QUEDA LIVRE!

Aquele homem estava vivendo momentos de grande aflição, não conseguia entender o que acontecia, olhava o abismo abaixo dos seus pés, descia cada vez mais em sua direção, de braços abertos em vão, de mãos alucinadas procurava se segurar a qualquer custo, com pensamentos confusos tentava entender os últimos acontecimentos.

Passavam na sua memória as mais remotas lembranças, das alegrias vividas na infância, de sonhos impossíveis, dos amores imaginados. Tempo de criança, período de muitas limitações, mas cheias de aventuras com os amigos, nas longas viagens por terrenos baldios, à beira de igarapés, em comboios de carrinhos de paus e latas, abarrotados de pedrinhas, vidrinhos de injeção, pilhas usadas ou qualquer objetos pequenos que fizessem volume, formando sempre preciosas cargas.

Era incrível ver a valentia das pick-ups e caminhões, atravessando os lamaçais e pequenos córregos, subindo nos barrancos, ou sobre cascalhos. Coisa de dar inveja aos conhecidos hoje, veículos “off Road”. Os braços finos de corpos esguios, queimados do sol, garantiam o tranco, deixando as marcas paralelas das “rodas” no solo arenoso do caminho.

Eram longas jornadas, interrompidas as vezes para uma peladinha de pés descalços, com estreitas traves de varinhas fincadas no chão, demarcadas por um “passo de menino” sem goleiros, que durava até a exaustão. Após um mergulho nas águas turvas e frias do riacho próximo, descansavam nas sombras de majestosas mangueiras, saboreando suas deliciosas frutas que deixavam suas bocas amareladas e dentes entranhados de fiapos.

À tardinha deixava os amigos, chegava em casa de “fininho”, entrava pelo buraco da cerca para a mãe não ralhar. Escondia no quintal, do irmão mais novo o possante companheiro de viagens, ainda sujo de barro, Levava as frutas ainda quentes colhidas ao sol da tarde, dava um tempinho, deixando-se ser visto em casa, sem grandes sobressaltos pela irmã mais velha, que já preparava o jantar, acomodando as louças na mesa de madeira rústica, avermelhada pelos últimos raios de sol que entravam rentes ao batente da janela.

Torcendo para ela não enredar ao pai que chegaria mais tarde, na volta do trabalho, do seu sumiço no dia inteiro. Frente a uma eminente ameaça, por certo, em troca de sua "vista-grossa" lhe daria algumas mangas verdes para comer com sal. Mesmo tendo passado por maus bocados junto aos parceiros, para tirá-las do meio do pasto, quando a vaca de bezerro os descobrira, forçando-os a saírem em disparada, deixando para trás algumas frutas, arranhando as canelas na capoeira, e sofrerem pequenas escoriações ao mergulharem por entre os arames farpados da cerca, causando-lhes alguns rasgões nas roupas surradas, que os levariam a inventarem algumas justificativas do fato para suas mães, que certamente coseriam as mesmas, após lhes darem alguns puxões de orelhas.

Mais sorte teve o colega gordinho, que prudentemente não se arriscara em invadir o território da vaca, por não se “garantir” na carreira, numa possível retirada, se contentando com uma pequena parte das frutas que recebera de cada um dos valorosos camaradas.

Após o jantar, no início da noite, reencontrava os amigos na calçada, para numa distância oportuna espiar as meninas, que entre risos e olhares discretos, fingiam não notarem a presença deles, permaneciam ali, na esperança de serem convidados, mesmo que fosse para participarem das brincadeiras: pular cordas, queimada, passa anel, cair no poço e outras similares, qualquer uma valeria a pena, seria um bom motivo para a desejada aproximação, o que certamente iria acontecer.

Era gratificante ver o brilho de seus cabelos sob a luz do poste na mureta onde sentavam, fazendo-os fantasiar o cheiro agradável de suas lindas madeixas. Cada um já escolhera a sua musa, como seus pretensos futuros namorados, não valia “abordar” as preferidas dos demais amigos, e nem atrapalhar a paquera, era o combinado. Mas isso não os impedia de pensarem nelas, em admirá-las por suas qualidades, e até nomear algumas como uma nova opção, em um possível, futuro “plano B” caso houvesse alguma mudança de atitude na reciprocidade, pela falta da “química” tão almejada por todos.

Pouco mais tarde, já na rede por ordem do pai, enquanto o sono não chegava, relembrava as aventuras do dia num balançar agradável, já pensava no próximo final de semana, quando de jeep, iria à fazenda do tio, seria um dia muito feliz, em companhia dos primos, banhar e pescar no grande açude do lugar.

De repente a rede não mais balançava, estava insuportável o calor e o suor na cama de casal, ocasionada pela falta de energia elétrica

Passaram-se rapidamente muitos anos, acordara afinal de mais um bom sonho. Cessara enfim a queda livre.

Mariano Silva
Enviado por Mariano Silva em 21/11/2016
Reeditado em 22/11/2016
Código do texto: T5830717
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