Sonho Guerreiro
O Sol brilhava tal uma manopla de fogo, a cigarra cantando sinalizava que não choveria, e o vento sussurrava entre as folhas secas margeando a estrada. José Linhares caminhava com a alma embrulhada em sofrimento, mas na memória concebia um sonho. Os meninos, José e Gerardo com semblantes de criança traziam uma impressão indizível de felicidade e alegria. A brisa morna da tarde mimava seus corpos macérrimos. Linhares tinha o semblante fechado, o corpo magro inclinado para a frente, suas alpercatas de rabicho ao tocar o chão causavam um som característico. À margem da estrada viam-se pequenos calangos bulindo nos gravetos ressequidos, papagaios e andorinhas tingiam de verde o céu anil, borboletas brancas e azuis se mostravam sinalizando a vida e distante ouviam-se o trilar da Acauã, formando assim, belíssima tela da Natureza alentando a vida naquele rincão do sertão ressequido pelo inexorável tempo. Com aquela postura Linhares revelava aos filhos que ainda havia possibilidade de vencer desafios, brocando um roçado e plantando a semente naquela terra abençoada.
Era 1940, as promessas vazias dos políticos se repetiam afirmando: Se a chuva não chegar o Governo mandará dinheiro para a prefeitura e executaremos obras onde todos se ocuparão e nada faltará aos trabalhadores do campo. Assim afirmava quem no campo retinha os trabalhadores, escravizando-os com uma mão de obra desumana. Os trabalhadores do campo eram doutrinados para se manterem no sertão apesar de oprimidos e analfabetos, com uma vida extremamente pobre. Embora a Princesa Izabel houvesse libertado os escravos em 1888, em 1941 o homem ainda vivia em um regime de servidão, e suportando hipocrisia por parte dos dirigentes da República e dos senhores da terra, isto é, os latifundiários. Provavelmente o dinheiro destinado às obras durante a seca fosse desviado para o bolso dos corruptos antes mesmo de chegar aos trabalhadores. Essa triste história se repetia desde a época do império, na luta entre dominadores e dominados. Dominar homens e mulheres analfabetos tornava-se mais fácil, assim pensavam e agiam os senhores de engenho e, hoje, latifundiários avaros de escrúpulos.
Não interessava aos latifundiários que o trabalhador deixasse o sertão, assim eles continuariam tendo uma mão-de-obra escrava, podendo manter um alto padrão de vida, colocando os filhos para estudar em bons colégios na capital, no sul do país ou até no estrangeiro. Para os senhores do campo, ávidos de lucro fácil, não interessava que os filhos dos trabalhadores aprendessem a ler, poderia despertar neles algum sentimento de liberdade. Ignorantes, eles seriam mais úteis e tocando a vida, esperavam que a chuva os libertasse da indigência. Entretanto, ao chegar a chuva, não tinham dinheiro para comprar nem as sementes para o plantio e recorriam ao patrão, que cobrava um preço exorbitante. A terra onde Linhares trabalhava pertencia ao coronel Bento, homem durão que não dispensava 50% do pouco que seus trabalhadores produziam, e assim, a cada ano o episódio se repetia. O que José Linhares ganhava não dava para o sustento da família, sempre que lhe cabia um bezerro ou ovelha, fruto da participação na criação dos animais, forçosamente entregava para o próprio patrão em troca de alimento.
Analfabeto, o trabalhador do campo desconhecia as leis trabalhistas e esse fato animava alguns patrões desonestos, embora também existissem patrões sérios. D. Maria Augusta, companheira de Linhares tinha sérios problemas no coração e necessitava de cuidados especiais do marido que zelava para que não lhe faltassem os remédios receitados pelo dr. Bezerra, médico e veterinário que durante a semana cuidava de pessoas e nos feriados e dia santo, nas fazendas também cuidava dos animais ensinando os criadores a vacinar os rebanhos. Bezerra era um profissional virtuoso, embora para alguns fazendeiros não servisse, sendo taxado de perverso inimigo, embora ele apenas exercesse sua profissão com dignidade defendendo o direito dos menos afortunados. Padre Paulino não pensava igual aos fazendeiros, mantendo com o médico bom relacionamento, promovendo a caridade, prática que muito faltava entre alguns homens da região.
A festa de São Francisco, padroeiro da cidade acontecia de 24 de setembro a 4 de outubro, efetivando assim, a socialização entre os moradores de diversas localidades. Linhares e a família se faziam presentes nos festejos da cidade, e ali se encontravam com velhos conhecidos, romeiros vindos de lugares distantes, até da Amazônia. Entre tantos presentes aos festejos, estava José Fabiano, homem conversador, fanfarrão e galhofeiro, contava que o Amazonas era um Eldorado, todos que chegavam aos seringais se tornavam homens ricos, donos de armazéns de aviamento, fazendas de gado e até tinham dinheiro no banco, moravam em mansões e frequentavam luxuosos cabarés e cassinos, coisas naturais da época rica da borracha, ele mesmo gabava-se de ser um homem rico contando vantagens convidando os conterrâneos para trabalhar nos seringais do Amazonas afirmando que pagaria todas as despesas, as quais lhe seriam ressarcidas com o lucro fácil que os seringueiros obteriam ao chegar aos seringais. Afirmava que fazia isso só para ajudar os conterrâneos. Alguns homens que acompanharam Fabiano tornaram-se escravos de maus seringalistas que nos seringais faziam suas próprias leis. Esses seringalistas, outrora pobres seringueiros, pela vaidade e ganância tornaram-se tiranos dos seus conterrâneos.
Fabiano era agenciador de mão-de-obra escrava e cruel pistoleiro a serviço de coronéis de barranco, alguns eram sanguinários e cruéis, nunca um seringueiro saiu vivo de suas terras, pois eram homens escravos e prisioneiros até a morte. As coisas básicas para a sobrevivência do seringueiro na floresta; o feijão, farinha, conserva, sal, querosene poronga, molambos para vestir, quinino e outros, eram cobrados muito além do valor real. Descobrindo a realidade o seringueiro sentia-se enganado e comprometido com uma dívida que jamais resgataria. Alguns tentavam fugir, mas eram cassados, presos, açoitados, e as vezes até iam a óbito. Com a morte do seringueiro a dívida não cessava e a família ficava no dever de sanar a suposta obrigação cuja primeira parcela do pagamento se dava com a entrega da viúva ou filhas a outro homem. Essa era uma das malditas Leis do seringal que muitos desconheciam antes de chegar às colocações nos confins do Amazonas.
