Depois de Tocar no Vazio.
Depois de duas temporadas de trilhas e escaladas no Brasil e no Peru, eu e o meu amigo Sal decidimos iniciar a jornada de 2016 escalando a “Pedra do Garrafão”, com 2.138 metros de altitude, localizada na Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro. Nesta cadeia de montanhas, distante apenas noventa quilômetros das praias do Rio, nos últimos dois anos, Sal e eu tínhamos alcançado os seguintes cumes: Dedo de Deus (1.670 metros de altitude), Dedo de Nossa Senhora (1.405 metros de altitude), Cabeça de Peixe (1.680 metros de altitude), Morro das Cruzes (1.980 metros de altitude) e Escalavrado (1.410 metros de altitude). Eu e minha esposa Luma também já havíamos realizado diversas travessias e trilhas nessas montanhas.
Assim, acreditando nas nossas experiências anteriores e também considerando que o meu amigo é Guia e Monitor oficial daquele parque, planejamos subir a Pedra do Garrafão, na madrugada do dia sete de maio, um sábado de outono. Devido à distância, de aproximadamente vinte quilômetros, do portão de entrada do parque, na sede de Teresópolis, à base do Garrafão e às dificuldades naturais de acesso, decidimos começar a trilha às 17 horas do dia anterior, pernoitar no abrigo da montanha e iniciar a escalada junto com o nascer do sol.
Até chegarmos ao cume do Garrafão, tudo ocorreu como planejado, sem nenhuma dificuldade. Os imprevistos, que serão descritos em forma de “quase um relato”, aconteceram durante a desescalada da montanha e a travessia de volta à área administrativa do parque.
Quase um relato porque o texto não está comprometido em descrever literalmente os fatos ocorridos naquele sábado. A incapacidade de se diferenciar o “por que” de “o que” dos eventos passados representa um problema para qualquer pessoa que deseja aprender com essas experiências. Mas certamente o texto permitirá que o leitor tome conhecimento do que aconteceu, mesmo que não saiba muito bem por que, não possa identificar corretamente as causas e as falhas de procedimentos que poderiam ter evitado o toque no vazio.
No abrigo, Sal preparou o nosso jantar, macarrão instantâneo com almôndegas. Depois, um dos melhores momentos da montanha: tomar um café preparado com pó solúvel, observando-se o céu sem as interferências das luzes e barulhos urbanos.
—Deitado em meu saco de dormir, na realidade não no meu, pois eu havia levado o da Luma que é bem mais leve, olhando a luz vinda da lua cheia que chegava a mim por meio duma fresta no teto do abrigo, eu realizava mentalmente os procedimentos de segurança relativos às atividades de montagem do freio ATC , do rapel , da ascensão em corda fixa com utilização do prussik , fainas comuns em escaladas. Sal dormia tranquilo, sacudindo-se de vez em quando em seu provável sonho sobre novos desafios. Aquele abrigo poderia estar em qualquer lugar do mundo. Eu tentava, mas não encontrava diferenças em adormecer ali próximo à Pedra do Garrafão ou, nos Andes peruanos, chilenos ou bolivianos. Nos momentos que antecedem o sono, tudo é igual: os sussurros, os ruídos do vento, o cheiro de suor das meias e das botas, o cansaço, a dor nas costas. Igual e reconfortantes quanto o calor e o conforto do saco de dormir. Pernoitar em uma montanha dá uma sensação peculiar do tão pequeno que somos em relação à natureza.
Por volta das cinco horas da manhã, antes de prepararmos o café, e sob a luz das nossas lanternas de cabeça, iniciamos a checagem final do material que seria levado nas mochilas. Senti um pouco de ansiedade e adrenalina no corpo, o que imagino ser comum aos escaladores e montanhistas nas horas que antecedem uma escalada.
É saudável estar um pouco assustado, sentir o corpo respondendo ao medo. Quem não tem medo de altura? Quem não tem receio de andar em uma montanha russa na Disney? Ou descer de rapel uma encosta de cinquenta metros? Controlando esses sentimentos consegue-se sair e retornar à zona de conforto com segurança. Mas, como somos humanos, nem sempre se consegue estar psicologicamente preparado para tudo. E naquela madrugada, diferentemente de todas as outras que antecederam as nossas escaladas, eu não estava conseguindo controlar a ansiedade.
De uma relação enorme de itens, que deveriam ser levados, perguntei ao Sal se os comprimidos de paracetamol estavam na bagagem.
Apesar de todo o esforço para eliminarmos peso, nossas mochilas seriam um fardo pesadíssimo. Estávamos levando uma quantidade muito maior do que nas outras escaladas. Tínhamos que levar duas cordas, uma dinâmica e outra estática, além de outros itens em dobro devido as pré-escaladas e desescaladas que teríamos que realizar antes de chegar à base do Garrafão. Coloquei dois agasalhos de fleece na minha mochila.
Fazia frio. Aquele frio da madrugada, numa montanha com vento e neblina.
