor.
Nesse momento,  em terra, lá no barranco, os marujos procuravam uma falésia menos íngreme para que descessem com os mais de quatrocentos negros capturados nessa empreitada. Eram homens, mulheres e crianças acorrentados pelos pescoços e pés, numa fila indiana interminável que serpenteava viscosa. à medida que surgiam era como se a mata fechada os vomitasse indigesta. Era a ingratidão, a maldição da terra que antes era a sua mãe, a sua deusa, que agora os abandonava.
 À base de açoites intermináveis, chutes e safanões os negros iam descendo por uma falésia em “S” de uns trinta metros com muita dificuldade; gritos, lamentos e choros davam uma impressão de cortejo fúnebre. As correntes nos calcanhares e pescoços pesavam e por vezes faziam com que eles se despencassem metros abaixo, os do alto do barranco seguravam com muita força os de baixo, que perdiam o fôlego, enforcados pelas coleiras de ferro. Outros se dependuravam de cabeça para baixo, rasgando seus calcanhares. Foi  um sofrimento terrível para eles, num transcurso de  interminável queda de dignidades.  Enquanto isso os marujos continuavam a açoitá-los sem piedade.
Chegando nas areias da praia todos foram se jogando ao chão, caindo, como caem os cadáveres em morte repentina. Mulheres e crianças choravam e homens também. Os marujos os chutavam afim de amontoá-los e facilitar a contagem antes do embarque. Todos imploravam por água juntando as mãos vazias num dialeto incompreensível para os marujos. Esses davam para uns poucos apenas gotas e riam enquanto faziam isso.
A interminável fila vinha se despencando barranco abaixo quando o capitão  surgiu, numa vestimenta imunda com sua camisa de babados esvoaçantes. A barda cobria-lhe o rosto como a uma coruja velha e em um dos ombros carregava seu bacamarte, cantil em couro e um chicote na mão direita. Desceu escorregando pela falésia enquanto os últimos negros se decaíam na areia. Com ele vinha também um marujo tosco que mal levantava os pés para andar, um hipopótamo que chutava um quilo de areia a cada passo; era um bruto. Portava as chaves das correntes. Outros marujos eram expelidos das folhagens carregando mantimentos e presentes.
O capitão logo tratou de arrumar umas pedras para se sentar, cuspiu um tijolo de sequidão da boca na areia e pediu para aquele bruto lhe trazer uma botija de rum com aqueles que empurravam os botes na areia branca da praia. O mesmo o fez e o capitão deu uma golada das boas chacoalhando o liquido antes de engolir. Ascendeu um pito de fumo e pediu que os marujos aguardassem as ordens porque antes queria se satisfazer de algo, pois a empreitada fora dura e ele achava que era merecedor de um bom prazer antes de zarparem. Deu uma respirada profunda e se levantou com certa dificuldade se apoiando com a mão direita ao joelho também direito e, recomposto seguiu caminhando até entrar por entre meio aqueles negros com a finalidade de encontrar uma bela negra que lhe satisfizesse seus desejos sexuais. Andou para aqui e ali, saltando correntes, até que viu uma bela e esquia criatura que lhe interessou. Chamou aquele bruto e pediu que ele a livrasse das correntes e este assim o fez. A negra já quase convalescida de fome e sede tentou se esquivar das mãos do capitão que de tudo fazia para lhe agarrar pelos braços; perdendo a paciência este deu de uns safanões na cara dela e a arrastou pelos cabelos mesmos, levando-a para detrás de umas pedras e a estuprou ali enquanto os outros negros gritavam e choravam em lamentos, porque acorrentados, com sede e fome  e contra aqueles chicotes e bacamartes nada podiam fazer que esperar pelos próximos acontecimentos debaixo daquele sol escaldante e suportando os ventos que cortavam suas faces.
Feito o que tinha que fazer o capitão veio ajeitando suas indumentárias imundas e com uma das mãos chamou os marujos que aguardavam circundando aquela ruma de coitados, agora besuntados de areia até os dentes. Quando chegaram ao capitão este ordenou que iniciassem o embarque nos botes e que fossem o mais breve possível sem deixar ninguém para trás, fossem quantas viagens fossem até o navio, pois, as mercadorias passavam de duzentos negros e que não perdessem as contas; se isso acontecessem pagariam com a própria vida. Seus incompetentes! Resmungou.
Nos botes os negros foram amontoados de vinte em vinte, assim como eram acorrentados. Contados, outros vinte eram obrigados a empurrar os botes vencendo as ondas e nessa sequência doze viagens foram feitas até que se esgotassem em praia as mercadorias todas.
O embarque no navio não fora com menos sofrimento e à medida que os negros iam subindo pelas teias de cordas que lhes servia de escadas iam também caindo e se puxando uns aos outros e se enforcando novamente e rasgando seus calcanhares e eram homens e mulheres e crianças não querendo subir e sendo açoitados novamente e essa operação durou mais que o esperado pelo capitão, que aguardava já no passadiço junto ao imediato.
Quando embarcados já iam os negros sendo jogados no porão logo abaixo do assoalho do convés. Eram três entradas que se fechavam com grades em ferro fundido quadriculadas, medindo pouco mais de um metro quadrado. Ali dentro numa altura de mais ou menos metro e oitenta passariam quase três meses de sofrimento na viagem até o porto de Santos no Brasil, se assim os ventos ajudarem.

10ª Sessão

Mas o capitão havia escondido um segredo de seus homens que tinham ficado a bordo. Não queria ele causar espanto e burburinhos entre eles por causa do que veriam com seus próprios olhos. Tratou de ordenar a descida de um dos botes já içados e ele e aquele bruto remaram de volta à praia. Chegando lá fez um sinal com um assovio no que já tinha combinado com outros dois marujos que ficaram em terra desde então. Estes apareceram por entre as folhagens trazendo consigo devidamente acorrentada uma negra que mais parecia um guepardo. Esquia, músculos aparentes a luz solar, definidos como um deus Apolo do sexo feminino, tanta era a sua beleza. Dela saia uma silenciosa resistência que impunha respeito até ao mais audacioso guerreiro como Ogum. Um marujo a trazia por uma corrente presa a uma coleira de ferro no pescoço o outro pelas algemas das mãos e seus pés eram presos também com algemas numa corrente curtíssima entre elas, o que lhe impediria de correr ou usar suas pernas longas e coxas tesas como armas de luta. Isso fora recomendado pelo rei africano que a vendera para o capitão. Suas vestes eram apenas uma tanga vermelha e umas dezenas de colares e pulseiras nos braços e nos tornozelos. Na cabeça, fora os enfeites em ouro que o capitão já havia surrupiado, tinha centenas de penduricalhos em prata que conferiam a ela o posto de princesa hereditária da tribo a qual pertencia. Delas se conferiam códigos de linhagem lidos em toda a África, mas que no momento não a qualificavam ou a beneficiariam diplomaticamente em nada; muito pelo contrário, serviam, apenas, para torná-la mais exótica junto ao fato de que tinha mais de dois metros e trinta de altura. Uma aberração, nesses tempos de nanismos e inanição.
Sua postura construía seus pensamentos de vitória sempre e vice-versa, porque o cérebro de um ser humano como ela não admitia deselegância nem nos piores momentos de sua vida. Postura é tudo e é natural que ela sempre estivesse a um passo adiante dos outros, mesmo que estes fossem seus algozes. Um passo a diante, firme, sempre à frente, sem desistir jamais.
Tinha isso consigo naturalmente. Sua linhagem era forte há sete gerações e, por isso, era ela a sétima princesa a governar uma nação de vinte e uma tribos da Guiné.
Àqueles que ficaram a bordo, mesmo que distantes da praia, causou espanto tamanha aberração. De início, achavam se tratar de um grande totem, um capricho ou um presente para o capitão de algum dos reis das tribos que vendiam seus inimigos capturados para lucrar com o comércio da escravidão.
Quando chegou ao navio ela subiu pela teia de cordas com muita dificuldade, pois eles ainda a mantinham acorrentada daquele mesmo jeito. Mas, quando se postou de pé, a bordo no convés, diante daqueles incrédulos maltrapilhos, via-se que reluzia um brilho intenso na cor alaranjada do sol que dançava pela sua pele de melanina escura. Enquanto a circundavam para melhor avaliar o que viam, os marujos a contemplavam boquiabertos.     
Logo aqueles dois que a puxavam desde então a levaram para um compartimento com grades em ferro quadriculado, na ponta da vante do navio.  Aqueles dois a abriram e jogaram a princesa lá embaixo e um deles desceu para prendê-la a uns grilhões que ali sobravam. Era um compartimento para galinhas que já foram todas digeridas pela tripulação, mas que servia bem de prisão para tão ilustre criatura, dizia o capitão. E, lá ela ficou, sentada, sem se poder levantar. Era o menor dos compartimentos.
O capitão então exigiu do imediato firmeza com os homens para zarparem o quanto antes, não esperaria o anoitecer que se aproximava. Quero zarpar agora! Ordenou. E o imediato com dois silvos breves fez com que homens se movimentassem numa correria no convés e aos gritos de: Velas ao mar, soltar as amarras! Supervisionava o puxa-e-estica de cordas e o içar da ancora e das velas. Com elas ao alto o timoneiro girou com vontade o timão para a esquerda a bombordo e era por ali que zarpariam, segundo a posição das velas seguindo as direções dos ventos.
Se alguém estivesse sido esquecido naquela praia, veria o navio fazendo aquela manobra e seguindo com seus panglotis em vergas oblíquas ao pôr do sol    alaranjado, com três gaivotas estridentes a segui-lo. E assim o navio singrou.
A princesa, sentada e encolhida naquele pequeno calabouço cheirando a fezes de galinhas, com os braços a agarrar forte suas longas pernas, num abraço em si mesma, não demonstrou temores pelo que estava para acontecer daí por diante, inteligente, pensou consigo:  só posso tirar de mim coisas que reconheço e também se perguntou: porque então lutar agora contra um demônio no qual ainda não sei quem é? Resiliente, sabia que se conhecesse melhor o seu inimigo interior, poderia avaliar melhor tudo e lutar contra o seu demônio exterior, aquele que a açoitava e, vencê-lo, concluíra.
Seguiu tentando dormir enquanto, lá fora, o lusco-fusco também virara escuridão.