Como acontecia antes, também naquele momento a corrupção dominava grande parte das autoridades da velha república, corroída pelos maus costumes oriundos da má formação social do país. Em Manaus, capital da borracha como era conhecida na época, os ricos desfrutavam um padrão de vida europeu, embora a maioria da população vivesse em completa miséria, sem assistência social nenhuma, esquecidos quais animais no meio do continente verde. lugar onde o homem aprendeu a viver, entre lagos, rios, florestas e animais ferozes, convivendo com nações indígenas, algumas que não haviam tido contato com o homem, dito civilizado, travando com eles sangrentas batalhas. Assim, o seringueiro marcava o território do Amazonas fronteiriço com dez países. Dessa forma o seringueiro era também um guardião do território brasileiro. Os migrantes que por Manaus passavam com destino aos seringais, não eram tratados com o devido reconhecimento, viajavam para o interior em porões de barcos, juntos a porcos, galinhas e outros animais num ambiente infecto.
Dia de festejo era também o momento de ir ao médico, o dr. Bezerra atendia a todos, tanto fazia ter ou não dinheiro. Alguns sertanejos o presenteavam com o que dispunham: cabra, bode, galinha e outros bichos. Bezerra, como gostava de ser chamado, distribuía as doações entre as pessoas carentes e nunca se esquecia de mandar alguma prenda para o leilão da paróquia do padre Paulino, que amava verdadeiramente os pobres. Com a renda obtida no leilão padre Paulino auxiliava as pessoas necessitadas seguindo o exemplo de São Francisco de Assis, assim era amigo de todos, fossem eles católicos, evangélicos, espíritas ou ateus, para ele todos eram irmãos e filhos de um só Deus.
Sempre que atendia Augusta, Bezerra dizia que receberia o dinheiro da consulta no próximo ano, era apenas uma maneira de não cobrar. Sensível às dificuldades da família de Linhares, sempre indagava se os meninos estavam frequentando a escola e aconselhava: — Aprender a ler e a escrever é como se livrar da senzala, libertar-se de uma masmorra, duma caverna, dos grilhões da ignorância, é sentir a luz clareando a mente, é caminhar para o conhecimento, para a libertação, e a liberdade era o que mais Augusta desejava para os filhos. Ao trabalhar como empregada doméstica na casa paroquial, Augusta aprendeu a ler e a escrever, esse pequeno aprendizado lhe foi muito útil, pois quando os meninos não iam à escola por estarem trabalhando no campo, ela os ensinava o pouco que sabia antes de colocá-los para dormir. D. Augusta tinha uma boa visão de futuro, sabendo que a maneira mais fácil de se libertar é pelo conhecimento. Linhares tinha um projeto que guardava em sigilo e falava de um irmão que morava em Marajó criando Búfalos. Ele comentava que o irmão havia se dado bem, residia numa terra cedida pelo Governo e possuía muitas búfalas leiteiras. O sucesso do irmão o fazia pensar na possibilidade de seguir seus passos, mas temia viajar com a família para um lugar desconhecido.
Depois, não queria ir por conta do Governo, como soldado da borracha ou de algum patrão, o plano era levar algum dinheiro mesmo que fosse um tiquinho, o suficiente para começar sem dever, o que não seria fácil visto que todo ano ficava devendo ao patrão, sem condições de economizar. Esse projeto estava em gestação somente em sua mente, não poderia nutrir falsa esperança na família, mas pensava, sendo essa a única liberdade que possuía, ninguém poderia mandar em seu pensamento, sua grande riqueza que o conduzia às grandes vitórias. — O dr. Bezerra é meu bom conselheiro, um dia desses falarei com ele pedindo orientação —Falava para si.
Padre Paulino advertiu a Linhares dizendo: ‘’Poucos retirantes que foram para o Amazonas enriqueceram, muitos morreram vitimados por doenças tropicais; malária, febre amarela, mordidas de répteis, e até de tocaia por parte de alguns seringalistas’’. Os migrantes ou brabos como assim foram nomeados, enfrentaram um ambiente hostil, diferente daquele por eles conhecido, inclusive, problemas socioculturais resultantes de um modo de vida diferente, próprio da região. O migrante quando chegava ao seringal era chamado de brabo porque desconhecia os segredos da floresta, uma nova realidade lhe era imposta em tudo por tudo. A densa floresta, muitos rios, muita água, o uso da canoa, os animais ferozes e as doenças tropicais, eram esses os grandes desafios para o seringueiro, mas o maior deles eram os próprios seringalistas. Entretanto vale ressaltar a existência de seringalistas honrados, justos e junto a esses, alguns que se tornaram homens poderosos construindo verdadeiros impérios econômicos no Amazonas.
Para tornar-se manso, conhecedor da floresta o seringueiro precisava aprender a usar a canoa, pescar, navegar, caçar, conhecer frutos na floresta e saber qual deles poderia usar como alimento, conhecer os animais e seus hábitos, e como poderiam ser dominados. Conhecer a serventia das plantas medicinais, pois os remédios tradicionais não estavam ao seu alcance. Linhares sabia que a conotação de manso, não significava somente ter o conhecimento e a adaptação à floresta, mas também de sujeição, absoluta. Quando por falta de recursos o migrante não voltava para sua terra natal, tornava-se submisso ao patrão. Devendo, era escravizado pelo resto da vida que não era longa em decorrência de sua miserável condição de completo abandono. As autoridades do Governo viviam nababescamente no Rio de Janeiro, capital da República ou em Manaus, onde moravam em bangalôs luxuosos frequentando cabarés, óperas e teatros. Alguns mandavam lavar as próprias roupas em Paris e só consumiam produtos importados da Europa.
