O desavisado da Êxtase
Tomou das suas matizes e pintou o sete. Cabra tonto! Se soubesse o breu que haveria de encontrar não teria pintado nem até o dois. Fora surpresa, das mais surpreendentes que se podia imaginar. Percorreu sem medo o destino de si como se fosse a última viagem de sua vida. E foi. Coitado! Capenga de uma perna, torto de um olho, com uma asnice de alma sonsa e infanto, ia sem destino e certo de que em seu caminho encontraria sentimento bom. Fatalidades das grandes! Estonteou corações e por certo desestruturou novas formas de relações de tanto alvoroço de sentir. Achava tudo muito real, tamanha as ilusões que encontrara. Poderia fazer sol ou fazer chuva que o predestinado lacrado insistia naquela vida que não vivia. Deixou para trás seus valores, não conheceu a vida das drogas, mas conheceu nas drogas a droga de vida que escolhera.
Tarde demais pra voltar à estaca zero, tudo estava realizado. Um metro e setenta e dois de pura babaquice, sessenta e cinco quilos de puro desejo, cabelos muito bem cuidados e arrepiados, embalsamados pela pasta de queratina e embelezado pelo Origem Now de ervas finas, dois pares de olhos castanhos puxados pro mel, que mais pareciam as cinzas de um hades.
E quanto de beleza que não haviam naqueles dois pares olhos? Sem serventia em tempo, mas haviam!
Não ouvia a voz da consciência, o simples. Pouquíssimas vezes se deu ao desfrute disso! Enxergava o mundo, menos a si próprio e a um palmo diante do nariz!
No beco do bairro Floresta, no pardieiro chamado Êxtase, em meio àquela alegria infinita e idealizada que certamente um policial militar, de pseudônimo Tranqueira, haveria de condená-lo à morte. Queriam a todo custo os dois sedentos de veadagem saírem fora do ambiente deposto. De falácias e muita insistência convenceram o brutamontes do porteiro, o Zé Carlos, que mais parecia um búfalo das savanas, de tão forte aquele negócio chamado de homem, de que seriam apenas vinte minutos. Só vinte minutos! Eternidade de vinte minutos! E atrás de uma carreta-baú estacionada consumaram o desdenho desejado. Isso mesmo consumaram, de comum acordo. Ou quem sabe, de comum burrice da parte de Inocêncio.
Eu quero subir! Eu quero subir! Gritava o Inocêncio, o desvairado! Subiu. Subiu alto! Subiu mais alto ainda. Subiu tanto que jamais conseguira descer! Nunca que se perguntava que vida desgraçada que era aquela na qual estava entregue. Antes, ainda dentro da Êxtase, uma moça muito bonita, de cabelos curtos e loiros, aproximou-se de Inocêncio. E numa conversa bastante gostosa, idealizaram, talvez, uma proposta de fogo. Inocêncio, de posse de um copo de destilado, o qual não largava nem se o teto daquele ambiente desabasse, ouviu atentamente aquela miragem de moça.
Pensou ..., deve ser de família muito rica, pela pele e cabelos tão bem cuidados! Que trouxa que foi o Inocêncio! Deveria ter mudado o nome de Inocêncio para Trouxêncio!
Aceita uma bola?, perguntou a miragem em forma de violão! Não, obrigado, não rola! Andressa, mais que depressa respeitou sua decisão, mas sacou de seu bolso um pacotinho, com essência de tutti-frutti. Dizia ela que se chamava Andressa, pelo menos ali na Êxtase, vai saber! Aceitou e gostou daquele troço. Foi aí que o policial militar, mais mamado do que uma égua, de nome Cabo Sérgio Mollas, se aproximou com aquela cara mais lambida. E que cara lambida! Lambida e bonita, de barba bem cuidada e por fazer, olhos expressivos, um deus grego forte e dominante! Estava o filho da puta da elegância de cálculo pensado com a moça dos olhos claros. Enroscou aquelas mãos grossas e sujas de sangue na cintura de Inocêncio, puxando-o forte para si como se fosse um peixe fisgado no rio Paraopeba.
Retornando os dois da rua do bairro Floresta, decidiram irem embora do pardieiro, de comum acordo com aquela gangue e quando foram perceber não eram apenas uma dupla, mas já estavam ao redor de Andressa dentro da Êxtase mais duas pessoas, todas rindo feito loucas! Mostravam algo superior a uns setenta dentes, os que haviam e os que não haviam. Não estranhou. Também, pelo clima da perdição, ali era local da alegria! Alegria do gabiru, mas tinham que fazer bonito! Terminado a festa da lambança e trepância, onde um pau de galinheiro certamente cheirava muito melhor, Inocêncio então acompanhou aqueles veados e enviados divinos. É. Divinos e enviados, na cabeça daqueles um metro e setenta e dois de pura burrice! E depois de uns vinte e cinco minutos chegaram a um bairro nobre chamado Floresta II. Parecia. Só parecia! E Inocêncio ali, como cordeiro imolado rumo ao abate. Não sabia. Como sempre, não sabia.