11ª Sessão

Duas semanas se passaram e, que sorte! Dizia o imediato. Navegando assim com esse sol maravilhoso estamos indo de vento em popa, terminou a fala se dirigindo ao capitão que estava ao seu lado. O capitão sacou de um sextante e avaliou estarem na direção correta e navegando à velocidade incrível de uns cinco nós. Comemorou dando uns tapas nas costas do imediato.
Lá embaixo os marujos pareciam uma comunidade de formigas bem treinadas e se coordenavam perfeitos nos afazeres de bordo; uma raridade. Ajoelhado e esfregando o convés com uma das mãos, usando uma esponja vegetal, uma enorme barra de sabão em pedra feita de um óleo que espumava bastante o grumete em estado de inanição, vestido numa bermuda listrada em preto e branco na vertical, rota e,  que lhe descia até pouco abaixo dos proeminentes joelhos, cumpria sua obrigação com capricho e muita presteza. Não gostava de levar esporros dos homens e menos ainda do imediato, se seus serviços não estivessem a contento, nunca chegaria a ser um marujo, mas jogado aos tubarões, para não dar mais despesa alguma ao capitão. Já que estava ali e se era para isso mesmo, mesmo contra a sua vontade, que fosse por uma causa justa, pensava a todo momento. Mas quem não tem que vencer sacrifícios antes de conquistar algo? Nada vem de graça mesmo. Sentenciou-se, demonstrando desde pequeno muita autoresponsabilidade.
Mais uns três dias nessa moleza de bons ventos, notara-se que numa virada repentina, dessas sem avisos esses ficaram mais fortes e mais úmidos e, de certa forma também mudaram de direção e o navio pendeu um pouco para o lado oposto, mas seguiu firme na sua direção. Enquanto isso os escravos abaixo do convés recebiam o que lhes cabia; pouca comida, jogada por entre os quadriculados das grades. Os mais espertos lá embaixo; que conseguiam comer alimentavam-se como dava numa dieta de frutas podres e osso de porcos, que o capitão comia e, de vez em quando uma lavagem com restos de charque derramada dum balde. Água, muito raramente. Suas necessidades eram feitas ali, naquele porão mesmo e, com toda essa falta de saneamento, muitos adoeciam, infectados pela difteria, tinham muita febre.
Como uma maldição não vem sozinha, apesar de todos esses infortúnios, como as sete pragas do Egito, os ventos ficaram mais fortes e aquele cheiro de umidade veio junto a ele, mais forte ainda, prenunciado uma bela de uma tempestade. Tudo no mar, no que se refere a uma tragédia atrás da outra acontece sempre à noite. Se aparecem monstros marinhos, como contara àquele velho marujo sem dentes, este apareceu numa noite de tempestades. Assim a história fica mais interessante e os ouvidos dos receptores mais atentos. E foi dessa maneira que esses homens viram bem à sua frente uma enorme nuvem em formato de bigorna vindo em suas direções. Mas como eles, o imediato e o capitão sabiam que não poderiam escapar dessa? Simples, o senso comum da observação. Que lhes mostrara pela experiência de muitos mares antes navegados, que sempre que uma tempestade vinha acompanhada de muitos raios na vertical era impossível se safar dela; iriam fatalmente vir de encontro um ao outro. Resumindo: ela estava vindo na sua direção e pronto. Ao passo que se ela estivesse se apresentando com raios à sua base de nuvens e na horizontal estariam indo na mesma direção ou outra qualquer e possivelmente não se esbarrariam. Porém, os negros lá embaixo e a princesa na vante nada disso sabiam. Nem  das tragédias advindas, não tinham informação de nada.
Numa só olhada o capitão fez com que o imediato ordenasse o reforço dos ilhós, cordas e pangolins prenunciando fortíssimos ventos e ondas altíssimas a gangorrear o navio. Acostumados, sabiam que um navio com 21 anos de idade e de de uso, já sabia bem se esquivar dos maiores aclives e declives que uma tempestade dessa forma causaria. Venceriam, porém com algumas perdas e alguns danos. Mas venceriam.
Ela foi chegando lenta e escura e tudo ficou noite tão rápido que se esqueceram de ascender as lamparinas. Essa era uma das pesadas, daquelas que antes de acontecer causam uma certa calma sombria, sem ventos por alguns minutos. Cercados por todos os lados estavam bem no olho na tempestade e não se sabia mais por qual lado ela viria. Homens se agarram às cordas e mastros. O pobre coitado do raquítico grumete se amarrou todo abaixo de uma das escadas laterais que subiam até o passadiço; crendo estar a salvo ali mesmo. E todos se preparam; menos os escravos, que já acorrentados engoliriam mais da água salgada que todos.
Ouviu-se inesperadamente o barulho de uma chuva forte vindo a bombordo lavando o mar e quando chegou veio forte, pesada, daquelas que molham tudo de uma vez. Todos ficaram apreensivos pois logo em seguida, no contar dos minutos a embarcação começaria a se ondular intermitente sem direção fixa. Os ventos eram terrivelmente instáveis, mas fracos, ainda. Prenúncio de uma coisa bem maior estaria por vir. Todos ali ficaram calados, porque era esse o instante anterior à grande tormenta que poderia acontecer, ou seja, se tudo desse certo passariam por essa e continuariam sendo os marujos medíocres de sempre; se não, se naufragassem, possivelmente morreriam sendo sugados pelo mar revolto e  toda essa mediocridade suas seriam sugadas para as profundezas. Era só isso. Esperavam e Confortavam-se em silêncio.
De repente um vento muito forte solavancou a embarcação de través pela popa e levou-a a subir à ré deslizando muito para o alto. Era uma onda enorme, tinha uns dezenove metros de altura e não formava tubos ainda. Foram subindo até seu topo e venceram-na descendo ainda à ré em muita velocidade e foi quando um forte vento fez com que virassem a estibordo, ou seja, à direita e os colocasse de frente a um enorme tubo que arrebentava a vante e o bico e metade da embarcação foram engolidos por ele. Nesse momento, muitos ficaram submersos por uns instantes. Os homens do convés receberam aquela porrada de água com força e os escravos abaixo acharam ter o navio afundado, tamanha era a inundação no porão e muitos também engoliram água salgada, como dito antes. Mas quem mais sofreu com essa primeira investida do mar revolto foi a princesa. Acorrentada teve que engolir e regurgitar mais água que os demais, depois de se afogar por várias vezes, sem contar os enjoos sucessivos por causa dos gangorreamentos intermitentes. Estava passando por uns maus bocados. Submersa por muitas e muitas vezes. Todos estavam.
O imediato que não deixava seu posto no convés gritava ordens de a bombordo e estibordo ao timoneiro que mais parecia um bêbado cambaleante e os marujos mais corajosos se soltaram das cordas e correram a começar os reparos das avarias. Corre daqui, corre dali, veio outra onda gigantesca que deixou o navio parecendo estar preso numa duna pendendo para bombordo e, novamente e a arrebentação, dessa vez veio a estibordo cobrindo todo o convés com tanta força que dois dos marujos foram lançados ao mar, sem chances de resgate. Cordas se arrebentaram, velas se soltaram e o navio ficou à deriva. O capitão foi avisado em seu gabinete do ocorrido, mas não se abalou com isso. Tinha a experiência necessária para saber que o velho navio negreiro aguentaria o rojão, mas não sem perder umas de suas partes. Ordenou ao imediato que colocasse todos os homens a reparar tudo mesmo durante a tempestade, pois se deixassem para fazer as manutenções depois da tempestade, talvez, não haveria nada para concertar que não fosse pedir perdão por suas almas no fundo do mar. Assim foi feito e o imediato cuspiu ordens a todo instante, enquanto os fortes ventos e ondas gigantescas danificavam mais e mais partes da embarcação.  Mas uma embarcação tão antiga, com toneladas de crustáceos enferrujados pregados por toda extensão de sua forma até o leme, não era fácil de se romper e, assim foi desafiando aquelas enormes ondas.
E o grumete? Esquecido por todos, esse se dera um pouco melhor, fora os enjoos, no local em que estava não passou por muitas provações, apenas suas cordas se soltaram e ele teve que se agarrar por debaixo nos degraus da escada por um bom tempo para não ser levado pelas águas, de tão raquítico que era.
As coisas foram se acalmando depois de hora e meia e por sorte nenhum mastro foi avariado e as velas não se rasgaram e, como as manutenções foram feiras mesmo durante a tempestade, pouco havia que se fazer a não ser recuperar algo menor e trocar algumas cordas das velas, repregar ilhós, para que seguissem viagem.
Lá embaixo no porão, ninguém veio ver como estavam os negros e muito menos a princesa à vante. Fariam isso depois no outro dia. Enquanto isso, no porão, eles continuavam doentes e sem comida. Mas agora tinha o alívio de uma chuva fraca e com a água fresca que escorria pelas frestas.
Ainda pela noite e sem conseguir pregar um olho depois do ocorrido, o grumete se dera conta que nada havia comido durante todo o dia; seu estômago estava a corroer suas costas e suas olheiras eram as de um morto-vivo. Não poderia continuar assim e quando um animalzinho está com fome, muita fome e não tem a sua progenitora para lhe acalentar e saciar sai ele mesmo na busca do que comer, saiu à caça. Um raquítico, daqueles que só se sobressaem o nariz, cotovelos e os joelhos. Precisava comer e, o mais rápido possível. Aproveitou que a maioria dos marujos dormiam e por uma fresta secreta no assoalho do convés, escorregou até o porão de mantimentos onde o Caolho e o Tartaruga haviam pegado aquele tonel de rum. Se fosse descoberto, pego, digamos assim, estaria frito e no mínimo, teria que andar na  prancha e ser espetado até cair no mar, sendo usado como uma peça de diversão para esses marujos gaiatos. Concluiu com raiva e muita fome o grumete.     
Procurou aqui e ali na escuridão do recinto, pisando em águas pelo assoalho e, como um cachorro sarnento ficou a focinhar por todos os lados até sentir o cheiro dos charques que quaravam um pouco acima de sua cabeça. Não se fez de rogado e logo tratou de puxar um com cuidado, um pedação mesmo! Arregalou os olhos. Mordeu com força. Era salgado, mas e daí? A fome não espera e não escolhe cardápios, simplesmente ela come, devora o que se tem pela frente e foi isso que o grumete fez; comeu até se empanturrar e quase vomitou e teve uma convulsão. Era falta de costume comer tanto. Ficou ali por bem mais de uma hora e guardou consigo bem mais que meio quilo para comer mais tarde, mas onde esconderia isso? ficou matutando o magricela. Ninguém a bordo dera por sua falta e com o dia já quase amanhecendo saiu pela fresta por onde tinha entrado sem ser visto, pois, no convés, todos estavam mortos, destruídos, acabados.
Caminhou devagar e desconfiado até a proa, bem lá na sua ponta, onde sabia haver um  remendo no assoalho. Uma pequena madeira em falso. Poderia colocar o charque escondido ali mesmo, era o esconderijo perfeito e, na noite do outro dia, assim que aqueles gaiatos estivessem dormindo, poderia comer o restante sossegado. Então tirou o charque por dentro de sua calça listrada e depositou no esconderijo, saindo de fininho como se nada estivesse acontecido. Era um espertinho. Caminhou de volta satisfeito.
Só tinha um problema. O seu esconderijo era perto demais do calabouço das galinhas onde aquela negra gigante estava e sem comida. O cheiro do charque começou a recender por aquele apertado calabouço e entrar pelas narinas da princesa que já estava fraca e tonta de fome. Ela começou a tentar descobrir de onde vinha aquele cheiro de comida e com as mãos algemadas tentava, sem sucesso, descolar as taboas de dentro da sua prisão; todas as tentativas foram em vão e ela de tão fraca desistiu para não gastar mais energia. Ficou ali imaginando uma cuia de farinha para comer com esse cheiro maravilhoso.
Apesar de continuar chovendo, tudo corria bem durante esse novo dia após a tempestade. A chuva era fina e os ventos brandos e o navio seguia tranquilo a pouca velocidade. Ninguém dera falta do charque até então e o grumete seguiu lavando o assoalho do convés, pensando no seu delicioso banquete da noite.
Um dia como esse não se tinha há muito tempo, comentavam os homens antes de descansarem. Comerem o que lhes cabia no estômago e beberem mais rum servido a eles como forma de agradecimento do capitão pelo serviço bem feito durante a tempestade. Logo todos adormeceram e ninguém se lembrou do moleque de novo. O que era um alívio para quem corria tantos perigos desde tão pequeno.
O grumete esperou que todos dormissem e sem deixar de tomar cuidado com a sentinela, que ficava a boreste, junto à lamparina sinaleira, foi sutilmente em direção a proa pegar e comer o que lhe pertencia agora. Aquele charque era maravilhoso. Sentia. Quando lá chegou, tirou delicadamente aquela pequena taboa solta e agarrou com unhas e dentes o charque e começou a devorá-lo vigiando por todos os lados do navio se alguém não o estava vendo. Recostou no parapeito e olhou para as nuvens sorrateiras. Deixou que os pingos d’agua caíssem pelo seu pequeno rosto. De repente, escutou um sussurro vindo por debaixo de onde estava, mas continuou ali saboreando o charque. Escutou novamente, prestou mais atenção no que ouvia e viu umas mãos saindo por entre as grades quadriculadas do calabouço como se estivessem implorando por comida. Ficou olhando para aquelas mãos de dedos longos, que insistiam em pedir-lhe algo, mas não queria dividir o pouco que tinha com ninguém, ainda mais com uma negra que lhe bota medo de tão grande. Ficou olhando de soslaio, indiferente. Entretanto, não era do seu feitio deixar passar as coisas em branco. Mesmo em tenra idade tinha uma curiosidade e, se não se desviasse do seu caminho, da sua honestidade e das suas convicções seria um grande homem. Ele não sabia disso, apenas sentia, porque ele era assim mesmo e pronto. Ajoelhou-se e começou a espiar para dentro do calabouço quando aquelas mãos que pediam sua comida desceram e foram em direção à boca da princesa num gesto desesperado de quem tem muita, mas muita fome mesmo. O menino então, viu que tinha bastante ainda daquele charque, mais de meio quilo ainda e resolveu dar a ela sua metade que guardaria para depois. Rasgou a carne e com suas pequenas mãos passou-o sem dificuldades por entre um quadriculado da grade e o ofereceu o pedaço a princesa que num ato desesperado começou a devorar aquilo como se nunca tivesse comido na vida.  O grumete, curioso, começou a observá-la e viu nela uma criatura forte, que resistiria a todas as provações que lhes impusessem, porém, com muito sofrimento e acabou por se identificar com ela. Perguntou a ela se ela tinha um nome, mas as barreiras do idioma os impediam de se comunicar. Ela sendo da Guiné falava uma espécie de dialeto de mistura mandinga e ele mal o português de Portugal. O grumete, deitado, começou a fazer um gesto repetido de bater no peito e falar seu nome: Thor, Thor...Thor, Thor Grael, esse é meu nome e, apontando para ela perguntou: seu nome, qual seu nome? E novamente repetiu: Thor...Thor Grael. A princesa, depois de alimentada conseguiu ter algum discernimento e compreendendo o que Thor queria disse: Sabaro.  Bateu nos peitos com força e repetiu várias vezes: Sabaro! Sabaro! Sabaro! Um nome de origem mandinga, que quer dizer “perseverança”. E o grumete de nome pomposo fez um sinal de silencio com o dedo à boca pedindo que ela parasse, pois, a sentinela havia olhado na sua direção deles, procurando de onde vinha aquele grito de uma rouquidão igual a uma leoa brava.
Thor, sabendo que não poderia ter com os negros, pois poderia lhes fazer favores das quais o capitão não gostaria de saber, fez um aceno de tchau para a princesa Sabaro e, mais uma vez saiu de fininho sem despertar ou chamar a atenção da sentinela e daqueles que estavam dormindo no convés.
Nasceria ali, naquele momento de troca de nomes, uma grande amizade, cheia de aventuras na busca por mais justiça, paz, saúde e prosperidade, para eles e todos que os cercarem nessa fábula.   
 