A reflexão sobre essas mazelas deixava Linhares temeroso, sem poder expor seu sonho a família, ele pensava em ir para o Amazonas, não para ser escravo, como já o era pelo mandonismo do patrão, coronel Bento. Mesmo que não ficasse rico, desejava ter melhor qualidade de vida, saindo da pobreza sem as amarras de patrão nenhum. Queria plantar sua lavoura numa terra que fosse sua e que, ao morrer, pudesse deixar para a família. Temeroso de tornar o sonho irrealizável, pacientemente esperava o momento certo para comunicar à família o plano de emancipação, um grito de liberdade, um sonho guerreiro.
Dia de festa do padroeiro da cidade, Linhares estava presente. Nesse dia se confessou e comungou pelas mãos do padre Paulino. Depois da missa bebeu uns tragos de cachaça e corajosamente consultou o dr. Bezerra. Não poderia existir dia melhor para expor o sonho ao amigo e confidente. Bezerra pacientemente ouviu o amigo expor seu projeto — É arriscado, mas o que fazer! Se você ficar aqui, vai terminar a vida como tantos outros, morrendo na indigência, os meninos jamais frequentarão a escola. Se fosse eu mais novo, iria junto, disse Bezerra. Linhares agradeceu as palavras de incentivo e, com os olhos molhados, de alegria, despediu-se. Após dias reuniu a família, falou sobre o projeto, e descobriu ser o que mais Augusta queria, embora também houvesse guardado somente para ela esse sonho de mulher guerreira.
Passaram-se dois meses. Linhares vendeu dois jumentos, algumas galinhas, um galo, dois porcos, e até um tatu que seria a ceia do Natal. Não negociou as enxadas, por serem sagrado instrumento de trabalho. Doutor Bezerra e padre Paulino emprestaram um tiquinho de dinheiro e fizeram mil recomendações. — Um dia voltarei para lhes pagar. — O melhor pagamento é saber que você se deu bem! — Disse o médico. — Que Deus o abençoe e volte rico para auxiliar o povo dessa terra sofrida! — Disse o padre. Para o padre Paulino, alguém sair do sertão, ir para o Amazonas e ser vitorioso era como salvar uma alma, assim falava aos fiéis em seu sermão dominical, sem, no entanto, aconselhá-los a partir para o Amazonas, por ser muito distante, a terra do sem fim.
Comprometido com o projeto, Linhares foi para a capital de onde sairia o navio para o Amazonas. À noite a família se reuniu no porto do Mucuripe, próximo a escada onde aguardariam o dia do embarque. Para os meninos tudo era novidade; o cais, o mar, as jangadas, as garças sobrevoando o mar, o apito do navio, o movimento das pessoas transitando conduzindo objetos, homens com sacas de trigo na cabeça ou parados observando o movimento no cais, contemplando o velho farol do Mucuripe, e as dunas. Augusta pouco observava, segurando os filhos pelas mãos, e em silêncio com um terço falava com Nossa Senhora da Conceição, pedindo para serem vitoriosos. Depois de muita espera, Linhares embarcou com a família num navio do Loide brasileiro, cujo o objetivo era chegar à Manicoré, um distante lugar no sul do Estado do Amazonas que havia sido indicado pelo dr. Bezerra, afirmando ser região de terra boa para plantar, e que o Governo distribuía terra para quem lá chegasse.
Naturalmente o migrante deveria ter algum conhecimento da região ou um pequeno recurso para se manter, comprar sementes até que começasse a produzir. Linhares tinha um plano, mas existia um detalhe que só ele e Augusta sabiam. A ideia inicial era trabalhar em algum seringal da região para conhecer e adaptar-se ao lugar; seus costumes, potencialidades, especialmente a agricultura e a criação de animais sendo o melhor que sabia fazer. Os recursos que levava bem escondidinho seriam suficientes para iniciar uma pequena plantação, talvez de feijão e milho, aí daria para criar algum animal. Se realmente existia dinheiro na região, pela força produtiva do látex, teria mercado para vender sua produção de animais, pensava acertadamente o bravo guerreiro. O problema maior seria como pedir a conta no seringal onde inicialmente fosse trabalhar com os filhos e mulher. Mas, para isso, Bezerra tomou uma providência que Linhares e a mulher guardaram em sigilo.
Viajando no porão infecto de um navio do Loide brasileiro sem nenhum conforto, pois era dessa forma que o Governo acolhia o soldado da borracha. Mas, sendo ele um homem prevenido, conduzia em dois matulões; farinha, rapadura, sem esquecer o fumo de rolo para fazer o cigarro com palha de milho que carinhosamente trouxe bem escondido. A farinha e a rapadura haviam sido doadas pela igreja de padre Paulino, como também algumas roupas para os meninos que andavam quase despidos. Pela primeira vez a família de Linhares viu o mar, e pela janelinha da terceira classe a família espiava o movimento das ondas e escutava o marulho da água no casco do navio.
Quando o navio aportou na belíssima cidade de Belém do Pará, Linhares sentiu que chegara ao portal da Amazônia, uma região verde, molhada, úmida, completamente diferente do grande sertão árido, que havia deixado para trás e que tanto amava. Linhares estava determinado a acolher a Amazônia como seu novo lar. Ali em Belém, encantado com as belezas da cidade visitou o mercado ver o peso, as ruas Manuel Barata, Santo Antonio, Getúlio Vargas e outras, percebendo que as pessoas tinham aparência física diferente e também um comportamento mais espontâneo com os visitantes, que ao perceberam ser ele retirante lhe presentearam coisas, tipo alimentação, roupas para seus meninos e os acarinhavam com olhares de afeição. Assim se sentiu mais confortado, e talvez aí haja nascido seu grande amor pela Amazônia.
Ao afastar-se da Baía de Guajará e adentrando o caudaloso Rio Amazonas, Linhares admirou a floresta, às margens do Rio Mar sonhando chegar a Manicoré, um lugar distante, mas cheio de esperança, e abraçado à família exclamou: — Esta é nossa terra prometida por Deus, nela haveremos de vencer. Todos os nossos sonhos se tornarão realidade nessa floresta esplendorosa, fonte de brilho e encanto, arco-íris seiva das belezas da vida, sublime inspiração da Natureza, afirmou. --- Teremos nós um pedaço de terra para trabalhar? — Perguntou Augusta. --- Naturalmente que sim, respondeu Linhares. Augusta tinha sonhos; levar os filhos à escola, trabalhar na roça junto do marido e morar em sua própria casinha. Os filhos também felizes faziam planos; cuidariam de uma grande plantação e frequentariam à escola, a mãe finalmente teria uma casa para morar, feita de madeira de primeira qualidade. O filho menor queria conhecer Onça, Sucuri, Jacaré, Macacos, rios, igarapés, índios e grandes lagos. Assim, soltava a imaginação de criança. Todos sentiam felicidade e alegria, mas ainda teriam que transpor muitas barreiras. A família unida estava determinada a vencer, Augusta era o ponto de equilíbrio e o marido queria lhe dar uma vida melhor, esse era seu grande sonho.