Também, depois de tanto subir, como que uma porra louca daquelas conseguiria descer?
E ali, partiram cada um para seus quartos. E tome! Tome! Tome! Não se sabe quantas foram, nem o Trouxêncio sabia! E quando tudo parecia ter acabado, o otário da lesma fora arrastado pro banheiro pelo ogro que usava farda de segunda à sexta-feira mas que nos finais de semana arrancava da tira-colo, uma máscara prateada! Uma chuveirada pra acalmar os nervos, pensou. Que nada, e taca-lhe mais, taca-lhe mais! Pronto! Desde o pardieiro que o Inocêncio estava a se entregar, simples como uma pomba e submisso como um monte de bostas!
O dia já estava amanhecendo, quando o brutamontes sedutor sacou de sua arma enfiada dentro do armário. Manuseou na frente de Inocêncio, logo aquela lesma descompensada. Lesma construída pelo mundo, pela falta de instrução, por pura ganância de conhecer o submundo negro dos ditos felizes! Inocêncio interveio dizendo pro lindo, porém, profano e fedorento de ser, que não era legal tal ação. O mesmo sorrindo para Inocêncio, atendeu o pedido e guardou a arma. A maior qualidade de um interesseiro é ser cortês! Porém, o tiro não saiu pela culatra! Pum! Pum! Ouvia em seu coração talvez dando seu último adeus! Neste momento um filme passou na cabeça de Inocêncio. Lembrava da mãe que tanto lhe amava e dava conselhos, dos irmãos carinhosos e risonhos, de muitos assuntos nos dias de feriado em família, dos sobrinhos que tanto lhe acarinhavam. Mas estava cego a lesma ambulante! Não havia o que fazer!
O dia já se escondia e os camelôs ainda todos nas ruas desmontando suas barracas. Era dia de domingo, dia da feira mais famosa da Afonso Pena. Famosa e habitada pelos ratos de bueiro. Lotada! E Inocêncio ali, tentando entender que situação era aquela que havia acontecido: arma de fogo, buchinha com essência de tutti-frutti, alegria eterna, mãos fortes e sedutoras, cavalheirismo exagerado, carrão do ano na porta pra transportar os cadáveres.
Continuou seu caminho rumo ao ponto do seu ônibus, morto de fome, talvez desidratado de tanto beber e nada comer. Ainda zonzo, mas estava de pé. Parecia. Inocêncio talvez estaria bem melhor caído do que de pé, sem sombra de dúvidas!
Chegou em casa, tomou um banho, fez a barba, vestiu sua roupa e rumou para o trabalho. Mal conseguia ficar de olhos abertos, mas venceu a jornada necessária. À noite, quando chegou em casa, uma dor de cabeça fraquinha porém incômoda foi o suficiente pra Inocêncio passar quatro infindáveis meses em outro submundo, lutando pra sobreviver. Coitado! Morreu sem ter tido a chance de pedir desculpas ao policial e aos seus comparsas. Causa da morte: burrice aguda!
Burrice ou fatalidade? Coragem ou besteria acumulada? Acho que tudo junto! A vida de Inocêncio não merecia aquilo. Não merecia mas teve a ciência de tudo. Foi esperto, aprendeu do outro lado da vida o valor das suas escolhas. Aprendeu da forma mais doida, doída e endoidecida, mas hoje está em sua melhor fase: a de mandar ir pra puta que pariu qualquer desavisado que queira se aproximar. Inocêncio nem foi tão idiota assim, afinal, aprendeu com suas próprias escolhas e não com as os dos outros. Cavalo bom não espanta boiada, pensava! Hoje ele está com cinquenta e seis anos, feliz, realizado, e sepultando todos aqueles que o enterraram. Tem grandes amigos na atualidade, grandes e verdadeiros. Os filhos da puta foram todos embora da vida de Inocêncio, alguns de forma penosa, outros sumiram desavisadamente, como nuvens.
Hoje não dá ponto sem nó, os frutos contorna e vê sua boiada passar alegre pela pastagem da vida montado em seu alazão por nome Mulato. Inocêncio, em sua mais enganosa mentalidade pensava que sabia demais, mas não passava de um tonto, um mau trapilho desesperado, cavante de um amor que jamais aconteceria, bêbado, usado, submisso. É. Às vezes ter na ideia de que tudo pensar saber é que seja forma de proteção é a mais pura das enganações pessoais. Deitou em sua cama, traçou novos planos de vida, desfez aquelas amizades envenenadas e construiu novos laços. Laços estes que já perduram décadas, tornando assim a vida de Inocêncio um incêndio. Incêndio poético onde tudo é medo, coragem, ousadia, alegria, tristeza, mas agora com um diferencial: sabe apenas de si e das consequências de suas escolhas! O desavisado tomou um prumo na vida!