Comunidades Horizontais

São 2:33h, mas não consigo pegar no sono. Cansada estou mais do que a média, afinal passar o dia carregando coisas pelas escadas do prédio era uma experiência que eu não pensei que viveria, mas os elevadores não tem chance de funcionar no meio deste surto energético.

O mundo sobreviveu a virada do milênio e o temido 2012, mas de repente no meio de um tranquilo 2023 vem esta pane geral e parece que voltamos para uma era primitiva, sei lá. É bonito ver a lua assim do terraço do prédio, mas fica fácil de reparar também na poluição de São Paulo em sua falta de estrelas.

Acordar aqui é um certo pesadelo, só de pensar em dividir mais uma vez aqueles biscoitos e enlatados no meio dos vizinhos com as crianças chorando já me da vontade de sair do prédio, mas com as ruas detonadas e os saqueadores a solta eu não tenho coragem de arriscar.

Fora que minha família iria ficar chateada. Mas pelo menos eu não preciso ir ao trabalho nestes dias. É tão estranho, trabalhando há quase três anos no departamento de sustentabilidade e agora aqui no meio deste racionamento de tudo eu percebo que não entendo nada do assunto. Ainda bem que o pessoal do prédio não sabe nada da minha carreira, eram capazes de me eleger algum tipo de vigilante daqui e era só o que me faltava.

É estranho não ouvir o barulho de trânsito nestas ruas do centro, mas como os carros param de funcionar, não tem jeito, nem parece uma grande cidade, a não ser pelos prédios compondo a paisagem. Ih, chegou gente no portão. E me viram! Droga, mandou bem, Larissa. E agora? Saio correndo? Enfrento? Finjo que não estou vendo?

Eles chegaram de bicicleta, tem um estilo bem hippie e estão carregando várias garrafas de água.

Eu não conheço todo mundo que mora neste prédio, mas sei que eles não sao daqui. Só se forem filhos de alguém, tipo o casal do 12 ou algo assim. Neste caso são corajosos, devem ter mais ou menos a minha idade. A menina é séria, é bonita, espero que seja irmã dele. Ele é sereno, me passa paz só de olhar, e devo estar olhando demais, porque estão me encarando.

-Olá, Bom dia! - A voz dele é tranquila como a aparência.

-Bom dia! - Respondo sem saber como sair da situação.

-Aqui é o prédio do Saulo?

Este nome não me é estranho, será que é aquele jovem do outro bloco que vive com um carregador solar perto da piscina e faz churrasco de vegetais? Ele também anda de bicicleta direto. Deve ser, vou perguntar a ele. Espero que já tenha se levantado.

Caminho um pouco e vejo o garoto ali, com o aparelhinho no sol comendo algo diferente do que estamos dividindo por aqui. Nunca falei com ele antes, então isso vai ser interessante.

-Servida? - Nossa, ele deve achar que eu estava olhando para a comida dele. Se bem que nesta época de divisão quem poderia me culpar.

-Valeu. - Ele me da um e eu aceito, até que é bom. -Você é o Saulo, né?

-Sou sim, nós sempre nos cruzamos no portão… mas eu não sei teu nome.

-É Larissa. Prazer. - Ele não aperta minha mão, mas a segura com suas duas mãos em uma certa reverência muito sincera. -Tem umas pessoas ali no portão procurando por você.

-Quem? - Ele me olha surpreso.

-Dois jovens, um menino e uma menina, com várias garrafas de água e roupas…

-Tipo indianas. Puxa, eles vieram mesmo! Que maravilha. - Ele se levanta com um ânimo surreal. -Vamos, eles são demais.

Ele me puxa junto antes que eu consiga analisar a situação. Quando vejo estou junto com um vizinho semi-conhecido abrindo o portão do meu atual quartel general de proteção na cidade detonada para completos desconhecidos. E a primeira coisa que eles fazem é me oferecer uma das garrafas de água.