Augusta estava debilitada, com pressão alta, o remédio tinha acabado e a bordo nada tinham para oferecer. Augusta era portadora de algumas mazelas decorrentes do árduo trabalho na enxada, mas não se queixava, preferindo cuidar do marido e filhos. Certa manhã não conseguiu se levantar, o médico do navio foi chamado e, mesmo sendo assistida, não resistiu e faleceu ao chegar à cidade de Óbidos no Pará. Foi um momento de tristeza para a família, pois Augusta era parte daquele projeto de uma nova vida, em um lugar de sonhos. Com sua morte o sonho não acabou, ela havia pedido que se lhe acontecesse alguma coisa, queria que eles prosseguissem viagem e realizassem o sonho da família. Ela conhecia sua limitação de saúde e com bravura anteviu sua passagem. Numa rede de fibra dois homens conduziam o corpo de Augusta, lentamente caminhavam subindo o barranco,
Linhares seguia o cortejo amparando os filhos pela mão, os meninos choravam sem entender, e Linhares com os olhos cheios d’água e o coração partido escutava as badaladas anunciando o desencantamento de sua companheira. Os meninos caminhavam de pés descalços, eles tinham a imagem da mãe em vida, agora guardariam a lembrança dela, morta para sempre, essa era a compreensão deles. Sepultaram o corpo e colocaram sobre a sepultura uma enxada, simbolizando o trabalho de agricultor. No sepulcro Linhares prometeu ir em frente e junto com os filhos transformar o sonho em realidade. A bordo debruçados no convés, abraçados, choravam ao distanciarem-se da cidade.
Deixavam naquele lugar o corpo de Augusta, mas sua imagem estaria gravada para sempre em suas memórias. — A mãe foi para o céu? — Perguntou o filho — Certamente! —Respondeu Linhares. Pelo alto falante os passageiros foram chamados para ocuparem seus lugares na terceira classe. O sino da igreja com cadenciadas badaladas anunciava o término do sepultamento. Nunca mais a família veria o corpo de Augusta, a grande mulher guerreira que sempre esteve ao lado do marido e dos filhos. Linhares estava abalado, parte do sonho terminara, mas ele era um homem de fibra, não se entregaria. — Seu corpo vem fertilizar essa terra fértil e acolhedora, sua alma estará bem pertinho de Deus, nunca a esqueceremos! — Disse Linhares.
O Sol brilhava tal uma manopla de fogo, a cigarra cantando sinalizava que não choveria, e o vento sussurrava entre as folhas secas margeando a estrada. José Linhares caminhava com a alma embrulhada em sofrimento, mas na memória concebia um sonho. Os meninos, José e Gerardo com semblantes de criança traziam uma impressão indizível de felicidade e alegria. A brisa morna da tarde mimava seus corpos macérrimos. Linhares tinha o semblante fechado, o corpo magro inclinado para a frente, suas alpercatas de rabicho ao tocar o chão causavam um som característico. À margem da estrada viam-se pequenos calangos bulindo nos gravetos ressequidos, papagaios e andorinhas tingiam de verde o céu anil, borboletas brancas e azuis se mostravam sinalizando a vida e distante ouviam-se o trilar da Acauã, formando assim, belíssima tela da Natureza alentando a vida naquele rincão do sertão ressequido pelo inexorável tempo. Com aquela postura Linhares revelava aos filhos que ainda havia possibilidade de vencer desafios, brocando um roçado e plantando a semente naquela terra abençoada.
Era 1940, as promessas vazias dos políticos se repetiam afirmando: Se a chuva não chegar o Governo mandará dinheiro para a prefeitura e executaremos obras onde todos se ocuparão e nada faltará aos trabalhadores do campo. Assim afirmava quem no campo retinha os trabalhadores, escravizando-os com uma mão de obra desumana. Os trabalhadores do campo eram doutrinados para se manterem no sertão apesar de oprimidos e analfabetos, com uma vida extremamente pobre. Embora a Princesa Izabel houvesse libertado os escravos em 1888, em 1941 o homem ainda vivia em um regime de servidão, e suportando hipocrisia por parte dos dirigentes da República e dos senhores da terra, isto é, os latifundiários. Provavelmente o dinheiro destinado às obras durante a seca fosse desviado para o bolso dos corruptos antes mesmo de chegar aos trabalhadores. Essa triste história se repetia desde a época do império, na luta entre dominadores e dominados. Dominar homens e mulheres analfabetos tornava-se mais fácil, assim pensavam e agiam os senhores de engenho e, hoje, latifundiários avaros de escrúpulos.
Não interessava aos latifundiários que o trabalhador deixasse o sertão, assim eles continuariam tendo uma mão-de-obra escrava, podendo manter um alto padrão de vida, colocando os filhos para estudar em bons colégios na capital, no sul do país ou até no estrangeiro. Para os senhores do campo, ávidos de lucro fácil, não interessava que os filhos dos trabalhadores aprendessem a ler, poderia despertar neles algum sentimento de liberdade. Ignorantes, eles seriam mais úteis e tocando a vida, esperavam que a chuva os libertasse da indigência. Entretanto, ao chegar a chuva, não tinham dinheiro para comprar nem as sementes para o plantio e recorriam ao patrão, que cobrava um preço exorbitante. A terra onde Linhares trabalhava pertencia ao coronel Bento, homem durão que não dispensava 50% do pouco que seus trabalhadores produziam, e assim, a cada ano o episódio se repetia. O que José Linhares ganhava não dava para o sustento da família, sempre que lhe cabia um bezerro ou ovelha, fruto da participação na criação dos animais, forçosamente entregava para o próprio patrão em troca de alimento.