 
 
 
 Terceiro Capítulo

Ação, Foco e Resultado

            “...por pior que sua vida seja ou esteja, foi você o timoneiro do seu barco, o responsável e o condutor do seu caminho até aqui. Dessa forma, você obteve resultados e não necessariamente fracassos”.
Paulo Vieira, Master Coach & PhD

12ª Sessão

Quase que pensando igualmente à citação acima, enquanto cochilava desconfortavelmente naquele trono ladeado por dois totens carrancudos, recostado naquela lápide, como vimos no primeiro capítulo, Sálvius ainda lutava contra o cansaço que ainda o corroía por dentro como a uma fibromialgia. Abriu apenas um olho e fez uma careta mais feia que daqueles dois totens juntos. Fechou-os novamente e com certa dificuldade procurou se sentar. Inspirou o ar rarefeito profundamente até encher seus pulmões quase por completos, soltou o ar pela boca lentamente e, tranquilizou seus pensamentos e batimentos cardíacos com mais algumas inspiradas e expiradas. Pôde abrir os olhos, porque a tranquilidade que sentia lhe trouxera certa segurança e a claridade da manhã já o incomodava. Observou que onde estava era um labirinto, claro, florido e bem conservado. Os arbustos, que lembravam ciprestes eram pigmentados com milhares de pequenas flores bem cultivadas. Não era um labirinto muito grande, mas confundia e os arbustos também não eram muito altos. Borboletas, milhares delas, flutuavam endoidecidas no meio de tantas flores. Quem em sã consciência faria algo assim aqui no alto desta montanha e longe de tudo? Se questionou. Logo veio também a lembrança de alguém que o houvera puxado antes que esmorecesse e despencasse montanha abaixo. Mas quem seria? Perguntou. Um mago faria uma mágica e não um esforço sobre-humano para me puxar, sou pesado, disse, se perguntando novamente: — então, quem seria? Permanecia com essa dúvida.
Viu que tinha apenas um pequeno pedaço de pão de trigo enfiado em suas vestes e a água no cantil de couro que trazia ainda consigo, era pouca. Não se fez de rogado e comeu e bebeu só aquilo mesmo. Era melhor isso ou nada.
Resolveu levantar, tonteou um pouco se aplumou e foi em direção ao labirinto que ficava logo à frente daquele trono com aqueles dois totens. Ali ficou caminhando dando umas voltas sem saber se entraria ou não naquele irrelevante labirinto de arbustos baixos. Até que decidiu entrar. Foi seguindo por seguir as entradas que apareciam dos lados pela direita ou pela esquerda. Nesse instante, lembrou dos ensinamentos do pai, habilidoso general romano, um idoso ainda vivo, que lhe instruía de como não perder o foco para conquistar a tão sonhada meta, que no caso deles eram as sucessivas vitórias nas guerras pela garantia de manter as conquistas e forte o Império Romano. Com a devida parcimônia dos homens experientes, dizia ele: aconteça o que acontecer à sua direita ou à sua esquerda o que importa é você seguir em frente, deixe sua marca, conquistando e reconquistando os seus desejos, seja orgulhoso de si e cumpra cada ação sabendo que elas serão os degraus da escada que o levarão até onde você deseja estar. Filho, continuava seu pai em suas lembranças, o tempo é seu maior aliado, mas sem o devido planejamento e as devidas ações cumpridas, você não conquistará nada, além de uma frustração por ter que morrer com uma ideia fixa, que poderia se tornar a sua nova realidade e, isso ecoou i repetidas vezes na sua cabeça.
O general continuava a caminhar ora para a direita ora para esquerda naquele labirinto de brinquedo e, num determinado momento via-se contornando, apenas, para a direita e que, na verdade sacou que estava mesmo era confuso dos pensamentos.
Aquela mistura de perfumes daquelas diversas e minúsculas flores, aquele ar rarefeito e o sol de um brilho extremo o confundiam cada vez mais. Parecia magia, tudo ali fora plantado e projetado de tal forma que qualquer visitante se sentiria embriagado e confuso. Era de propósito, para que não alcançassem seu objetivo, ou seja, encontrar o mago da flauta mágica. 
Sálvius até tentou ir para esquerda, mas por inércia, só dobrava à direita. Que droga! Resmungava consigo e, assim sendo, nunca que conseguia sair dessa enrascada, que no início parecia uma simples brincadeira de criança. Tentou pular arbustos para outros lados, mas a confusão na sua cabeça só aumentava. Concluiu que nunca deveria subestimar as coisas pela facilidade, nas quais são apresentadas a ele, mas sim, sempre avaliar melhor o peso dos desafios que lhes são postos à prova no dia-a-dia; somente assim conseguiria ter a noção exata de como concluir algo com sucesso absoluto, seja o desafio mais fácil ou mais difícil, o resultado tem que ser aquele do qual você avaliou possível e planejou seu cumprimento para obter a vitória; uma vitória  Minha! exclamou sozinho o general, mesmo não estando muito em si.
Embriagado, tonto, perdido...seja lá como se sentia, Sálvius nunca perdeu o foco. Era um homem vitorioso em tudo, na conquista da posição para ser um general do império; e olha que não foi fácil, mesmo tendo vindo de uma família da aristocracia romana, vitorioso com a sua família, com os abastados campos de trigo que produzia, com os empregados, com os escravos e principalmente, pelo fato de sempre focar em uma única coisa e fazê-la acontecer; seja a que custo fosse. Sabia que; sendo um homem letrado e de muito conhecimento poderia fazer a diferença com relação aos demais citadinos ou agrucultores; foi o que fez, tinha muito conteúdo para isso. Também sabia que todas as etapas de uma vitória deveriam ser cumpridas com a ação necessária e isso faria com que um desejo seu fosse realizado. Por isso, ali mesmo, naquelas condições adversas à realidade e distante de tudo o que lhe trazia conforto e segurança a única coisa que ele nunca poderia perder era a sua vitória pela fé. Essa daria a ele as energias necessárias para seguir sempre em frente, sem fraquejar.
Como caminhava igual a um beberrão achou estar tropeçando em alguns ramos ao chão e se incomodou com isso. Olhou para baixo e viu um chão em terra cinza limpíssimo, quase que cimentado. Ficou sem entender porque tropeçara tantas vezes lá atrás, mas continuou cambaleante sem eira nem beira. Novamente tropeçou e quase caiu de boca ao chão, agarrou-se naqueles arbustos muito bem cortados e chegou a afundar num deles. Levantou com certa dificuldade e continuou sua trajetória sempre à direita sem chegar a lugar algum. De repente, foi laçado pelo pé direito e nesse mesmo instante puxado para trás, o que fez com que ele se esborrachasse novamente no chão de bruços e, lento, virasse no intuito de ver o que o laçara. Logo ele, um general passando por aquilo, envergonhou-se.
E foi que o mesmo se levantou com a adrenalina lá no alto e começou a procurar aquele idiota que o fizera de bobo. Novamente foi laçado, desta vez pelos dois pés e, de novo se esborrachou. Quem o laçava tinha muita experiência com chicotes, pois do mesmo jeito que laçava era por demais rápido na arte de fazer com que aquela fita em couro se desenrolasse e voltasse rapidamente para ele. O general correu de volta tentando ver quem era esse maldito, por cima dos arbustos não conseguia vê-lo; por um instante pensou se tratar de um anão, um bobo. Da quarta vez que essa brincadeira chata se repetia o general com rapidez agarrou com as duas mãos a fita em couro do chicote e com força começou a puxá-la, dizendo: Agora te peguei, seja você quem for, e ameaçou: vou esmagar sua cabeça seu maldito! Puxou com mais força ainda.
 