-Sou Matheus. - O garoto me diz com um sorriso que ilumina seu rosto inteiro. -Ela é a Julia. -Ele aponta para sua companheira que me acena um oi um pouco tímido.

-Oi. Prazer. -Ela diz acalmando um pouco sua expressão séria. Eu fico instantes em silêncio e noto eles me olhando.

-Eu sou Larissa. Prazer.

Eu pego a garrafa como uma reação automática e firme para não começar a tremer nem de preocupação nem de cansaço, caminho com eles até o terraço aonde estão acampados quase todos os outros moradores do prédio, incluindo meus pais e irmãos. A maioria já esta acordando e não demoram a notar a presença dos visitantes, que chamam um pouco a atenção com seus trajes leves, coloridos como em desenhos de mandalas e que ficam absolutamente interessantes e bonitos neles.

Saulo ainda bem animado ajuda a atrair a atenção de todos os presentes, e enquanto o barulho geral diminui, Matheus caminha mais ao centro.

-Bom dia a todos e todas! Sei que devem estar estranhando nossa presença. Nós viemos aqui encontrar nosso amigo Saulo. Somos parte de uma comunidade que reside próximo aqui da capital e estamos passando por alguns cantos da cidade em pequenos times para levar água, alguns suprimentos. - Ele coloca uma sacola de pano grande no chão, o pano se espalha e vemos algumas frutas, castanhas e caixinhas de papelão. Meus vizinhos olham surpresos, alguns sussurros e novamente silêncio. -Não sabemos quanto tempo esta situação de falta de energia vai levar. Então estamos oferecendo para aqueles que sentirem, a oportunidade de vir conosco ficar uma temporada lá na vila.

Várias perguntas começam a pipocar até que uma grande algazarra se forma. Muitas pessoas parecem irritadas ou desconfiadas, e eu passo a entender um pouco o porque da expressão séria de Julia. É um trabalho cansativo e não os tratam bem. Mas Matheus mantém o jeito tranquilo, ambos respondem as questões. Então quase duas horas depois, eu e minha família seguimos em transportes movidos a pedaladas juntos com pouco mais que uma dúzia de vizinhos e a dupla de visitantes ainda razoavelmente misteriosos.

Mesmo eles sendo desconhecidos, eu já me sinto mais próxima deles do que de vários dos vizinhos que estavam ali no prédio onde morei mais de dez anos.

É trabalhoso pedalar em grupo assim, eu nunca antes havia andando nem em bicicletas conjugadas. Mas acho que alivia o cansaço porque já faz mais de quarenta minutos que estamos pedalando. Minha respiração já esta um pouco pesada e sinto minhas bochechas queimando. Talvez se eu pedalasse mais na cidade, como alguns colegas de trabalho ao invés de sentar em meu carrinho que estacionava sozinho e já sabe minhas músicas preferidas, eu estaria mais preparada agora.

-Galera, estão vendo aquelas casinhas ali mais adiante, o local cheio de bandeirinhas ali? Então, já estamos chegando, é só dar um gás final que vocês já vão poder descansar. Além de aproveitar, lá é lindo. - Matheus está um pouco suado, ajuda saber que é assim para eles também.

Enfim chegamos! As casinhas são bonitas, tudo esta decorado, mas é bem rústico, esta claro que estamos fora da cidade. Minha irmã já esta com a cara feia, ela odeia passar o dia no mato, espero que ela tenha trazido repelente e chapéu.

Tem bastante gente aqui já, e nem conseguimos trazer muita bagagem, então vou precisar me virar no melhor estilo mochilão que eu nunca fiz.

-Bom dia, pessoal. Bem vindos! - Diz um rapaz de aparentes 25 anos, com vários piercings e tatuagens, estilo um pouco diferente dos dois que nos acompanharam até aqui. -Podem colocar as coisas de vocês nos quartos coletivos mais adiante a esquerda e já estamos servindo o almoço aqui no refeitório central, é só chegar.