Analfabeto, o trabalhador do campo desconhecia as leis trabalhistas e esse fato animava alguns patrões desonestos, embora também existissem patrões sérios. D. Maria Augusta, companheira de Linhares tinha sérios problemas no coração e necessitava de cuidados especiais do marido que zelava para que não lhe faltassem os remédios receitados pelo dr. Bezerra, médico e veterinário que durante a semana cuidava de pessoas e nos feriados e dia santo, nas fazendas também cuidava dos animais ensinando os criadores a vacinar os rebanhos. Bezerra era um profissional virtuoso, embora para alguns fazendeiros não servisse, sendo taxado de perverso inimigo, embora ele apenas exercesse sua profissão com dignidade defendendo o direito dos menos afortunados. Padre Paulino não pensava igual aos fazendeiros, mantendo com o médico bom relacionamento, promovendo a caridade, prática que muito faltava entre alguns homens da região.
A festa de São Francisco, padroeiro da cidade acontecia de 24 de setembro a 4 de outubro, efetivando assim, a socialização entre os moradores de diversas localidades. Linhares e a família se faziam presentes nos festejos da cidade, e ali se encontravam com velhos conhecidos, romeiros vindos de lugares distantes, até da Amazônia. Entre tantos presentes aos festejos, estava José Fabiano, homem conversador, fanfarrão e galhofeiro, contava que o Amazonas era um Eldorado, todos que chegavam aos seringais se tornavam homens ricos, donos de armazéns de aviamento, fazendas de gado e até tinham dinheiro no banco, moravam em mansões e frequentavam luxuosos cabarés e cassinos, coisas naturais da época rica da borracha, ele mesmo gabava-se de ser um homem rico contando vantagens convidando os conterrâneos para trabalhar nos seringais do Amazonas afirmando que pagaria todas as despesas, as quais lhe seriam ressarcidas com o lucro fácil que os seringueiros obteriam ao chegar aos seringais. Afirmava que fazia isso só para ajudar os conterrâneos. Alguns homens que acompanharam Fabiano tornaram-se escravos de maus seringalistas que nos seringais faziam suas próprias leis. Esses seringalistas, outrora pobres seringueiros, pela vaidade e ganância tornaram-se tiranos dos seus conterrâneos.
Fabiano era agenciador de mão-de-obra escrava e cruel pistoleiro a serviço de coronéis de barranco, alguns eram sanguinários e cruéis, nunca um seringueiro saiu vivo de suas terras, pois eram homens escravos e prisioneiros até a morte. As coisas básicas para a sobrevivência do seringueiro na floresta; o feijão, farinha, conserva, sal, querosene poronga, molambos para vestir, quinino e outros, eram cobrados muito além do valor real. Descobrindo a realidade o seringueiro sentia-se enganado e comprometido com uma dívida que jamais resgataria. Alguns tentavam fugir, mas eram cassados, presos, açoitados, e as vezes até iam a óbito. Com a morte do seringueiro a dívida não cessava e a família ficava no dever de sanar a suposta obrigação cuja primeira parcela do pagamento se dava com a entrega da viúva ou filhas a outro homem. Essa era uma das malditas Leis do seringal que muitos desconheciam antes de chegar às colocações nos confins do Amazonas.
Como acontecia antes, também naquele momento a corrupção dominava grande parte das autoridades da velha república, corroída pelos maus costumes oriundos da má formação social do país. Em Manaus, capital da borracha como era conhecida na época, os ricos desfrutavam um padrão de vida europeu, embora a maioria da população vivesse em completa miséria, sem assistência social nenhuma, esquecidos quais animais no meio do continente verde. lugar onde o homem aprendeu a viver, entre lagos, rios, florestas e animais ferozes, convivendo com nações indígenas, algumas que não haviam tido contato com o homem, dito civilizado, travando com eles sangrentas batalhas. Assim, o seringueiro marcava o território do Amazonas fronteiriço com dez países. Dessa forma o seringueiro era também um guardião do território brasileiro. Os migrantes que por Manaus passavam com destino aos seringais, não eram tratados com o devido reconhecimento, viajavam para o interior em porões de barcos, juntos a porcos, galinhas e outros animais num ambiente infecto.
Dia de festejo era também o momento de ir ao médico, o dr. Bezerra atendia a todos, tanto fazia ter ou não dinheiro. Alguns sertanejos o presenteavam com o que dispunham: cabra, bode, galinha e outros bichos. Bezerra, como gostava de ser chamado, distribuía as doações entre as pessoas carentes e nunca se esquecia de mandar alguma prenda para o leilão da paróquia do padre Paulino, que amava verdadeiramente os pobres. Com a renda obtida no leilão padre Paulino auxiliava as pessoas necessitadas seguindo o exemplo de São Francisco de Assis, assim era amigo de todos, fossem eles católicos, evangélicos, espíritas ou ateus, para ele todos eram irmãos e filhos de um só Deus.
Sempre que atendia Augusta, Bezerra dizia que receberia o dinheiro da consulta no próximo ano, era apenas uma maneira de não cobrar. Sensível às dificuldades da família de Linhares, sempre indagava se os meninos estavam frequentando a escola e aconselhava: — Aprender a ler e a escrever é como se livrar da senzala, libertar-se de uma masmorra, duma caverna, dos grilhões da ignorância, é sentir a luz clareando a mente, é caminhar para o conhecimento, para a libertação, e a liberdade era o que mais Augusta desejava para os filhos. Ao trabalhar como empregada doméstica na casa paroquial, Augusta aprendeu a ler e a escrever, esse pequeno aprendizado lhe foi muito útil, pois quando os meninos não iam à escola por estarem trabalhando no campo, ela os ensinava o pouco que sabia antes de colocá-los para dormir. D. Augusta tinha uma boa visão de futuro, sabendo que a maneira mais fácil de se libertar é pelo conhecimento. Linhares tinha um projeto que guardava em sigilo e falava de um irmão que morava em Marajó criando Búfalos. Ele comentava que o irmão havia se dado bem, residia numa terra cedida pelo Governo e possuía muitas búfalas leiteiras. O sucesso do irmão o fazia pensar na possibilidade de seguir seus passos, mas temia viajar com a família para um lugar desconhecido.