Qual foi a surpresa do general quando aquele imbecil o puxou com tanta força que ele saiu se arrastando como se estivesse sendo puxado por um cavalo. Isso farei também com você seu infeliz! Bradou o general. Foi puxado cada vez mais rápido e quanto mais virava se aproximava do seu inimigo, num tipo de cabo de guerra sem uma marcação para o vencedor. Apesar da alta velocidade, Sálvius continuava puxando e encurtando sua distância para com o infeliz e, quando chegou mais perto pôde ver bem claro aquela bunda magra e aquelas pernas de seriema desconjuntando-se à sua frente. Uma cena cômica diante da confusão mental do general. Estava tonto, desorientado e seguiu rastejante por várias direções até se sentir totalmente confuso e não saber mais onde se encontrava. A bunda magra parou de puxá-lo e finalmente quando Sálvius parecia conseguir se levantar foi golpeado na cabeça, próximo à nuca, e tudo escureceu numa dor infernal.
Acordou horas depois, já acomodado num monte de capim, dentro de uma caverna muito, mas muito bem iluminada, com milhares de lamparinas que pareciam não se apagar nunca, por isso, o ambiente ali era carregado de uma fumaça que deixava a sua visão turva, embaçada. Sentou rápido, e a cabeça lhe doeu tanto que de sua boca saiu um ai! Daqueles que nunca lhe saíra, nem nas piores lutas em batalha. Levantou-se ainda besta e viu à sua frente umas espécies de mesas, bem rústicas, cheias de potes em estanho e vidros diversos, dos quais ainda não conhecia. Serviam para magias, concluiu.  Eram vidros que ferviam águas, o cheiro era de um incenso de bambus e, apesar de estar dentro de uma caverna, o clima era bem fresco; uma corrente de ar vinha sabe-se lá de onde, mas vinha. Ficou caminhando por ali o general a mexer nas coisas que não o pertenciam, curioso foi ver o que havia dentro dos potes e eram ervas e outras coisas amassadas com vários tipos de pilões que o mesmo pegara em mão para conferir. Até então, ouvia-se apenas o barulho borbulhante daquelas águas ferventes nos vidros; no que isso fora interrompido por um grito de águia dentro da caverna, O general se assustou, claro, estava concentrado bisbilhotando tudo ali. Ela veio voando de um canto a outro da caverna e resvalando na cabeça do general com aquelas suas garras prontas para feri-lo.  Com seus rasantes, afastou Sálvius das mesas, até que o mesmo teve que subir num pedregulho aonde encontrou umas pedras soltas e ameaçou jogá-las na ave. Nesse instante, escutou um grito em ecos vindo de um lugar qualquer dizendo: Não a machuque! Ela vem te ajudando nesse seu caminho até aqui. A ave então se afastou e se empoleirou ao lado daquele que gritara. Pela primeira vez o general estava frente a frente com aquele que o arrastara até ali. Viu um homem muito magro, com barbas por fazer há muito tempo, um ermitão. Sua veste, uma espécie de macacão, era muito estranha, parecia ter sido costurada no próprio corpo de tão colada; provavelmente ele nunca a tirara e era feita da pele de uma espécie de felino, do qual, Sálvius desconhecia. A criatura fedia, observou. Na cabeça tinha um aramado de galhos retorcidos circulares, segurando um tucho de cabelos negros que também nunca foram cortados, estavam amontoados como um turbante e aquelas galhas o seguravam. Sua cara, negra era esquia como a de um cavalo, seus olhos, negros e manchados de branco, pareciam um mármore opaco, sem brilho algum, sobressaiam-lhes as pálpebras, seu nariz era muito abaixo do normal de um ser humano, mas tinha dois buracos e sua boca era pequena, tinha mais barba que boca, digamos assim. Veio caminhando como se flutuasse na direção do general e este por segurança pegou mais uns pedregulhos para se defender. Não precisa disso, disse o mago. Outra criatura depois daquele oráculo que encontrara em Óio. Sálvius então perguntou ao mesmo como ele sabia falar o latim, sua língua materna; ao qual, a criatura respondeu: eu sei todas as línguas quanto possíveis, não se preocupe general, enfatizou o mago.
Estupefato, mas tranquilo Sálvius controlou sua respiração, se acalmou e perguntou: por algum acaso, você é o mago da flauta? É você o criador dela? 
Sem uma resposta a criatura foi se afastando e levitando acompanhada da sua águia. Se posicionou no centro daquela grande caverna, bem no alto e, abrindo os braços gritou perguntando: O que você acha General? Responda você mesmo, Vamos? E ficou ali a    flutuar, esperando pela resposta certa, que lhe acalmaria ou se a ele enraivece, por não ser agraciado com o título que se achava merecedor, o de mago, ordenaria à águia, com seus três metros de envergadura, atacar e picar o general até a morte.

