ABDIAS NO SERTÃO
ABDIAS NO SERTÃO
Abdias era antropólogo da FUNAI. Podia-se dizer que era muitas outras coisas. Filho de crente! Quem mais teria nome de um profeta menor de uma página só. O crente era também um antigo agente da mesma FUNAI, ainda na ativa, e por isso Abdias fora criado na floresta. Nunca tivera bicho de estimação em casa. Tinha todos os bichos ao alcance da mão no quintal da casa.
Vivera a infância em São Gabriel da Cachoeira, município brasileiro com mais de 80% de população de origem indígena. Falava além do português o nheengatu. Conversava com as araras vermelhas do “quintal” e com os tucanos de bico preto. Se encantava de contemplar a borboleta azul e de ouvir o uirapuru. Subia nas arvores, às vezes enormes, que nem o guaraná e a castanheira. O rio que passava na porta era o Uaupés que daria origem ao Rio Negro e por ali tinha igapó à vontade. Gostava de contemplar ao longe a Serra da Bela Adormecida que tinha esse nome pela semelhança com o vulto de uma mulher e se perguntava se o nome teria se originado na forma ou na história infantil.
Aprendera na escola que o município também era conhecido como cabeça de cachorro por causa da sua forma geográfica. Conhecia todo mundo do Exército e da Aeronáutica que por ali estavam. Zona de fronteira sempre tem vigilância. Gostava em especial do pessoal da Aeronáutica e já passeara muito de avião e até de helicóptero. Bicho que nunca vira era onça, que como lhe explicaram, embora fosse maior predador da floresta, gostava de viver onde havia outros mamíferos que eram sua alimentação, inclusive gado que não tinha muito em São Gabriel.
Quando podia ia se banhar no Iauretê, a cachoeira das onças, onde segundo a tradição indígena, viveram em tempos imemoráveis um povo de gente-onça. Mais tarde lendo Guimarães Rosa descobriu de onde ele tirara o material para seu maravilhoso conto “Mau tio o Iauretê”.
Quando chegara a hora de ensino superior antropologia era destino assim como a sociologia. Acabou tirando diploma nas duas e trabalhava na FUNAI desde os vinte e poucos anos. Por tudo isso era funcionário graduado e em posto superior ao do pai que gostava disso e o tratava respeitosamente o que lhe causava visível embaraço.
Vai dai quando chegou a noticia de uma misteriosa tribo, pros lados de Taraguá e Apuí, não hesitou, procurou Jekena, companheiro de infância da etnia-tribo Werekena que além do nheengatu falava também o baníua, um dos quatro idiomas oficiais do município, e organizou a expedição que para não assustar os índios, nunca contatados seria de poucas pessoas, na verdade eles dois.
Ao fim de uma semana de barco selva adentro fizeram o primeiro contato. Viviam isolados, mas tinham noticia do homem branco, de alguma das tecnologias que por ali se viam: avião, carro, máquinas agrícolas, mas queriam e preferiam viver sua vida do mesmo modo que seus antepassados.
Não foram agressivos, chamavam a si mesmos Orixiezus que no seu linguajar queria dizer: ferrão de abelha que espanta. Sua linguagem era próxima do baníua e foi possível dialogar com certo aprumo.
Coabitavam choupanas enormes, comunais, onde viviam diversas famílias que usavam redes para dormir a para reprodução . As crianças ficavam ali mesmo todos de uma mesma família juntos. Eram monogâmicos e as famílias se constituíam para viver para sempre. Eram basicamente caçadores e comiam carne de tatu, porco espinho e às vezes antas. Praticavam a pesca, mas de arco e flecha o que a tornava mais uma caçada do que uma pesca como a entendemos. Sua agricultura era absolutamente primária e constituía quase que totalmente pela mandioca plantada ao lado das choupanas. Eram coletores e buscavam na mata frutas, ervas e raízes.
Obviamente não tinham escrita, mas o que mais surpreendeu Abdias era sua matemática que parecia saída dos computadores mais modernos: 1, 2 e mais que dois. Deveria ser muito fácil ensinar-lhes álgebra binária. Não usavam muita roupa, para não dizer nenhuma, o clima, obviamente ajudava e apenas cobriam as “vergonhas” com plumas e penas.
Abdias que já frequentara o Quarup na ilha do Bananal, não ficou surpreso ao saber que havia um grande festejo anual para comemorar a passagem dos meninos a homens e das meninas a mulheres. Davam enorme importância ao fato que para eles significava a garantia da etnia e de seu modo de viver.
Ao cabo de três semanas de convívio ficara claro para Abdias que os Orixiezus não ignoravam tanto assim a civilização branca que os rodeava, haviam feito uma clara opção para manter seu padrão de vida igual ao de seus antepassados. Descobriu até alguns curumins que arrastavam um português razoável.
Era e estavam determinados a viver assim enquanto fosse possível. Abdias explicou-lhes o que era a FUNAI e o seu propósito de proteção ao índio. Disse que estaria perto sempre que quisessem alguma ajuda e também lhes disse que viver assim sem nenhum contato provavelmente não seria mais possível, dadas as condições e o desenvolvimento da região. O Conselho dos idosos concordou com ele, mas enfatizou que por hora preferiam continuar a viver daquele modo.
Abdias e Jekena se despediram e se afastaram pensando que num pais tão grande e desconhecido ainda era possível ter e viver experiências como esta. Não fizeram nenhum juramento solene, mas cuidaram ambos de manter o maior segredo possível sobre o contato tentando ajudar a preservação daquele modo de vida.
Abdias fez um relato detalhado do encontro e das características de vida e modo de ser dos Orixiezus, ocultando, porém qualquer detalhe geográfico que permitisse a outra pessoa estabelecer contato num futuro muito próximo. Tinha, sobretudo, medo da imprensa e dos paparazzi, afinal eles estão por toda parte e uma etnia-tribo vivendo bastante isolada era um prato cheio para qualquer revista moderna.