Depois, não queria ir por conta do Governo, como soldado da borracha ou de algum patrão, o plano era levar algum dinheiro mesmo que fosse um tiquinho, o suficiente para começar sem dever, o que não seria fácil visto que todo ano ficava devendo ao patrão, sem condições de economizar. Esse projeto estava em gestação somente em sua mente, não poderia nutrir falsa esperança na família, mas pensava, sendo essa a única liberdade que possuía, ninguém poderia mandar em seu pensamento, sua grande riqueza que o conduzia às grandes vitórias. — O dr. Bezerra é meu bom conselheiro, um dia desses falarei com ele pedindo orientação —Falava para si.
Padre Paulino advertiu a Linhares dizendo: ‘’Poucos retirantes que foram para o Amazonas enriqueceram, muitos morreram vitimados por doenças tropicais; malária, febre amarela, mordidas de répteis, e até de tocaia por parte de alguns seringalistas’’. Os migrantes ou brabos como assim foram nomeados, enfrentaram um ambiente hostil, diferente daquele por eles conhecido, inclusive, problemas socioculturais resultantes de um modo de vida diferente, próprio da região. O migrante quando chegava ao seringal era chamado de brabo porque desconhecia os segredos da floresta, uma nova realidade lhe era imposta em tudo por tudo. A densa floresta, muitos rios, muita água, o uso da canoa, os animais ferozes e as doenças tropicais, eram esses os grandes desafios para o seringueiro, mas o maior deles eram os próprios seringalistas. Entretanto vale ressaltar a existência de seringalistas honrados, justos e junto a esses, alguns que se tornaram homens poderosos construindo verdadeiros impérios econômicos no Amazonas.
Para tornar-se manso, conhecedor da floresta o seringueiro precisava aprender a usar a canoa, pescar, navegar, caçar, conhecer frutos na floresta e saber qual deles poderia usar como alimento, conhecer os animais e seus hábitos, e como poderiam ser dominados. Conhecer a serventia das plantas medicinais, pois os remédios tradicionais não estavam ao seu alcance. Linhares sabia que a conotação de manso, não significava somente ter o conhecimento e a adaptação à floresta, mas também de sujeição, absoluta. Quando por falta de recursos o migrante não voltava para sua terra natal, tornava-se submisso ao patrão. Devendo, era escravizado pelo resto da vida que não era longa em decorrência de sua miserável condição de completo abandono. As autoridades do Governo viviam nababescamente no Rio de Janeiro, capital da República ou em Manaus, onde moravam em bangalôs luxuosos frequentando cabarés, óperas e teatros. Alguns mandavam lavar as próprias roupas em Paris e só consumiam produtos importados da Europa.
A reflexão sobre essas mazelas deixava Linhares temeroso, sem poder expor seu sonho a família, ele pensava em ir para o Amazonas, não para ser escravo, como já o era pelo mandonismo do patrão, coronel Bento. Mesmo que não ficasse rico, desejava ter melhor qualidade de vida, saindo da pobreza sem as amarras de patrão nenhum. Queria plantar sua lavoura numa terra que fosse sua e que, ao morrer, pudesse deixar para a família. Temeroso de tornar o sonho irrealizável, pacientemente esperava o momento certo para comunicar à família o plano de emancipação, um grito de liberdade, um sonho guerreiro.
Dia de festa do padroeiro da cidade, Linhares estava presente. Nesse dia se confessou e comungou pelas mãos do padre Paulino. Depois da missa bebeu uns tragos de cachaça e corajosamente consultou o dr. Bezerra. Não poderia existir dia melhor para expor o sonho ao amigo e confidente. Bezerra pacientemente ouviu o amigo expor seu projeto — É arriscado, mas o que fazer! Se você ficar aqui, vai terminar a vida como tantos outros, morrendo na indigência, os meninos jamais frequentarão a escola. Se fosse eu mais novo, iria junto, disse Bezerra. Linhares agradeceu as palavras de incentivo e, com os olhos molhados, de alegria, despediu-se. Após dias reuniu a família, falou sobre o projeto, e descobriu ser o que mais Augusta queria, embora também houvesse guardado somente para ela esse sonho de mulher guerreira.
Passaram-se dois meses. Linhares vendeu dois jumentos, algumas galinhas, um galo, dois porcos, e até um tatu que seria a ceia do Natal. Não negociou as enxadas, por serem sagrado instrumento de trabalho. Doutor Bezerra e padre Paulino emprestaram um tiquinho de dinheiro e fizeram mil recomendações. — Um dia voltarei para lhes pagar. — O melhor pagamento é saber que você se deu bem! — Disse o médico. — Que Deus o abençoe e volte rico para auxiliar o povo dessa terra sofrida! — Disse o padre. Para o padre Paulino, alguém sair do sertão, ir para o Amazonas e ser vitorioso era como salvar uma alma, assim falava aos fiéis em seu sermão dominical, sem, no entanto, aconselhá-los a partir para o Amazonas, por ser muito distante, a terra do sem fim.
Comprometido com o projeto, Linhares foi para a capital de onde sairia o navio para o Amazonas. À noite a família se reuniu no porto do Mucuripe, próximo a escada onde aguardariam o dia do embarque. Para os meninos tudo era novidade; o cais, o mar, as jangadas, as garças sobrevoando o mar, o apito do navio, o movimento das pessoas transitando conduzindo objetos, homens com sacas de trigo na cabeça ou parados observando o movimento no cais, contemplando o velho farol do Mucuripe, e as dunas. Augusta pouco observava, segurando os filhos pelas mãos, e em silêncio com um terço falava com Nossa Senhora da Conceição, pedindo para serem vitoriosos. Depois de muita espera, Linhares embarcou com a família num navio do Loide brasileiro, cujo o objetivo era chegar à Manicoré, um distante lugar no sul do Estado do Amazonas que havia sido indicado pelo dr. Bezerra, afirmando ser região de terra boa para plantar, e que o Governo distribuía terra para quem lá chegasse.