Os quartos não tem basicamente nada além de colchonetes e prateleiras. Mas de certa forma é surpreendente como eles conseguem ter esta estrutura para nos receber mesmo no meio deste caos todo. Antes de chegar no refeitório eu dou uma caminhada por este local que parece fora do tempo. É repleto de natureza, mas tudo parece tão harmônico e funcional, eles reutilizam material nos móveis, que são artesanais e cheios de arte, tudo parece ter um significado.

A Júlia que veio com o grupo lá prédio me vê fora do caminho e se aproxima. -Esta perdida?

-Na verdade estou conhecendo um pouco o local, se não tiver problema.

-Nenhum. Mas acho que vão ter bastante tempo para isso, já que a previsão do retorno elétrico é inconclusiva.

-Nem me fale. Mas não tem como ser pior do que viver naquele acampamento no prédio. Foram os piores 3 dias que passei.

-Sorte a sua, flor. Muita gente não teve nem acampamento. Bom, mas agora já estão servindo a refeição, eu vou pegar, porque além dos horários bom organizadinhos a comida aqui é uma delicia.

Eu sigo ela, que já esta com as feições bem mais leves, mais tranquila. Caminho para o local cheio de gente, pego um prato e começo a me servir. Meu irmão se aproxima e me da um tabefe no ombro.

-Com fome, irmãzinha?

-Lógico, você não? - O prato responde por ele. - Deixa um pouco para os outro, né Luís.

Ele me ignora e vai pegar suco. É então que começo a me perguntar como eles conseguem preparar tudo isso se também estão sem eletricidade. Olho para o lado e vejo o Matheus se servindo. Timidamente me aproximo e ele me reconhece.

-Olá. Larissa, né? Esta sendo bem recebida?

-Sim, é bacana aqui. Eu só estava pensando. Como é que vocês conseguem preparar tudo isso? Receber tanta gente? Aqui não faltou energia não?

Ele me olha prestando atenção, sorri, pega em meu braço e me leva para uma mesa um pouco mais vazia. Nós sentamos lado a lado.

-Querida, aqui é um espaço em harmonia com a natureza. Nós não extraímos recursos em excesso, então temos a abundância que a terra nos traz. Eu sei que pode parecer estranho, mas fique aqui alguns dias e você verá.

Ele pega um pouco de sua comida e eu provo da minha também. É muito saborosa, ele vê minha expressão e ri.

-Gostou?

-É ótimo. Se bem que depois de três dias e meio naquele esquema do prédio e esta pedalada posso estar sem referência.

Ele sorri. -Aqui é tudo preparado com boa energia, pessoas felizes. Muita comida crua, natural. E antes que tu pergunte, nós temos fornos solares e aqueles de pizza, então mesmo sem elétricos da para fazer bastante coisa.

-Mas e o suco?

-Observadora. Alguns são macerados na mão. Mas agora que tem muita gente foi no liquidificador mesmo, temos alguns de manivela.

Eu nem sabia que existia isso, mas aqui parece que eles estão acostumados. Vai ver também é um deslumbramento inicial e todo mundo feliz por um dia. Vou fazer um passeio e torcer por uma boa noite de descanso.

Depois da quinta noite de sono no quarto coletivo já estou mais energizada. E também não estou tão ansiosa para dividir o quarto com as três famílias antes das dez da noite. Matheus passa correndo por mim.

-Ei, vamos para uma reunião de comunidades? Esta começando.

Eu nem sei bem o que é isso, mas aceito o convite e me sento em roda ao redor de uma fogueira. O jovem repleto de piercings que nos recebeu no primeiro dia é quem inicia a conversa. É um dos fundadores deste espaço, junto com a dupla que nos resgatou na cidade. Estão abrindo a roda para que possamos juntos pensar em possibilidades de estilo de vida, rede, política e o que mais acreditarmos que seja importante para conviver em harmonia com nosso planeta, e não mais dependendo de recursos que extraímos sem consciência.