13ª Sessão

Quer ser Amigo de um mágico o chame de mágico; se observar que este usa uma cartola e uma vareta disfarçada de bengala. Quer ser amigo de um palhaço o chame de palhaço enquanto este estiver fantasiado e ele por sua vez abrirá um grande sorriso, por que assim, sempre quis ser chamado. Quer ser amigo de um advogado, então o chame de doutor, mesmo não sendo essa sua diplomação. Mas se um homem estiver usando um jaleco branco, esse pode muito bem ser um doutor e se você quer conquistar a sua simpatia e atenção para não incorrer em algum risco, o de distorcer qualquer chance de empatia num primeiro encontro, o melhor a fazer diante dessas situações acima é ser compreensivo e lograr ao outro o seu título preferido; para apaziguar as coisas e ser melhor tratado, ou o assunto ser melhor compreendido, digamos. Isso é resiliência, diante de uma das muitas situações as quais teremos que passar durante nossa vida.
Sálvius não interpretava assim isso, mas era esperto o bastante. Já avaliara muitos inimigos e seus egos superiores antes de vencê-los e, também, nas suas muitas reuniões com os senadores romanos que. Estes, o ensinaram a perspicácia de avaliar eles mesmos,  aristocráticos egoístas. Consigo então, tinha a experiencia diante daquilo que estava vendo. Uma outra criatura qualquer, na qual se deparara novamente e, ainda com suas mãos negras e dedos avantajados abertos, flutuando sem asas, como se estivesse crucificado e, perguntando aos gritos, em ecos: sou ou não sou um mago, então você veio atrás da flauta dos desejos, general? E várias gargalhadas também saíam de sua boca miúda, estridentes como os gritos da águia que batia suas asas e causava um vendaval dentro daquela caverna. O general deixou o receio e o orgulho de lado, largou o que tinha nas mãos e com coragem e em voz alta gritou também para a criatura: Sim, você é o mago, dono disso tudo aqui e eu vim sim, atrás da flauta dos desejos. O mago então perguntou porque ele acreditava que essa flauta era real e porque acreditava em magias. No que Sálvius respondeu: O oráculo, aquela criatura na cidade de Óio foi muito convincente e o meu imperador teve informações de que sua existência seria possível. O mago, então soltou outra gargalhada estridente e não se aguentou: Aquele homenzinho verde, aquele oráculo baforento? Perguntou e continuou, sempre bisbilhotando esse mago aqui, tudo, mas tudo que eu faça ele tem que dar notícias, ainda bem que perdeu um dos braços, terminou. O general ficou reticente por alguns segundos e perguntou curioso: como assim, perdeu um braço? Ele tinha os dois quando de lá saímos, concluiu. O mago então, sem dar muitas pistas apenas lhe deu um alerta: Cuidado general Sálvius, o senhor está a ser seguido, tome muito cuidado, mas muito cuidado mesmo, alertou-o novamente.
O mago se sentiu muito satisfeito com a honraria de ser chamado de mago, este desceu suavemente até o chão enquanto a ave se recolhia ao seu poleiro. Venha cá, não tenha medo, falou o mago gesticulando aquelas mãos de dragão e o general se aproximou estufando o peito, pois a ainda era um homem de coragem, apesar de tudo que havia presenciado nesta caverna dos infernos até então.  Novamente perguntou o general sobre quem o estava seguindo e o mago respondeu que tinha coisas, das quais ele não poderia tomar partido, compartilhar, mas que o general tomasse muito cuidado com aqueles que viriam em direção as suas costas daqui por diante.
Como sabe meu nome? Perguntou Sálvius, como, e como sabe que sou general e que tenho um imperador, quem lhe contou tudo isso, o oráculo enviou algum mensageiro? Continuou. Ao mago faltou chama-lo de bobo. Olhudo e com sua cara de cavalo respondeu em tom de ironia: se existe mesmo uma flauta mágica para realizar os desejos de qualquer um, por que eu não poderia saber de tudo, sobre todos nesse mundo? Também perguntou retrucando. Você não veio armado de sua espada general, por isso eu o salvei, disse continuando, geralmente, aqueles que vem aqui, veem para roubar, ou seja, me matar e levar consigo algo que acham fazer deles os homens mais ricos da África.  Esses todos já morreram! Exclamou, dando outra gargalhada. Eu fui com a sua cara, saiba disso, minha intuição não falha e a essa altura dos acontecimentos você também já não faria mais parte do mundo dos vivos, caso tenha vindo aqui para me matar também. Só temos dois probleminhas general, continuou, alguém tem que aprender a melodia mágica para tocar na flauta, essa melodia, devidamente tocada no tom e ritmo certo fará com ela  funcione. Se não tem afinidade com a música o que você irá fazer pelo seu imperador então? Quem irá passar para ele essa melodia? Perguntou e, sem terminar de falar continuou, um outro probleminha: também diz respeito a você general e somente a você, ou a qualquer um que entrar por aquela boca da caverna, atrás de salvar alguém de um perigo ou enfermidade ou outro desejo qualquer. O senhor é um homem grato general? Olhou bem fundo nos olhos de Sálvius, agarrou-o pelos ombros apertando-os e numa sacodida repetiu a pergunta: Então, general o senhor pratica a gratidão?
Nesse momento, Sálvius quase se encolerizou por conta da sacudida que levara e se afastou retrucando: Sim, A gratidão aos deuses romanos, e o que mais?
O mago apontou seu dedo indicador de dragão para a boca da caverna e disse: Então deves ir agora e de mãos vazias, porque àquele que porta a flauta o dom da gratidão é essencial, sem ele, ela também não funciona. Ser grato por tudo nesse mundo é o outro desafio, para quem quer ser o guardião da flauta. Então serei eu um mero guardião? Perguntou o general. Sim, respondeu o mago. E porque não? Redarguiu, pense no seu imperador ao qual depositou em você tanta confiança para que o salve de seus inimigos, pense em ser solidário, mesmo que seja pelo seu imperador, e continuou, ser grato e solidário trará a você general, muito mais recompensas do que você imagina. É uma troca, entende? Ser guardião não é apenas para protege-la, mas sim, para usufruir de toda a energia boa que o universo nos dá, quando somos gratos por tão benevolente missão, ou, qualquer outra coisa na qual sintamos gratidão sempre.
Agora general, disse o mago, sente-se ali, apontou para uma pedra quadrada num canto qualquer. Sálvius se sentou e o mago deu-lhe uma ordem: Agora, pratique a gratidão se queres ser esse guardião, converse consigo mesmo, treine e sinta e, quando achar que está pronto me chame. Terminou, saindo deslizando por um dos túneis, de uma dezena deles, dentro daquela caverna.
Sálvius, incrédulo, até sorriu se exclamando: Que situação ridícula! o que estou fazendo? Se perguntou incrédulo.   
 
 
 Quarto Capítulo

A gratidão
 
“Agradecer é dar; ser grato é dividir. Esse prazer que devo a você não é apenas para min. Essa alegria é a nossa. Essa felicidade é a nossa. (...) A gratidão é dom, a gratidão é partilha a gratidão é amor: é uma alegria que acompanha a ideia de sua causa, como diria Spinoza, quando essa causa é a generosidade do outro, ou sua coragem, ou seu amor. Alegria retribuída, amor retribuído. No sentido próprio ela só pode, portanto, referir-se a seres vivos. (...) Como não agradecer ao sol por existir? _ vida, às flores, aos passarinhos? Nenhuma alegria seria possível (...) sem o resto do universo (pois, sem o resto do universo eu não existiria). É nisso que toda a alegria, mesmo que puramente ou reflexiva (...) tem uma causa externa, que é o universo. Deus ou a natureza: que é tudo.
André Comte-Sponville
 