—Comecei a sentir desconforto nos dedos das mãos. Para aquecer-me, calcei as luvas térmicas por cima das que uso para escalar. Os meus óculos estavam constantemente embaçando devido às condições do ar externo.
Sal seguia na frente, compenetrado na navegação terrestre. Conforme o nosso planejamento e estudo do croqui realizado na noite anterior, caminhamos no rumo sul mantendo como referência a posição do abrigo. Conversando com Sal, fiquei sabendo que ele, há cerca de 10 anos, tinha escalado o Garrafão com outro amigo.
Depois de vencermos algumas dificuldades na navegação, descer de rapel em uma caverna e num paredão de cinquenta metros, onde deixamos fixados mosquetões, fitas e a corda estática visando facilitar o nosso retorno, chegamos à base da montanha escolhida como a primeira da temporada de escalada de 2016.
O céu estava azul e o vento havia cessado. Sal, que é escalador profissional, se equipou para guiar a subida. Eu preparei meu equipamento para atuar como participante, o segundo na cordada.
A subida foi tranquila e sem necessidades de muita técnica e esforço. Utilizamos as agarras e as fendas da pedra. Durante a nossa ascensão, tivemos oportunidade de apreciar, fotografar e filmar o maravilhoso cenário da Serra dos Órgãos.
No cume, acima de dois mil metros de altitude, fizemos a tradicional anotação no livro da montanha. Normalmente eu deixo escrito um texto de agradecimento à minha esposa e aos meus filhos pelo constante apoio que recebo. Agradeço a Deus e a natureza por nos proporcionar momentos mágicos na vida, pois acredito nas ideias de Baruch Espinosa, filósofo do século XVII, de que Deus é eterno, infinito e engloba todas as substâncias. A natureza é eterna, infinita e engloba todas as substâncias. Então Deus é a natureza. E a natureza é Deus.
Antes de iniciarmos a descida, arrumamos e checamos todo o equipamento. Tiramos as típicas fotos de cume, comemos sanduíches, especialmente preparados por Luma, e maçã. O céu já não estava mais azul, o vento estava muito forte e a visibilidade baixa.
O primeiro terço do Garrafão, descemos livres, mas com muita cautela devido às condições climáticas. Sal, o mais experiente da nossa dupla, buscava segurança a cada lance na desescalada.
Num determinado ponto, Sal parou para avaliar como deveríamos prosseguir descendo aquele trecho. A questão era seguir livre ou de rapel. Sal retirou a mochila e avançou livremente um pouco mais no sentido descendente.
—Eu, ainda equipado com a mochila, avistei e alcancei a corda preta, a mesma que nós havíamos utilizado de apoio na subida, e que estava fixada à pedra por meio de um grampo. Nenhum sinal de perigo. Nenhum rompimento. Num momento eu estava desescalando, com apoio da corda, no outro estava caindo. O grampo não rompeu. A corda não partiu. Mas houve um movimento brusco de pêndulo lançando-me no vazio. Antes de ser arremessado, fiquei pendurado à corda com apoio da mão esquerda por alguns segundos.
—Eu caía livre, e tudo parecia acontecer em câmara lenta. Esqueci que não estava encordoado, preso ao guia da escalada. Lembro-me de ter girado no ar, algo como uma cambalhota, e logo em seguida bater com as costas em uma pedra. O impacto foi amortecido pela mochila, que estava com o meu material e os agasalhos extras. Continuei caindo até ocorrer um segundo impacto.
—Então senti que a queda havia cessado e eu estava deitado em um local firme junto à vegetação. Tentava acalmar-me, mas tremia só de pensar que poderia ter sido lançado ao vazio total e não retornado à montanha.
—Ainda deitado, e com muitas dores no pé esquerdo, no joelho e no cóccix, respondi as chamadas de Sal.—Estou bem! Foi só um susto!
Eu havia despencado cerca de quinze metros. Agradeci a minha mochila e ao meu capacete pela proteção nos impactos.
Naquele momento, eu estava tão desorientado e com tanta dor no pé que não tinha certeza se estava bem mesmo ou muito machucado. Fiquei com receio de levantar, não sabia se estava em um local seguro, e qualquer movimento poderia causar uma nova queda. Também não tive coragem de imediatamente olhar e investigar o trauma no meu pé. Temia ter sofrido uma fratura exposta.
Para quem escala, o medo está associado ao contato com o vazio. Cair e tocar na imensidão do vazio. Não conseguir voltar à montanha.
Para quem escala, a segurança está associada ao contato com a pedra. A segurança é tocar nas fendas e aderências das rochas de uma montanha.
—Acalmei, sentei. Antes de verificar com detalhes o quanto eu estava machucado, prometi a mim mesmo que continuaria caminhando até a área administrativa do parque, o nosso ponto de partida. Pegaria meu carro no estacionamento e retornaria para casa. A meta principal daquela aventura já não era mais a montanha. – Eu precisava voltar. Luma estava aguardando-me, pois como habitualmente nas noites de sábado, recebemos a visita dos filhos, das noras e da neta, a nossa paixão que, com apenas três anos de idade, já havia se tornado a estrelinha de nossas vidas.