Naturalmente o migrante deveria ter algum conhecimento da região ou um pequeno recurso para se manter, comprar sementes até que começasse a produzir. Linhares tinha um plano, mas existia um detalhe que só ele e Augusta sabiam. A ideia inicial era trabalhar em algum seringal da região para conhecer e adaptar-se ao lugar; seus costumes, potencialidades, especialmente a agricultura e a criação de animais sendo o melhor que sabia fazer. Os recursos que levava bem escondidinho seriam suficientes para iniciar uma pequena plantação, talvez de feijão e milho, aí daria para criar algum animal. Se realmente existia dinheiro na região, pela força produtiva do látex, teria mercado para vender sua produção de animais, pensava acertadamente o bravo guerreiro. O problema maior seria como pedir a conta no seringal onde inicialmente fosse trabalhar com os filhos e mulher. Mas, para isso, Bezerra tomou uma providência que Linhares e a mulher guardaram em sigilo.
Viajando no porão infecto de um navio do Loide brasileiro sem nenhum conforto, pois era dessa forma que o Governo acolhia o soldado da borracha. Mas, sendo ele um homem prevenido, conduzia em dois matulões; farinha, rapadura, sem esquecer o fumo de rolo para fazer o cigarro com palha de milho que carinhosamente trouxe bem escondido. A farinha e a rapadura haviam sido doadas pela igreja de padre Paulino, como também algumas roupas para os meninos que andavam quase despidos. Pela primeira vez a família de Linhares viu o mar, e pela janelinha da terceira classe a família espiava o movimento das ondas e escutava o marulho da água no casco do navio.
Quando o navio aportou na belíssima cidade de Belém do Pará, Linhares sentiu que chegara ao portal da Amazônia, uma região verde, molhada, úmida, completamente diferente do grande sertão árido, que havia deixado para trás e que tanto amava. Linhares estava determinado a acolher a Amazônia como seu novo lar. Ali em Belém, encantado com as belezas da cidade visitou o mercado ver o peso, as ruas Manuel Barata, Santo Antonio, Getúlio Vargas e outras, percebendo que as pessoas tinham aparência física diferente e também um comportamento mais espontâneo com os visitantes, que ao perceberam ser ele retirante lhe presentearam coisas, tipo alimentação, roupas para seus meninos e os acarinhavam com olhares de afeição. Assim se sentiu mais confortado, e talvez aí haja nascido seu grande amor pela Amazônia.
Ao afastar-se da Baía de Guajará e adentrando o caudaloso Rio Amazonas, Linhares admirou a floresta, às margens do Rio Mar sonhando chegar a Manicoré, um lugar distante, mas cheio de esperança, e abraçado à família exclamou: — Esta é nossa terra prometida por Deus, nela haveremos de vencer. Todos os nossos sonhos se tornarão realidade nessa floresta esplendorosa, fonte de brilho e encanto, arco-íris seiva das belezas da vida, sublime inspiração da Natureza, afirmou. --- Teremos nós um pedaço de terra para trabalhar? — Perguntou Augusta. --- Naturalmente que sim, respondeu Linhares. Augusta tinha sonhos; levar os filhos à escola, trabalhar na roça junto do marido e morar em sua própria casinha. Os filhos também felizes faziam planos; cuidariam de uma grande plantação e frequentariam à escola, a mãe finalmente teria uma casa para morar, feita de madeira de primeira qualidade. O filho menor queria conhecer Onça, Sucuri, Jacaré, Macacos, rios, igarapés, índios e grandes lagos. Assim, soltava a imaginação de criança. Todos sentiam felicidade e alegria, mas ainda teriam que transpor muitas barreiras. A família unida estava determinada a vencer, Augusta era o ponto de equilíbrio e o marido queria lhe dar uma vida melhor, esse era seu grande sonho.
Augusta estava debilitada, com pressão alta, o remédio tinha acabado e a bordo nada tinham para oferecer. Augusta era portadora de algumas mazelas decorrentes do árduo trabalho na enxada, mas não se queixava, preferindo cuidar do marido e filhos. Certa manhã não conseguiu se levantar, o médico do navio foi chamado e, mesmo sendo assistida, não resistiu e faleceu ao chegar à cidade de Óbidos no Pará. Foi um momento de tristeza para a família, pois Augusta era parte daquele projeto de uma nova vida, em um lugar de sonhos. Com sua morte o sonho não acabou, ela havia pedido que se lhe acontecesse alguma coisa, queria que eles prosseguissem viagem e realizassem o sonho da família. Ela conhecia sua limitação de saúde e com bravura anteviu sua passagem. Numa rede de fibra dois homens conduziam o corpo de Augusta, lentamente caminhavam subindo o barranco,
Linhares seguia o cortejo amparando os filhos pela mão, os meninos choravam sem entender, e Linhares com os olhos cheios d’água e o coração partido escutava as badaladas anunciando o desencantamento de sua companheira. Os meninos caminhavam de pés descalços, eles tinham a imagem da mãe em vida, agora guardariam a lembrança dela, morta para sempre, essa era a compreensão deles. Sepultaram o corpo e colocaram sobre a sepultura uma enxada, simbolizando o trabalho de agricultor. No sepulcro Linhares prometeu ir em frente e junto com os filhos transformar o sonho em realidade. A bordo debruçados no convés, abraçados, choravam ao distanciarem-se da cidade.
Deixavam naquele lugar o corpo de Augusta, mas sua imagem estaria gravada para sempre em suas memórias. — A mãe foi para o céu? — Perguntou o filho — Certamente! —Respondeu Linhares. Pelo alto falante os passageiros foram chamados para ocuparem seus lugares na terceira classe. O sino da igreja com cadenciadas badaladas anunciava o término do sepultamento. Nunca mais a família veria o corpo de Augusta, a grande mulher guerreira que sempre esteve ao lado do marido e dos filhos. Linhares estava abalado, parte do sonho terminara, mas ele era um homem de fibra, não se entregaria. — Seu corpo vem fertilizar essa terra fértil e acolhedora, sua alma estará bem pertinho de Deus, nunca a esqueceremos! — Disse Linhares.
Dias depois o navio aportou na histórica cidade de Manaus. Ainda a bordo Linhares admirou a cidade que se originou de um pequeno arraial formado em torno da fortaleza de São José do Rio Negro fundada em 1669, também contemplou a primeira igreja erguida depois da fundação de Manaus, Igreja de Nossa Senhora da conceição, construída em 1695 sendo a primeira obra arquitetônica erguida em Manaus, voltada para o caudaloso Rio Negro, com suas belíssimas escadarias que sugerem o desenho de uma lira.