14 ª Sessão

O que se pode dividir quando não se tem nada ou pouco se tem? Aquele pão que já está na sua metade? A água que só lhe resta menos de um terço de litro? Se estiveres no deserto, o que pensarias em fazer, caso estivessem perdidos você e o seu soldado ferido que o salvou da espada maligna? Ou Seria melhor, todavia, dividir com ele, ou comer e beber o que lhe resta? Certo é que o risco é o mesmo. Se comeres e beberes tudo, pode ajudá-lo por um caminho mais longo e aumentar as suas chances de serem salvos os dois, mas não é garantido, tamanha é a distância; do contrário, se dividires com ele, talvez não tenham a devida resistência e nem sequer alcançarão a metade do caminho. Quando se trata de gratidão, não pode haver esses tipos de escolhas. Pois, com a gratidão não pode haver dúvidas quanto ao seu elemento principal: a doação. No caso acima entrega-se com o intuito de ajudar a outrem ou a si. Na gratidão, O ato é partilhar sem nada entregar, é sentimento de entrega sem objeto, é felicidade em agradecimento autêntico e único de um ser vivo, É energia universal, mesmo que não seja a gratidão recíproca; mais cedo ou mais tarde ela o será, porque a tudo que vai, volta na mesma intensidade, com o tempo e hora determinada. Por isso, ser grato é garantir que: mais cedo ou mais tarde, algo no acaso se valerá pela doação feita em agradecimento e sentimento de alegria para com a atitude do outro que lhe deu um presente ou o salvou de um infortúnio.
O grumete, ao se arriscar e dar à princesa Sabaro a metade de um charque inteiro a alimentou com a quantidade certa. Isso fez com que suas forças fossem recuperadas e, com que, também, toda aquela a sua energia de antes de ser capturada viesse aflorar pelo sangue e pela sua mente. Sentiu-se mais forte e começou a ver uma pequenina luz de esperança diante do que estava a passar desde que saíram de sua aldeia ao nordeste das terras da Guiné. Esperança num molecote magrelo e enferrujado, que falava uma língua ininteligível. Mas era uma esperança.
As sentinelas mudavam noite após noite e sempre eram aqueles que mais eram preguiçosos durante o dia. Se pouco faziam, iriam passar as noites em claro a vigiar o atlântico sem fim. Como eram preguiçosos, estavam pouco se lixando para o que acontecia no convés durante toda a noite. Interesse mesmo, era somente aquele, no qual, foram colocados sentados, sempre próximos à lamparina a boreste, se fazendo de cumpridor de ordens, ou seja, é só olhar para o mar, cochilar um pouco e pronto.  
Thor ficou realmente impressionado com aquela negra gigante e por vezes pensou nela de pé à sua frente. Começou a adorá-la em imaginações e, por um momento, se sentiu íntimo dela, como se já fossem amigos.
É assim que acontece quando de um encontro oportuno entre duas pessoas agradáveis, com boas energias, mas que não se conhecem. Mesmo que nunca tenham se esbarrado antes, a impressão que se tem é a de que ou já se viram antes ou foram muito amigos outrora. Passam assim a trocar palavras educadas e graciosas e possivelmente irão se tornar grandes amigos, de verdade.
A princesa sentira isso com relação àquele primeiro encontro com Grael e uma pura gratidão por ele ter aparecido na noite anterior, pois já se passara mais de um dia inteiro depois daquela tempestade, que a fez engolir muita água salgada. Volveu-lhe em pensamentos vários dos ensinamentos do pai, grande chefe guerreiro de sete nações. Este sempre desejou ver sua sétima cria, como uma princesa; aquela que governaria as nações dando continuidade à sétima linhagem da família a governar as vastas terras ao nordeste da Guiné. Nunca teria como esquecer a confiança depositada a ela, irmã de mais outros seis homens, fortes guerreiros, que nunca aceitaram o fato de não terem sido escolhidos para o cargo. Mas o seu pai, já com a idade avançada tinha a devida sabedoria para credenciar Sabaro, sua filha e guerreira, para conduzir os destinos das nações que conseguira unir por tantos anos. Mais e mais lembranças vieram. Uma delas, a de que teve que passar por todos os testes que um guerreiro tinha que passar e ser aprovada para assumir o cargo, Isso fizera com que ela se reconhecesse forte, como sempre era. Teve que ficar por dias sozinha, por sua conta, sobrevivendo nas florestas, caçando, comendo e bebendo o que encontrava e, por vezes, se esquivando dos animais perigosos nas savanas. Lembrou que levara consigo somente uma lança e uns poucos penduricalhos sem vestir mais que uma tanga. Passaria sete semanas fora e se voltasse, viva, ainda teria que se submeter ao crivo dos anciões.
Passou por suas sete semanas com a devida honradez e coragem. Não sabia como explicar isso, mas tinha em mente uma meta que já sentia e desejava como sendo somente sua. Vou conquistá-la! Afirmava, gritando e repetindo isso várias vezes ao dia, uma ideia, que para ela se tornaria verdade absoluta. Não adiantaria seus irmãos colocá-la em riscos de morte com emboscadas soturnas ou aqueles anciões, invejosos e egoístas, não a reconhecerem como princesa e, não soltarem a fumaça branca pelo orifício do teto da cabana deles, informando aos das sete nações, que eles já tinham uma nova governante. Não, nada disso a impediria de ser princesa e dar continuidade à linhagem e ao ótimo governo de união, que seu pai construíra até então. Isso era a sua meta e pronto! Pisava firme correndo de volta à aldeia carregando na mão direita estendida ao alto uma tocha, que poderia ser vista ao longe, indicando assim, àqueles mais descrentes, que viera mesmo para assumir a posição que seria somente dela, esse era também o desejo da maioria dos homens e mulheres dessas nações unificadas. E, assim o seria.  
Foi então que novamente nessa noite o menino veio flutuando pelo convés até a proa se dar com a negra. Chegou se arrastando, para não ser visto, e chamou por Sabaro em voz baixíssima, e a princesa apenas colocou suas mãos para fora. O que mais interessava a ela era o charque. Depois, quem sabe, trocaria alguns gestos com o magricela. Mas Thor nunca fora, nesses seus onze anos de idade, garoto de fazer as coisas por fazer; sempre tinha em mente um adianto ou uma solução para as ocorrências inesperadas do dia-a-dia. Claro que trouxe consigo mais um pedação de charque e o deu para a princesa devorá-lo com gosto.
Depois de acabada a mísera comilança, a princesa se dirigiu ao menino com um gesto, que poderia ser interpretado como gratidão, de joelhos ao assoalho do cubículo e com as mãos juntas subia e descia seu tronco e falava algo, interpretado pelo grumete, como um som suave, ininterrupto e musical, uma maravilha para os seu ouvidos. Nunca havia escutado essa melodia, pensou. Deu um sorriso e novamente volveu discreto sem chamar a atenção da sentinela. Flutuou de tão magro.
Essa campanha do menino até a proa, pelas noites, se arriscando, foi repetida por muitas vezes e vários quilos de charque foram consumidos por ele e a princesa. Os charques estão sumindo, disse um cozinheiro fedorento ao imediato. Como era o encarregado pela boia, este notou certa diferença na quantidade.  Thor sempre arranjou os charques de uma forma que não se notava que foram mexidos, porém, o experiente cozinheiro sabia no olhar o que tinha deixado como estoque após cada refeição a bordo e, notava uma diminuição diferente. O imediato não quis levar a questão ao capitão; sentia isso como uma falha sua e achou melhor ele mesmo observar quem era o larápio soturno, que o estava incomodando com esse furto indolente, já que, comida havia para todos, até o aportar. Ficou esperto.
Por duas noites navegando tranquilos os homens demoraram a dormir e isso atrapalhou um pouco os encontros noturnos do moleque com a princesa. Tanto que na noite passada ele nem levara nada para ela e, mesmo sem querer, deu um drible no imediato, que do passadiço, ficava a corujar os movimentos a bordo. 
Entretanto, na noite posterior, Grael foi ter com a escrava na proa, pois ainda tinha uns charques para dividir. O interessante é que quando nos acostumamos a uma situação qualquer, por repetição, ficamos mais leves, seguros de que tudo sempre dará certo e, certos vacilos começam a desfazer todo o foco necessário. Esse nos deixa sempre atentos, para que não incorramos em riscos nessas situações.  Do contrário, perde-se o foco total, por pura indolência do costume. Há! aqui tá tudo bem todas as noites, vou tranquilo, se assegurava Thor. Um erro, justamente numa noite na qual a coruja sorrateira estava a lhe observar. O imediato viu o grumete ir de mansinho abeirando o parapeito a bombordo como fazia sempre, se esquivando da sentinela dorminhoca. O imediato desceu a escada estibordo e, silenciosamente seguiu o menino vendo até onde iria o pirralho. Viu quando o mesmo se deitou próximo a proa junto à grade onde estava presa aquela negra gigante e, de surpresa correu até lá e o agarrou pelos fundilhos perguntando: o que você está fazendo aqui, seu pirralho, hein, o que? O sacudiu como se sacode um pequeno arbusto com as folhas secas. Perguntou brutalmente: — vamos me diga? Thor então gritou oitavando, várias vezes, que o mesmo o largasse, batendo no ar os seus braços e pernas como se estivesse aprendendo a nadar; mas sem sucesso. O imediato o levou assim mesmo para o centro no convés, próximo ao mastro principal cuspindo fogo bravejando com a sentinela que mais dormia que vigiava as coisas. Todos no convés acordaram e logo, uma ruma de tontos risonhos se reuniu junto a eles. Nesse momento o cozinheiro fedorento se aproximou e, de imediato, começou a focinhar no menino como a um perdigueiro, no intuito de sentir o cheiro de charque. Sentiu. Meteu com as mãos pela cintura do menino e puxou de lá um pequeno pedaço que estava amarrado por dentro da sua calça rota. Mostrou para o imediato, que resolveu levar a questão ao capitão.
A bordo, quando se trata de comida, todo o crime é grave. —  Pobre coitado desse miúdo, magricela e infeliz. Disse um velho marujo.
Após ser informado do ocorrido o capitão veio xingando Deus e o mundo, por terem vacilado tanto com uma coisa tão simples e, terem que incomodá-lo com isso. Chegou caminhando igual a um gorila, balançando os braços, arcado dos ombros e com as pernas em alicate, parou. Pôs as mãos na cintura roliça e, balançando a cabeça gorda cheia de pelos perguntou ao próprio grumete o que deveriam fazer dele. Repetiu sarcástico a mesma pergunta, enquanto aquele marujo com jeitão de hipopótamo, que era o número um a bordo, segurava o menino estendendo seu esqueleto a altura dos ombros. Grael nada respondeu além de ficar oitavando repetidamente um “me largue”, que fazia mais barulho que uma taquara rachada. O imediato sugeriu jogá-lo aos tubarões e os marujos gaiatos deram longas risadas, um outro, lá do fundo, gritou que queria jantar ele já algum tempo e novamente os marujos caíram em outras gargalhadas. O capitão sabia que tinha pago umas míseras moedas por ele, mas mesmo assim seria um desperdício jogá-lo ao mar; fora o fato de que esse pirralho limpava o convés melhor que aqueles seus marujos imundos e sem zelo.  Aproveitou o momento para alertar a tripulação sobre o que aconteceria com homens que furtam a bordo e ordenou àquele com jeito de hipopótamo que pendurasse o ladrãozinho pelas axilas numa espécie de forquilha que ficava a uns três metros de altura no mastro central. Ficaria ali por essa noite e o outro dia inteiro. — E sem água! Gritou o capitão. A marujada indolente se dispersou em gargalhadas, acomodando-se no convés, novamente. Assim foi feito e o grumete ficou lá dependurado sem poder se livrar e foi motivo de risos e gaiatice durante toda a noite e todo o outro dia. Sentiu sede e fome e ficou mais magro e enferrujado do que já era.
Não basta isso! Disse o capitão, apontando para a vante, aquela negra deverá receber ração racionada, com certeza comeu muito do meu charque. Concluiu fixando olhares de reprovação ao imediato. Saiu caminhando arcado dos ombros de volta ao seu gabinete.
Os negros abaixo do convés eram esquecidos mesmo, mas não poderiam ficar sem comer também, caso muitos morressem, o capitão perderia bastante dinheiro. Continuaram recebendo seus insumos racionados do mesmo jeito de quando partiram da África. Entre eles, estavam dois dos seis irmãos da princesa Sabaro. Eram homens fortes, resistentes e sabiam que sobreviveriam até chegarem... sabe-se lá onde. Ajudavam outros homens e mulheres e eram eles os encarregados pelos marujos a jogar as crianças e os recém-nascidos ao mar quando morriam por inanição. Dialogavam entre si e arquitetavam planos para tomarem a embarcação; mas esses seus planos nunca foram adiante devido à falta de acesso ao convés; aquelas duas entradas gradeadas não eram suficientes para uma escalada em massa dos negros. Teriam que ser rápidos e essa situação os impedia de sair ligeiro do calabouço em que se encontravam. Um dos irmãos de Sabaro disse ao outro que lembrara dos ensinamentos de resistência e sobrevivência que o grande chefe seu pai os ensinara; “persistência, calma e tranquilidade fazem um homem ser melhor que outros, que não sabem como conduzir uma situação adversa, por isso vivem mais”, disse, repetindo as palavras do pai. Continuou conjecturando com o irmão e pensavam que a princesa estava numa situação melhor que a deles. Isso causava neles uma inveja brutal, como se já não as tivessem tido antes. Continuaram presos no porão, mas sobreviveram por toda a viagem.
Sabaro voltou a sentir muita fome e até a delirar, achava estar ficando louca, mas nunca perdeu o bom senso. Assim como seus irmãos, sobreviveria à viagem, mas não, sem antes passar por uma centena de provações.  Thor, por incrível que pareça, também sobreviveria e, depois de ser pego por furtar a bordo ficou mais focado e cuidadoso nas suas empreitadas. Continuou furtando, de fome não morreria.