Quando Sal encontrou-me, eu já estava em pé com praticamente todo peso do corpo apoiado na perna direita, pois o pé esquerdo estava muito inchado e bastante dolorido. Resolvi permanecer com a bota para não agravar a situação.
Buscava forças nos pensamentos, eu precisava continuar a descida. A vontade era de ali permanecer à espera de um resgate.
Sal observou que havia sangue em minhas mãos. Mas constatamos que eram apenas cortes superficiais. O meu principal problema estava no pé.
Enquanto conversávamos, não sobre as causas do que havia acabado de acontecer, mas sim de como agiríamos dali para frente, peguei na mochila o kit de primeiros socorros.
—Eu precisava tomar paracetamol para aliviar a dor. Esse é o medicamento recomendado nos manuais e livros sobre trilhas e escaladas.
Ali, longe da área urbana, onde eu poderia ser socorrido imediatamente, tive o dissabor de constatar a veracidade dum antigo ditado: “nada é tão ruim que não possa piorar”. Eu tinha esquecido no abrigo os comprimidos para aliviar a dor.
Sal e eu sabíamos que não seria um retorno fácil, pois além de ter que caminhar uma boa distância por trilhas praticamente abandonadas, teríamos que escalar um paredão de cinquenta metros de altura e atingir o teto de uma caverna.
Depois de algumas conversas, convenci o meu amigo de que, com o apoio dele e andando lentamente, eu conseguiria retornar ao nosso ponto de partida. O abrigo estava próximo e no caminho de regresso. Lá eu tomaria paracetamol e seguiria mais tranquilo.
—Para vencer os dois principais obstáculos, o paredão e a caverna, decidi que subiria primeiro, contrariando a nossa regra de que cabe ao Sal abrir os lances das escaldas.
Ele não entendeu, mas concordou. Tempos depois, contei-lhe o motivo que havia me levado àquela decisão: Receio de fraquejar na ascensão por corda e ter que ficar na montanha sozinho aguardando resgate. Sendo o primeiro, a minha motivação de chegar ao topo aumentava, pois Sal só poderia subir depois que eu deixasse a corda livre.
Ao anoitecer daquele sábado, depois de aproximadamente vinte e quatro horas na montanha, muito esforço e companheirismo, chegamos ao final da trilha no estacionamento do parque.
No atendimento emergencial, nada de grave no joelho e no cóccix, apenas o pé esquerdo que, por suspeita de micro lesões, foi imobilizado com gesso.
Na estrada, regressando de Teresópolis para o Rio, li as diversas mensagens de Luma e dos meus filhos no WhatsApp. Eles estavam bastante preocupados com o nosso atraso e falta de notícias. Fiz contato com a minha esposa, informei que estava bem, e que em quarenta ou cinquenta minutos estaria em casa.
Na porta do apartamento, fui recebido com um caloroso abraço da minha netinha e um beijo de Luma. Esclareci o motivo do gesso no pé e contei resumidamente o que havia acontecido.
Sentado na poltrona da sala, ouvindo os comentários dos meus filhos, esposa, noras e ao fundo as brincadeiras da minha neta, feliz por ter escalado a Pedra do Garrafão e estar junto dos meus familiares, adormeci sonhando com a próxima montanha: Condoriri (5.648 metros de altitude) nos Andes Bolivianos.
Duas semanas depois...
Descansando na varanda do meu apartamento, vinha-me, de vez em quando, ao pensamento a terrível sensação de tocar no vazio.
Durante o nosso regresso, ainda na montanha, eu e Sal conversamos bastante sobre a minha queda. Nós sabíamos que era preciso falar sobre o acidente, não deixar dúvidas do que realmente havia acontecido. - Falha no material? Eu errei? Sal errou?
Noventa por cento dos acidentes ocorrem por falha humana. Somos humanos, logo acidentes poderão acontecer a qualquer momento. O importante é tentar prever todas e quaisquer consequências possíveis da escalada, de forma a, se algo der errado, você estar preparado, fisicamente e psicologicamente, para manter o controle da situação. Esse preparo só se consegue com treinamento diário.
—Recuperar-me das lesões e voltar a escalar eram as minhas prioridades.
—Eu ter utilizado a corda preta, como apoio para descer um pequeno trecho da montanha, deixou, claramente, as pessoas curiosas por detalhes sobre esta parte da escalada.
Desse modo, para evitar opiniões mal informadas de alguns aventureiros de poltrona, ou especulações superficiais de terceiros sobre o que deveríamos ou não ter feito, decidi relatar os fatos ocorridos naquele sábado, durante a descida da Pedra do Garrafão, aos meus amigos Sérgio, Alex e Lúcia que também realizam atividades de montanha na Serra dos Órgãos.