Linhares permaneceu alguns dias nessa cidade morando numa hospedaria para imigrantes no bairro dos Bilhares, em péssimas condições de higiene, mas isso não o faria desistir. Em um navio gaiola junto com os filhos menores, Linhares viajou durante vinte dias, com destino a Manicoré no Rio Madeira. Desembarcou em um seringal a três dias da cidade de Manicoré, ali ficaria por alguns meses procurando se adaptar a região. Dirigiu-se ao barracão onde conheceu um patrão. Ali, lhe foi explicado às regras para o brabo, isto é, um seringueiro recém-chegado que nada conhece das coisas relacionadas a colheita do Látex e do meio onde tudo acontece. — Aqui quem faz a Lei sou eu! — Disse o seringalista adiantando ainda, que o seringueiro não pode abastecer-se em outro armazém, vender a seringa para outro patrão, gastar mais do que ganha, reclamar dos preços da mercadoria porque tudo é comprado em Manaus e Belém, lugares distantes que geram despesas. O seringueiro não pode plantar hortaliça ou árvores frutíferas para poder dedicar-se unicamente ao corte de seringa, quem tentar plantar um roçado, será destruído, pois a terra é do patrão. Quem não tiver saldo também não pode deixar o seringal, se fugir será caçado e castigado.
Ciente dessas regras, Linhares seguiu para a colocação que lhe foi destinada. Lá existia uma velha estrada de seringa e um Tapiri. A alimentação era de conserva, mas logo o filho menor aprendeu a caçar, pescar e preparar o alimento. Enquanto isso o pai e o filho mais velho trabalhavam noite e dia na coleta de látex. Jovens ainda, trabalharam seis meses, sempre prestando contas ao patrão e aumentando o saldo. Não efetuavam grandes compras de mantimentos e se alimentavam de caça e pesca, assim mantinham a conta baixa junto ao armazém.
O lugar onde moravam era um Tapiri de um só cômodo, em volta, frondosas arvores com dimensões jamais vistas por Linhares, próximo existia um Igarapé com peixes de grande porte; Pirarucu, Tambaqui, Tucunaré, e uma infinidade de peixes menores, também gigantescos jacarés e cobras sucuris de até oito metros. Muitos desses bichos peçonhentos eram devorados por onças pintadas, pretas, jaguatiricas e porcos queixadas que caçavam suas presas nas cercanias do Tapiri, era necessário ter muito cuidado para não morrer entre as presas afiadas desses animais, ou engolido por uma Sucuri. A poucos quilômetros desse lugar existia uma fonte d’água cristalina, e uma imensa cachoeira, no entanto estavam próximos a uma aldeia de índios ainda com costumes canibalescos. Era nesse o cenário que Linhares deveria efetuar seu trabalho na colheita de Látex.
As redes eram atadas a três metros de altura como defesa de animais ferozes, inclusive manadas de queixadas. Sempre alguém permanecia acordado com uma espingarda à mão para se defender de alguma fera perigosa. Praticamente Linhares perdeu o contato com a civilização e aprendeu a ver as horas, dias e meses pela posição da Lua, Sol e estrelas, se guiando pela natureza. Ao chegar a essa colocação abriu na mata densa duas estradas de seringa por onde caminharia noite e dia cortando seringa e colhendo látex. Linhares e os filhos moravam na floresta há seis meses, e já eram pessoas diferentes. Sentiam muita saudade de Augusta, mas eram embalados pelas boas lembranças. Até pensaram em voltar, mas queriam concluir o plano estabelecido.
No barracão Flaviano prestou conta com o guarda-livros e pediu para falar com o patrão que com muito desprezo o recebeu. --- Boa tarde patrão! Disse Linhares --- o que você quer? --- Quero dizer-lhe algumas palavras e mostrar essa missiva. O seringueiro entregou uma carta proveniente da Diocese de Canindé assinada pelo padre Paulino, endereçada ao padre Inácio, vigário da cidade de Manicoré apresentando o senhor Linhares, primo e muito querido pelo bispo da comarca. O seringalista conhecia o poder de um bispo da Igreja Católica e mudou o tom, pediu desculpas e Linhares seguiu viagem a bordo de uma pequena embarcação com destino a Manicoré. A carta havia sido planejada pelo dr. Bezerra que, conhecendo as Leis dos seringais imaginou o que poderia acontecer ao pobre homem, quando esse se apresentasse pedindo para ir embora com saldo a receber.
O plano havia dado certo, os padres tinham um poder muito forte na floresta. Ninguém se atreveria a negar-lhes um pedido por pais relevante que fosse. Na época os pastores evangélicos não se faziam presentes na floresta, e por esta razão o dr. Bezerra não recorreu também a eles. Anos depois Linhares recebeu em sua casa o seringalista que fora seu patrão e quando por carta contou a história ao dr. Bezerra foi motivo de grande satisfação.
Ao pisar no chão de Manicoré Linhares abraçou os filhos, dizendo: -- aqui nessa terra abençoada por Deus construiremos nova vida, nunca mais seremos trabalhadores escravos e o nome desse lugar será Augusta, concluiu. Com as economias que haviam guardado e o saldo obtido no seringal se situaram no lugar numa terra boa para plantar e criar animais e prosperaram, mas para que essa prosperidade fosse perene Linhares teve que enfrentar grandes desafios, pois sua propriedade, estava situado entre tribos de índios que guerreavam entre si por disputa de terras, tirando a paz da região, mas convivendo entre os índios Linhares conseguiu unir as tribos e escolheu uma bela guerreira para sua companheira e selou a amizade entre todos. Constituiu nova família, os filhos estudaram, também casaram.
Linhares tornou-se um homem rico e proprietário rural, e de armazéns de aviamento. Mesmo rico e poderoso nunca se distanciou da ética e da moral. Famílias nordestinas vieram com ele trabalhar e se tornaram vitoriosas. Linhares morreu aos 87 anos, deixando esposa, filhos, netos e bisnetos. Entre seus netos, um se destacou; estudante interno de um colégio salesiano na capital, aluno aplicado se formou em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, homem sensível a questões sociais tornou-se um político habilidoso e ético chegando a ser, senador da República.