15ª Sessão

Depois de um bom tempo sentado e pensando como faria o que o mago lhe pedira, começou por querer fazer-se meditar, o que não adiantou muito, necessitava de algo mais; teria que descobrir uma maneira de encontrar, sozinho, uma forma de sentir gratidão. Não era mais ser grato aos deuses romanos, mas sim uma gratidão sua, que vem de dentro; um sentimento de gratidão único e autêntico, que o colocaria como centro do universo. Treinou várias situações que o levaram a conhecer melhor seu corpo e mente. Ficou aberto as novas experiencias e sentimentos que poderiam vir junto a essa mudança de estado espiritual. — Não é fácil ser grato.  Essa tarefa é mais difícil que lutar por meses contra os bárbaros. Concluíra, falando consigo.
O general ficou mais de um dia ali tentando usar seus sentimentos para com a gratidão, tinha que aprender isso, mas como deveria saber se estava no caminho certo, como saber se estava sendo realmente grato ou não? Então, cansado de pensar em dezenas de estratégias, relembrou das muitas palavras dos filósofos gregos e romanos que estudara, dos elementos essenciais que compõem o cosmos, terra, água e fogo e, algo sobre átomos e sobre as energias que regem o universo e seus seres vivos. Com esse passo adiante, entendeu que deveria estar aberto à novas experiencias e teria que aceitar o fato da existência de algo maior do que o mundo que conhecia. Chegou, pela primeira vez a uma nova conclusão, nobre e evoluída; pela primeira vez se sentia preocupado consigo, por uma mudança que viesse de dentro para fora de si e, isso trouxe a ele uma tranquilidade que há tempos não sentia. que poderia fazer coisas inimagináveis acontecerem se soubesse usar seus pensamentos, suas palavras e a energia do seu corpo em nome de uma gratidão eterna.
 Quando se propôs a fazer o que lhe pedira o mágico, ficou aberto a uma nova possibilidade; se conhecer melhor. Nesse mundo já conhecia de tudo, mas agora era diferente. Teve que pensar em mudar de uma maneira que descobrisse o segredo de novas energias; e era o que estava fazendo, entretanto, quando falou em energia, lembrou que nada comera depois daqueles pedaços de pão e daquela pouca água há um dia atrás. Sentiu fome e sede. Tudo estava indo bem com seus pensamentos até que aquela fome miserável que o enfraquecia roncou forte na sua barriga. Gritou por comida e água, continuou gritando e gritando, até que um anão veio lento, quase se rastejando, como um bicho preguiça, trazia uma cuia com água e num recipiente um amassado em papas que mais parecia um mingau grosso de trigo, mas não era. O general recebeu aquilo e com um gesto agradeceu ao anão, estranhou ver outro esquisito na caverna e esse foi saindo lentamente, desaparecendo do nada; como havia aparecido. Sálvius devorou a papa e bebeu a água, revigorou suas forças por uns instantes e, em seguida caiu num sono profundo em descanso, mas sem antes imaginar que teria sido envenenado. Desconfianças de um general.   
Despertou horas e horas depois bem mais descansado e revigorado. Efeito daquilo que comera, mas disso não se deu conta; estava mesmo era preocupado em cumprir o que o mago lhe pedira. Com a mente mais desocupada e sem a ansiedade habitual e com  sua energia recomposta, levantou do chão de terra batida onde dormira e,  sentou naquela pedra das suas meditações, com a coluna ereta, relaxou os ombros, que já não estavam tão tensos, pôs as duas mãos sobre as suas coxas na altura do joelho, fechou os olhos, olhando para dentro de si e, lentamente começou a inspirar aquele ar da caverna com cheiro e gosto de filtro de barro. Era bom, era reconfortante! Exclamou silencioso. Encheu seus pulmões e expirou o ar lentamente, como se assobiasse baixinho; repetiu isso por sete vezes, pois era o que lhe cabia no momento. Em seguida, voltou-se para os seus sentimentos, para o seu coração propriamente dito e sentiu sua energia que pulsava, seu sangue que jorrava em suas veias. Logo após, tratou de aliviar seus pensamentos de todas as preocupações, limpou seu cérebro de toda a carga negativa de uma vida inteira. Enquanto isso, continuava com a respiração tranquila. Deliberadamente vacilou um pouco de como deveria começar a agradecer; suas referências de religiosidade eram os deuses romanos e o cosmos era para os profetas, pensou. Mas então veio-lhe quase por instinto a grande ideia de usar esses três elementos: Pensamento, palavra e a energia do cosmos juntos. Não foi um golpe de sorte ter encontrado assim um caminho para aprender a agradecer, mas como se mantinha conectado energicamente, através da respiração, com o coração e mente limpos, tudo que o cercava tinha energia e conspirou ao seu favor, para que o seu desejo de aprender a agradecer fosse realizado.  Ter essa ideia genial, nada mais é, do que adquirir mais conhecimento sobre si e sobre tudo aquilo que nos cerca, sobre o mundo e o universo em que vivemos, no nosso caso, sobre Deus.
O general uniu seus pensamentos e as palavras que saiam de sua boca em uma única coisa e começou a agradecer por estar vivo, pela posição de general do exército romano, pela riqueza e saúde de sua esposa e seus dois filhos homens, pela comida que recebera há pouco, por ter encontrado o mago, pelas informações colhidas em Óio, pelo ar que respirava, pela proteção divina, seja lá qual fosse ela, pela lealdade de seus lanceiros, por terem sido poupados naquela floresta dos gorilas albinos e pelos fato daqueles leões nas savanas não os terem devorado. Agradeceu ter a confiança de seu imperador, agradeceu pela missão e até pelas vestimentas imundas que trajava, ou seja, agradeceu por tudo o que lembrou ser possível, até pela boa safra de trigo que iria colher quando voltasse para casa.
Ai sim, poderíamos dizer que Sálvius realmente estava sentindo a gratidão. Estava se doando. Nele, ela foi autêntica e verdadeira; ele se doou sem nada entregar, apenas, agradeceu e isso para o universo é muito importante.
 
