O Sonho
Tony não fazia ideia do que representava estar em uma fazenda. Nascido e criado na grande cidade, já estava acostumado com a selva de pedra que o rodeava. Para Tony floresta, fazenda, sítio ou algo do gênero não passava de um monte de mato com árvores e talvez um rio ou um lago nas redondezas. Quando chegou, a primeira coisa que o impressionou foram as cachoeiras. O lugar ficava incrustrado em um serra, de onde tinha que se subir a cavalo, pois carro algum já havia penetrado na pequena vila onde ele ia passar aquela semana; caso lhe agradasse e fechasse as negociações, instalaria ali aO Sonho
sua oficina. Ainda estava distante de alcançar a propriedade, mas ele já a via de longe.
O cavalo subia, cansado, a estradinha curta e em plano elevado; o casco se enfiava na terra fofa e úmida, saindo preto de lama. Ao fazer uma curva à frente viu, entremostrando-se através de raros espaços deixados pelo coqueiral de uma chácara, alguns aspectos da casa e de um pedaço do terreno.
O grande portão de madeira estava escancarado, dando acesso a uma carroça. As laranjas que a entupiam até não mais caber sacolejavam, dançando de um lado para o outro à medida que o carro, meio desengonçado, saltitava com estrépito depois de esbarrar em uma ou outra pedra do caminho. Seu condutor tinha que segurar o chapéu de palha sobre a cabeça com uma das mãos e, com a outra, controlar suas rédeas a fim de acalmar o burrinho do susto toda vez que isto acontecia.
Em cada uma das três vezes que o fato se deu viu Tony pular algumas laranjas que rolaram estradinha abaixo. Esta imagem saiu da visão de Tony quando ele se adiantou mais um pouco. O cenário da casa surgiu novamente para mostrar a ele o segundo andar com as janelas fechadas, o sótão, a casa de pombos e mais acima os fios elétricos balançando ao vento. Depois de mais esse pequeno esforço – não para o cavalo, mas para ele – de subir mais um pouco, chegou num plano, de onde desceria, contornando a ilharga do monte, para chegar à casa.
Ali, os respingos das quedas d’água do lado sul da montanha vinham em forma de um chuvisco perene e refrescante. A grama viçosa do caminho descansava as pernas do animal. Aqui e ali poças transparentes turvavam-se na lavadura dos cascos enlameados. A visão dos telhados lá em baixo era reconfortante; as calhas pareciam novas, recém-colocadas, de tão brilhantes da molha constante e benfazeja. Nas partes mais próximas da cachoeira a quantidade maior da água que esbatia saltava para os terrenos e irrigava as plantas desses jardins caseiros tornando o colorido das flores repleto de vida e frescor.
Ele ali apeou para iniciar a descida, conduzindo pelo cabresto o animal. Nas casas que agora ladeavam a rua, crianças descalças e de peito nu corriam para o portão, trazidas pelo bater de cascos contra o asfalto. O esforço feito pelo cavalo para não escorregar tornava-se cômico e ele dobrava as pernas, bufando de medo.
Voltou a apear e já via novamente a propriedade, dessa vez em toda a sua extensão.
Só precisava de uma cavalgada lenta e ritmada para acalmar o animal. Imaginava o seu anfitrião sentado à mesa degustando, naquelas primeiras horas, junto à mulher e os dois meninos, o rico e apetitoso café da manhã da fazenda.
Não gostaria de incomodar, mas não dispensaria aquelas guloseimas para saciar a fome. Chamou-lhe a atenção os efeitos das muitas cascatas que ele sentia ao redor. O bater de águas, o farfalhar dos galhos encharcados, querendo conter a força dos ventos e a sintonia dos pássaros eram os poucos sinais a quebrar o silêncio do lugarejo. A buzina do padeiro se aproximando. Sua bicicleta, beirando o murinho que protege contra a queda no precipício de árvores, empreende malabarismo para fugir ao importuno do cãozinho sapeca.
Uma carroça de feno, o voo rasante de um papagaio atravessando a estreita ponte e desaparecendo entre as folhas largas do bananal. Uma dupla de senhoras quase se curvando pela idade, de vestido até os tornozelos e a Bíblia nas mãos a caminho do culto dominical. O casal de crianças ia, forçado, pelas mãos agarrado, como a não desistir da reza e fugir de volta as suas camas; assim refariam aquelas carinhas rosadas, amarrotadas pela falta do sono.
- Não o esperava tão cedo – disse o amigo ao recepcioná-lo assim que atravessou o portão de madeira; a fumaça expelindo-se do fumo que cachimbava após a refeição matinal.
- Vamos, vou servir um café – Tony agradeceu com um sorriso de satisfação e de fome.
Seguiram beirando o córrego que cruzava a fazenda, ladeado por orquídeas raras, espaçadas e em início de floração. Este dava a volta por trás da casa e se perdia dentro da área verde que cobria grande parte do terreno que Tony pensava explorar. Era enorme; além da cerca ondulante que o limitava, não mais do que colinas alcantiladas, ponteadas de rochas e acariciadas por nuvens que passeavam no firmamento.
Uma manhã inteira de conversas e uma tarde de acertos e negociações. Já no dia seguinte, com o transcorrer das horas, o material se empilhava. Sacos de cimento, montes de terra, areia de construção, telhas, vigas, tijolos, tudo que um galpão decente e uma casa para escritório e outra para morada pudessem exigir de conforto e praticidade.
Tony saiu para inspecionar o seu sonho futuro, mas ele queria paz, a paz de quem planeja e consegue. Esperou que caísse a tarde e foi visitar a área com calma e tempo; atrás de si o fiel e amigo cão de seu sócio e companheiro. A cauda irrequieta ao final do pelo escuro e brilhante era o sinal da amizade já conquistada. Olhou o material, deu sua aprovação e andou pela beira do córrego, feliz e pensativo. Andou mais um pouco. Parou aqui e ali; olhava e se distraia. Os poucos pássaros que ainda se via seguiam ao recolhimento do belo dia que findava.
Um ou outro morcego já se aventurava com seu voo rasante e breve. Tony puxou do bolso de sua bermuda o celular para verificar as horas. Precisava voltar, pois que o jantar seria servido.
Aqui, só ele, a natureza e o cão. Pelo menos ele pensava assim; nem o cão pensava assim. O animal fuçava a grama; seu faro inconfundível pressentira alguma coisa. Tom distraía-se, pensava em sua vida dali para frente. Ergueu uma das pernas e coçou um dos pés por dentro do tênis. A cascavel deve ter percebido esse movimento e adiou o seu bote. Difícil saber se o cão percebera já a sua presença; com o focinho colado na terra como a espera de um momento especial. Tony voltou a pisar com aquele pé. A cascavel viu então o momento certo para atacar.
Enroscou-se, ergueu a cabeça e saltou. A alguns centímetros do tornozelo de Tony a língua da cascavel parou estática e sem vida, com o pescoço preso e estrangulado entre os dentes do cão fiel e amigo. Graças à sabedoria animal e a essa percepção para a qual não existem medidas, um sonho deixou de ser interrompido.