16ª Sessão

Sabaro sentia gratidão por todas aquelas vezes que o grumete se arriscara levando para ela algo para comer. Tinha aprendido com seu pai e seus antepassados como agradecer por tudo que a cercava; para ela era mais fácil, porque já estava inserido na sua cultura selvagem; fazia parte, aprendeu isso para que tivessem sempre como se alimentar e vestir e para outras necessidades a mais ligadas à natureza de tudo. Pensou em retribuir de qualquer forma por aqueles favores e começou a imaginar de como faria isso, caso sobrevivesse.
Quando dois eventos acontecem pela mesma causa, mesmo que em tempos e épocas diferentes têm a grande chance de terem uma ligação pelo seu propósito maior e, nesse caso, com relação ao que nos foi apresentado até agora, duas foram as ocorrências coincidentes e a gratidão de um e de outro foi o que fez com que esse propósito fosse repetido por mais de uma vez. Então, teremos as gratidões do general como o princípio de tudo e a gratidão da princesa Sabaro, do mesmo modo que a primeira, continuando um ciclo de propagação de boas energias e conexões que não parariam mais. Tudo que vai volta e o universo é sábio o bastante para manter tudo nessa ordem, por isso o ciclo. Por mais que existam outras formas de coisas com outras ordens com ciclos diversos e infinitos a gravidade faz com que tudo isso funcione direitinho. Uma criação espetacular! Mas disso o general e a princesa não sabiam e tão pouco importava para o universo se eles tinham conhecimento disso; o que importa mesmo é a energia que uma gratidão produz, o que ela representa no sistema gravitacional, que faz com que, quando uma energia é emanada, de tempo em tempo ela retorna como outro evento, do qual, se agradecido por um ser faz com que aconteça algo extraordinário novamente. Daí se forma um ciclo infinito de bons eventos que podem acontecer com todos os seres vivos que aprenderam a agradecer por tudo aquilo, no qual fazemos parte, como matéria e energia.
Na caverna o general continuava o seu treinamento para com a gratidão sem saber que já o havia encontrado, quando de repente, aquela águia gritou e voando em rasantes, saiu da caverna por aquela única saída. O mago reapareceu vindo por outro buraco de um outro lado da caverna, mas veio andando, igual a um ser normal. O general então interrompeu seu treinamento pessoal e olhou para o mago tenazmente; na tranquilidade que se encontrava fugiu-lhe todo e qualquer esbouço de reação. Ficou sentado como estava. O mago passou bem perto dele, mas não disse uma palavra. Se dirigiu àquelas mesas cheias de instrumentos desconhecidos para o general e, pegou um gancho de ferro maior que ele mesmo. Levantou com as duas mãos o gancho e desfez um nó em uma corda que estava presa a uma estalagmite bem alta. De repente veio caindo uma gigantesca máquina em ferros e madeiras do alto da caverna. Caiu tão rápido que Sálvius esperou pelo baque dela destruindo todo o estranho mobiliário do mágico, entretanto. para sua surpresa, o equipamento parou num supetão pouco antes de se esborrachar ao chão, estremecendo tudo ao redor, e levantando muita poeira no interior da caverna.  Foi quando desceu suave, sendo auxiliado pelo mago e se encaixou numa base feita sob medida para ela.
— Aproxime-se general. Chamou-o o mago. Venha ver uma coisa, disse abrindo os braços para o alto, este é o meu maior feito e, não sei como, somente eu posso fazer com que funcione, tem que ter a essência das coisas e muita sabedoria para operá-la. O general, enquanto escutava, rodeava aquela engenhoca observando e tentando entender como que tanta engrenagem poderia funcionar; nem nas grandes batalhas que vencera nunca havia visto um equipamento tão complexo. Uma engenhoca mesmo, concluiu. Imaginou que aquilo pudesse voar. Já vira tanta coisa estranha nessa viagem, que uma a mais ou a menos não faria diferença. Era complicada a engenhoca, parecia uma mistura de engrenagem de um grande relógio com centenas de cordas emaranhadas, numa confusão igual aos postes de uma favela dos nossos tempos. Tinha vários recipientes em vidros, centenas deles, em vários formatos que Sálvius nem conhecia. Não eram do seu tempo, observou. Sete alavancas a circundavam por dois dos lados e serviam sabe-se lá para o quê. Enquanto isso os olhos negros do mago brilhavam em contemplação; via-se no semblante dele uma satisfação enorme e sua boca miúda sorria em dentes finíssimos.
— Você está recomposto general? Perguntou o mago. O general balançou a cabeça respondendo que sim e o mago continuou dizendo que era a hora de saber se realmente o general conseguiu ser grato em toda a sua totalidade ou não. — Esta máquina general. Falou a criatura abrindo os seus longos braços. É o que você pensou mesmo, uma engenhoca, nem os mais renomados e conhecidos matemáticos do Oriente Médio não conseguiriam explica-la. Eu também não sei como! Gritou, dando aquela estridente gargalhada corriqueira. Nunca, mais nunca que ele revelaria os segredos dela; levaria consigo para o túmulo esse segredo e ninguém nunca saberia se ele sabia realmente ou não como ela foi criada ou concebida. — Mas de uma coisa tenha certeza, alertou ao general, caso o senhor não tenha conseguido ser tão grato quanto o cosmos é exigente, nunca, mas nunca terás acesso à flauta dos desejos. Sua condição maior, continuou olhando fixo, mirando os olhos do general, é o tanto de energia cósmica que conseguistes compartilhar, sua autenticidade e sua honestidade, atreladas à verdade absoluta consigo mesmo, concentração e sentimento verdadeiro serão a essência para ativá-la. E então general Sálvius? continuou perguntando, pronto para fazer esse teste, que fará com que tenha realmente sucesso nessa sua empreitada, para realmente alcançar o que deseja, atingir sua meta e salvar seu imperador?
Depois de todo esse discurso, no qual, ouviu calado e achando estar louco, Sálvius perguntou como seria e como teria de provar isso. Então, o mago puxou e levantou aquelas sete alavancas numa sequência ininteligível, isso fez com que a engenhoca se movimentasse fazendo barulhos confusos; numa mistura de choque de bambus com tilintares de vidros e rangidos de metais, que fizeram com que uma portinhola se abrisse em um de seus lados. No centro, enquanto ainda aquilo tudo se movimentava, uma espécie de trono ia sendo montado com encaixes perfeitos de tudo aquilo que a constituía. Um trono de metais, madeiras e vidros.
O general se afastou dando uns três passos atrás. Como saberia se isso tudo era verdade e não charlatanismo? Até então, nada disso fazia sentido algum, duvidou.  
O mago sentindo que o general duvidava de toda a verdade que lhe falara e que nada disso fazia sentido algum para um homem de razões como ele o sentenciou: — Agora general, entre e se sente naquele trono, nele você saberá se estou a dizer a verdade ou se sou um mero charlatão como estás a pensar. Não se aflija homem de coragem, falou num certo sarcasmo. Venha entre! Sinta-se à vontade e desfrute da ótima sensação de ter seu desejo realizado ou...não! Caiu em gaitadas novamente. Enquanto dançava rodopiando igual a um peão.
E agora, o que faço? Se questionou Sálvius. Não estou nem sendo forçado a entrar nessa engenhoca e sentar naquele trono, deu com os ombros. No seu interior, estava mesmo era imaginando de como chegou até aqui para passar por uma situação que não exigia de uma estratégia, pela simples falta de razão em tudo que vira até agora. Era hora de decidir. Mesmo incrédulo, algo na sua essência dizia a ele que valia a pena tentar; era o seu desafio maior, apesar de não estar em uma batalha entre a vida e a morte algo, nesse instante, já estaria conspirando a favor e, ele sentia isso, capitava algo invisível, que dizia a ele que isso talvez valeria a pena, bastava que acreditasse.
Enquanto isso a cada rodopiada do mago, esse se fazia de cicerone e mostrava com as duas mãos espalmadas para cima a entrada da máquina, num cômico convite para confundir e desacreditar mais o general. Sálvius, começou juntar confiança em si mesmo e a sentir todo o ambiente que o cercava, relembrou tudo o que passara para chegar até ali e, com isso, a certeza de que deveria entrar e sentar naquele trono se tornou uma verdade para ele. O mago continuava a rodopiar. Decidido, o general se dirigiu até àquela engenhoca e entrou pela portinhola se abaixando. Lá dentro sentou no trono e olhou ao seu redor percebendo que a estrutura por dentro formava uma espécie de cela; ficou apreensivo, mas se manteve firme e esperou pelos eventos futuros. Daí o mago parou de rodopiar como um peão e novamente engrenou aquelas alavancas numa sequência musical. Enquanto dava mais de suas risadas sem parar. A porta se fechou. Algemas de ferro surgiram dos braços do trono e prenderam os pulsos do general, este tentou se soltar, chutar as engrenagens, mas não as alcançava, tudo em vão. A engenhoca subiu uns metros acima. Sálvius suava, seus batimentos cardíacos aumentavam e sua adrenalina estava no ápice. Nesse instante, aquela águia entra voando pela caverna com um pedaço de osso do fêmur de um elefante, não qualquer elefante, na verdade quase um mamute, uma rara espécie de batráquio que ainda vivia na África por estes tempos. Veio voando e depositou o fêmur numa espécie de baú de ferro que ficava em cima da máquina e o fechou com seu bico; saiu voando e se empoleirou no lugar de sempre. Nesse instante, o general, apavorado, olhava para todos os lados, viu a engenhoca soltar uma espécie de gás por vários orifícios no encosto do trono. O general inspirou aquilo, não tinha como se esquivar, e ficou com todo o seu corpo dormente, inerte. No entanto se sentia muito tranquilo e, numa paz que nunca sentira e toda a sua vida, estava embriagado de felicidade e viu em câmara lenta quando aquele fêmur saiu pelos fundos daquele baú e começou a ser passado de ferramentas em ferramentas por toda a extensão da engenhoca. Um mecanismo incrível. Era como se flutuasse também.  Como cada ferramenta tinha uma função o fêmur de mamute começou a se transformar numa flauta em osso, com sete furos. Era um presente, poder observar aquele pedaço de osso, aos poucos, ser transformado numa flauta. Tudo ali era novidade, uma atrás da outra; até aquela fumaça azul brilhante que se misturava ao gás inebriante deixava no ar do ambiente um confortante cheiro de alfazema. Inebriado por aquilo tudo Sálvius não conseguia mais ver a caverna, o mago e sua águia. Sentia-se flutuar, aliás, tudo ali flutuava, num estado de sublimação que o general nunca mais iria querer sair dele, assim se sentiu. Foi uma sequência de eventos esquisitos e desconhecidos, por que, Sálvius não se importava mais. Acreditava que tinha encontrado uma forma de salvar seu imperador e até ele próprio e, enquanto isso lhe passava pela cabeça um forte lampejo veio a lhe cegar os olhos. Fechou-os por alguns segundos e sentiu algo ser colocado pela máquina em seu colo. Quando abriu novamente os olhos, viu surpreso que era a flauta que ali pousara, mas como? Se perguntou. Nesse momento as algemas que prendiam-no pelos punhos se abriram e ele imediatamente pegou a flauta com suas duas mãos a examiná-la. Tinha uns trinta centímetros, procurou pelo local de embocadura e, quando achou, observou que a mesma se tocava na transversal.
Foi quando o trono e aquela estrutura toda começaram a rodar em direções opostas e, tão rápido, que o general teve que se segurar com todas as suas forças possíveis para não voar e se espatifar, perdendo a flauta, dentro daquela engenhoca. Um outro clarão veio novamente a lhe cegar. Nesse instante, uma melodia se repetia incessante dentro da sua cabeça, tão alto e repetitiva era ela, que o general gritou, parou de respirar e teve uma síncope, tudo a sua volta escureceu e ele nada mais sentiu. Era assim que aprendia a melodia; ela vinha na forma de energia e se instalava no cérebro daquele que tivesse um grande propósito de vida. Sálvius tinha conseguido ser grato em toda a sua plenitude e o cosmos, se utilizando de seus mecanismos, inseriu essa melodia mágica na sua cabeça, para que, além de tocá-la, ele nunca mais a esquece.
Passados todos esses eventos do parágrafo anterior, o general despertou de súbito, abriu os olhos assustado, voltou a respirar, estava deitado de bruços sobre as pedras daquele riacho onde deixara seus lanceiros esperando. Um filete de água do riacho corria-lhe pela boca entreaberta e ele demorou para entender onde estava. Demorou se levantar e, quando fez isso, mesmo tonto e incrédulo, percebeu agarrar algo em uma de suas mãos; era a flauta que salvaria seu imperador. Nunca fora músico, tão pouco se interessava em tocar algum instrumento musical, entretanto, como num passe de mágica levou a flauta instintivamente à boca e tocou a melodia* que estava agora inserida no seu ser, nos seus pensamentos; era a pura magia que realizava os desejos, isso ele sentiu, mas nada desejou, apenas, se contentou em possuí-la.
 
Voltando aquele navio negreiro dos infortúnios onde Grael se sentia aliviado porque nada de pior ter acontecido a ele nesses dias todos passados; de quando lhe surpreenderam furtando, continuava com seus afazeres rotineiros e se esquivando das pequenas ameaças cotidianas, que já eram normais para ele. Mas uma coisa o incomodava, aquela sensação de que deveria ter feito algo a mais por aquela escrava na proa, da qual, sentia poder ajudá-lo em tempos futuros. Ajudar com o que não sabia; como seria, também não, mas sentia isso e era o suficiente e ponto final. Pensou e pensou de como poderia entrar naquele calabouço e conversar melhor com ela. Teve a brilhante e perigosa ideia de tentar pegar as chaves do número um, aquele com a cara peluda e jeitão de hipopótamo. Era muito arriscado. Concluiu, — que nada! Exclamou para si, confiante. Já tinha muita experiência em furtos a bordo e um a mais um a menos não faria diferença para ele. Ficou observando por duas noites de como se comportava o número um nos seus raros momentos de descanso. Por ser muito solicitado a bordo descansava somente à noite. Dormia igual a um peixe boi, jogado em qualquer lugar no convés; morto literalmente. Roncava horrores e sua argola com as chaves ficava dependurada por um dos lados da cintura roliça, presa numa corda velha que lhe servia de sinto. Como iria sacar daquela argola de chaves sem fazer barulho algum era o que mais preocupava Thor, entretanto sua astúcia e sua audácia faziam com que, desde menino, tivesse grandes ideias e isso dava uma vontade terrível de colocar todos os seus planos em prática. Era o mesmo que uma comichão, uma gastura que o incomodava e, enquanto não colocasse esses planos em prática essa gastura não passava. Já imaginava ele próprio ali dentro do calabouço das galinhas trocando unas ideias com a escrava. Como era mesmo o nome dela? Se perguntou até lembrar: Sabaro, isso mesmo Sabaro, lembrou-se. Continuou nos seus afazeres sem levantar suspeitas desse seu plano genial.
Para ter certeza de que poderia seguir com esse plano sem correr riscos esperou por mais uma noite a conferir se o número um com a cara peluda iria mesmo se deitar pelo convés e dormir igual a um leão marinho. A paciência que esse grumete dispunha sobre os atos futuros, principalmente quando tem que tomar decisões, que lhe colocariam em risco, era o seu maior triunfo diante de qualquer empreitada na qual se metia a fazer. Por isso, sabia que se aguardasse por mais uma noite, avaliaria melhor o risco e tinha grandes chances de ter sucesso.
Na quinta noite que pousara estrelada, linda, uma via láctea incrível, se derramava como leite mesmo; claríssima, em um semicírculo. Brilhava interminável da popa à proa.
Já era tarde e como Grael também ficava pelas noites jogado ao relento no convés sentou num lugar de onde poderia ver aonde descansaria aquele hipopótamo. O mesmo, depois de cambalear para lá e para cá, no balanço do navio, estendeu uma colcha de palhas próximo à rosquilha, aquela onde se enrola a âncora. Agachou e desabou no assoalho demonstrando muito cansaço. Iria adormecer logo, observou Thor. Porém, isso não aconteceu...o miserável demorou a pegar no sono profundo e Thor teve que esperar bem mais de uma hora, de sua paciência de menino, para começar a agir.
Continua...
 
 
 
Franklin Rodriguez
Enviado por Franklin Rodriguez em 15/12/2016
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T5854514
Classificação de conteúdo: seguro
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